Por Clara Pellegrini.
Kbela (Yasmin Thayná, 2015) é um filme sensorial. Muito mais do que uma construção narrativa, o curta-metragem se oferece como uma experiência, sobretudo às mulheres negras – é, afinal, feito por, sobre e para elas. É um filme sentimental, afetivo; um lugar de identificação e pertencimento, uma ode à feminilidade negra. É uma obra intrinsecamente intermidiática. Mas antes de qualquer coisa, Kbela é uma vivência coletiva, um filme-jornada – intra e extra diegeticamente.
O percurso começa extradiegético: o curta de Thayná nasce muito antes de se tornar filme. Em 2012, a diretora e roteirista escreve o conto Mc KBELA, publicado na coletânea Flupp Pensa – é essa a gênese do projeto. Ainda nesse ano, Yasmin tenta transpor seu texto em filme, mas a iniciativa não chega a se concretizar. No ano seguinte, Mc KBELA é adaptado para uma cena curta de teatro pela atriz Veruska Delfino e pelo diretor Anderson Barnabé – o resultado é apresentado no Home Theatre – Festival Internacional de Cenas em Casa. A partir daí, o projeto ganha novo fôlego e, em 2015, Yasmin Thayná grava o filme com a participação de cerca de 60 pessoas – a experiência coletiva de Kbela se espelha dentro e fora da diegese. Sempre posta, a coletividade se anuncia já na primeira imagem do curta: um letreiro que informa que a obra foi realizada através de um financiamento coletivo apoiado por 117 pessoas.
Para além da gênese mixmidia (que reverbera no resultado final, uma espécie de transmidialidade) Kbela estabelece também outros diálogos, inter e intramidiáticos. O curta mescla em si cinema e performance: não é uma narrativa clássica, mas sim um agrupamento de encenações que, juntas, narram a experiência que Thayná nos propõe. A relação com a performance é assumida também nas referências do filme Bombril, de Priscila Rezende, que inspira a sequência em que uma mulher negra, olhando para a câmera, procede a molhar seus cabelos, sujar-lhes de sabão e com eles, esfregar uma panela. Nos créditos, são explicitadas também como referências a peça Not I, de Samuel Beckett, e o filme Alma no Olho (1973), de Zózimo Bulbul. O monólogo de Beckett, escrito em 1972, foi performado pela atriz Billie Whitelaw no ano seguinte; as imagens consistem em uma boca descorporalizada que flutua em meio ao breu proferindo palavras sussurradas, agoniadas, em um ritmo acelerado, incansável, perturbador. Por sua vez, o filme de Bulbul é também, em algum grau, performance: um homem negro, sozinho em um fundo branco, que encena para a câmera um reflexo de si mesmo e de sua experiencia de negritude. É um curta-metragem fundamental, fundante, de certa forma, do cinema negro brasileiro. Dessas obras, Kbela toma fôlego e força para construir essa jornada (aqui, a intradiegética) de autodescoberta (ou redescoberta, a partir da supressão de influências externas que oprimem) e aceitação, de construção coletiva, de identidade, cultura, crenças, corpos e vivências negras compartilhadas.
O curta transmidiático de Yasmin Thayná parte do desconforto que atravessa a experiência da negritude, particularmente feminina, em algum nível. As primeiras cenas são cheias de tensão, agonia, peso. Sentimos nas imagens a representação da violência racial, da pressão estética exercida sobre os corpos negros, da angústia que acompanha a sensação constante de fugir à “norma”. Muito dessa opressão se alicerça justamente no cabelo –a questão se anuncia já no trocadilho que é título do filme. O ritmo frenético, agressivo e urgente da trilha sonora dá profundidade ao desconforto e tensão que existem na tela: as bocas sem rosto à la Beckett que proferem injúrias raciais – ofensas que, em sua maioria, se dirigem justamente aos cabelos crespos – são intercaladas à imagem de duas mulheres (embora não pareçam tanto mulheres, humanas, completas – de uma só vemos o corpo, sem cabeça; da outra apenas a cabeça, sem corpo ou expressão, qualquer reação sufocada pela apatia); a mulher-corpo passa vigorosamente no cabelo da mulher-cabeça uma infinidade de produtos, no que parece uma tentativa de domar, controlar, estragar aquele cabelo. Vemos uma mulher negra que chora, outra que, sentada no fim de um corredor vazio, esconde a cabeça em uma sacola – um retrato angustiante e angustiado – e mais uma que esconde o corpo em um saco preto e tenta desesperadamente sair dele.
A sequência termina em um plano longo de uma mulher que, encarando a câmera, pinta-se de branco. À medida em que a cena corre, percebemos que ela, na verdade, não está se pintando de branco: a filmagem é posta em reverso, e o que vemos é essa mulher negra justamente despintando-se de branco, como se despindo-se da branquitude que lhe é confrontada como norma, da qual partem todas as cobranças estéticas e todas as injúrias raciais. A partir daí, o filme ganha outros contornos; gradativamente, muda-se o tom. Vemos mulheres negras junto de outras mulheres negras (cis e transsexuais), com a coletividade posta como caminho nessa jornada. O auto-cuidado e a auto-aceitação vêm também com a experiência conjunta de comunidade e ancestralidade. A sequência mais longa do filme mostra duas mulheres que, embora em situação semelhante, são radicalmente diferentes das duas primeiras: uma delas penteia e corta o cabelo da outra, dessa vez com cuidado, afeto, respeito. Elas cantam juntas a Prece de pescador, de Mariene de Castro; riem juntas, conectam-se enquanto mulheres pretas que compartilham crenças e vivências; fortalecem-se. Uma delas se olha no espelho e sorri; logo depois, a câmera vira seu espelho e ela também lhe sorri, feliz consigo mesma – a jornada que o filme delineia chegando ao outro lado da trilha.
O percurso de Kbela (esse, extradiegético), para além das dificuldades durante a feitura, tem ainda outro desdobramento marcante: apesar das tentativas de inscrição em circuitos, o filme é ignorado/recusado por todos os grandes festivais brasileiros. O racismo confrontado dentro da narrativa é o mesmo que explica o apagamento sofrido pela obra nesses espaços. Surpreendentemente, é o Festival Internacional de Cinema de Roterdã que resgata o curta-metragem de Thayná: Tessa Boerman, curadora do festival e criadora das sessões Black Rebels e Pan African Cinema Today, descobre o filme na internet durante suas pesquisas; convida, então, Yasmin e seu curta para participarem do programa Black Rebels em 2017. A presença de Kbela em Roterdã leva consigo o Alma no Olho de Bulbul – e os dois filmes ganham novos espaços e uma expansão tardia, mas essencial, do reconhecimento. Curiosamente, como tantos elementos nesse filme-jornada, a relação entre as obras de Thayná e Zózimo também transborda os contornos da narrativa; o diálogo estabelecido ganha desdobramentos concretos. As jornadas traçadas por Kbela, dentro e fora da diegese, são singulares e tortuosas – mas são, sobretudo, percursos preciosos ao cinema brasileiro.
Clara Pellegrini é monitora do CCM e graduanda em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.