A Narrativa Transmídia em AmarElo

Por Fábio Garcez.

O mundo atual é marcado pela grande circulação de formatos midiáticos, que nos atravessam em quase todos os momentos do cotidiano. O fluxo de conteúdos entre diferentes plataformas vem se tornando quase inevitável, assim como o prazer na busca e no consumo amplo de informações (principalmente entre as mais novas gerações). É crescente, também, a vontade do mercado do entretenimento de se aproveitar desse contexto. 

Foi ao perceber a iminência desse novo paradigma que o professor e pesquisador Henry Jenkins apresentou, em 2003, o conceito de narrativa transmídia

um processo onde elementos que integram uma ficção são dispersos sistematicamente através de múltiplos canais, com o propósito de criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada. Idealmente, cada meio faz sua contribuição de forma única para o desdobramento da história. (JENKINS, 2003, p. XX)

Hoje, esse é um formato já consolidado e adotado por grandes franquias e marcas – como o universo cinematográfico da Marvel, Pokémon e Harry Potter, por exemplo – como forma de envolver mais efetivamente seus públicos. Entretanto, apesar do sucesso difundido no mercado, é admirável quando surge uma obra que encontra nessa alternativa formas de expressão criativas e únicas, ou seja, meios inovadores para se contar uma história genuína, poderosa e extremamente relevante.

AmarElo, projeto do rapper Emicida, realiza tudo isso e um pouco mais com maestria. Tudo começou com o disco homônimo lançado em 2019, que aborda temas como amor, espiritualidade e paz, através do olhar do autor sobre a grandeza da vida. O álbum propõe uma linguagem ainda focada no rap, mas que foge dos estereótipos do gênero, unindo referências de várias épocas e estilos da música brasileira em uma mistura apelidada de neo-samba.

A partir daí, a ideia se desdobrou em diversos formatos. Além dos conteúdos de divulgação, videoclipes e uma turnê, surgiram dois podcasts, uma coleção de roupas e acessórios e um documentário. A prática de se expressar através de várias mídias já era familiar para o músico, que no passado produziu coisas tão distintas quanto livros infantis a desfiles de moda. A intenção, dessa vez, era criar um multiverso no qual cada parte, cada história, se complementasse e contribuísse para passar adiante uma mesma mensagem.

Foto/Divulgação: Emicida

Para mergulhar de cabeça nesse mundo, foi feito AmarElo – O filme invisível, um dos podcasts, narrado de forma envolvente pelo próprio Emicida, no qual ele se aprofunda nas referências sonoras, visuais, sensoriais e espirituais para o projeto. A qualidade do roteiro e a paixão em sua fala ao adentrar novamente na vasta gama de repertório que povoou seu processo criativo é nítida e contagiante, deixando o ouvinte completamente imerso. Além disso, é válido destacar a importância de se compartilhar processos em um momento no qual é dado muito mais valor aos resultados.

O outro podcast, AmarElo Prisma funciona em um modelo de conversas focadas em quatro pilares que também permeiam todo o projeto: paz, clareza, compaixão e coragem. O programa conta com convidados como especialistas, colegas e amigos de Emicida que participam de debates sobre a importância do autocuidado físico e mental, fundamentais para que sejam feitas boas escolhas em prol do individual e do coletivo. O podcast provoca engajamentos junto ao público ao propor reflexões e instigar atitudes. O dois podcasts, assim como o próprio disco, são atravessados pela subjetividade do artista ao mesmo tempo que evocam subjetividades alheias; há uma pluralidade de perspectivas agregadas em uma mesma obra, na qual quem fala tem uma relevância tão grande quanto quem escuta.

Foto/Divulgação: Emicida (YouTube)

A Coleção AmarElo também é um ponto de conexão e identificação com o público. Os elementos nas peças possuem referências à ancestralidade e à espiritualidade, são como lembretes às mensagens de união e esperança presentes nas demais produções do projeto.

Foto/Divulgação: LAB Fantasma

Por fim, o documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem, lançado em 2020 na Netflix, acompanha o show de lançamento do disco, acontecimento intercalado com animações, entrevistas, imagens de arquivo e bastidores. Foca-se na história da cultura negra brasileira e na luta antirracista no país, tema central não só do projeto, mas também da carreira do artista. Por ter sido realizado no Theatro Municipal de São Paulo, ambiente historicamente ocupado pela elite branca, o rapper faz do evento em si um ato de resistência e reparação histórica, relembrando sempre o valor do legado daqueles que vieram antes, que garantem a continuidade do movimento no futuro.

Foto/Divulgação: Netflix
Foto/Divulgação: Netflix

Em todas as partes desse grande experimento que é AmarElo, é possível observar exemplos dos princípios fundamentais para uma boa narrativa transmídia. O projeto possui várias portas de entrada que podem contribuir para uma ampliação e conquista da audiência (“expansão”), ao mesmo tempo que é repleto de elementos que encorajam sempre o público a buscar mais, construindo e fortalecendo uma comunidade (“profundidade”). A “Construção de Mundo” se dá temática, sonora e visualmente de forma muito consistente através de todas as mídias.

Os princípios da “Subjetividade” e da “Imersão”, ilustrados aqui através dos podcasts, também são centrais ao filme e ao disco e se fortalecem ao se pensar no conjunto da obra. O da “Extração”, que consiste em colocar algo vindo daquele universo no cotidiano, pode ser observado na coleção de roupas, e o da “Performance”, que envolve estimular uma participação ativa do público, principalmente em AmarElo Prisma.

Enfim, Emicida consegue, em AmarElo, uma combinação ímpar de estratégia mercadológica, relevância social e riqueza estética e artística. Nessa ambiciosa incursão, o rapper e sua produtora Laboratório Fantasma exploram a narrativa transmídia com originalidade, apresentando novas possibilidades para o mundo da arte e do entretenimento no Brasil. Um trabalho que une todos esses fatores para expandir visões de mundo, entreter, informar, emocionar, potencializar uma mensagem e se materializar como um ponto de luz em tempos sombrios.

Fábio Garcez é monitor do CCM e graduando em Publicidade e Propaganda pela PUC Minas.

REFERÊNCIAS

JENKINS, Henry. Transmedia Storytelling. MIT Technology Review, 15 de jan. de 2003. Disponível em: <https://www.technologyreview.com/2003/01/15/234540/transmedia-storytelling/> Acesso em out. 2021.

JENKINS, Henry. The Revenge of the Origami Unicorn: Seven Principles of Transmedia Storytelling. Convergence Culture Consortium, 21 de dez. de 2009. Disponível em: <http://www.convergenceculture.org/weblog/2009/12/the_revenge_of_the_origami_uni.php#more> Acesso em out. 2021.

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