Por Júlio Martinez.
Durante o período da Ditadura Militar no Brasil (1964 – 1985), o Ato Institucional n. º5 (AI-5), instaurado em 1968, é considerado um dos momentos mais sombrios do regime. Essa atitude autoritária, dentre todas as medidas, legalizava a censura dos meios de comunicações e de obras artísticas, além da tortura dos opositores do governo. Em relação à arte brasileira nesse período, sabem-se de diversos casos de censura e até a destruição de obras artísticas, como músicas de Chico Buarque e Gilberto Gil (Cálice), Adoniran Barbosa (Tiro ao Álvaro), dentre outras. Também há casos no cinema, como Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade, que a censura impôs dezesseis cortes de sequências do filme. Entretanto, após várias negociações, esse número foi reduzido para três. Portanto, o início da década de 1970 é marcado por um enrijecimento do regime militar no Brasil, o que afetou bastante a produção cinematográfica, já que a liberdade de expressão era quase nula.
No início da década de 1970, há certa reação dos cineastas brasileiros com o momento histórico em que estavam vivendo, principalmente do Cinema Marginal. Em resposta a uma violência explicita da Ditadura Militar, seja física ou intelectual, os filmes desse movimento radicalizaram a maneira de se fazer cinema. Era um tipo de cinema que recusava a linguagem clássica hollywoodiana. Eram filmes com protagonistas abjetos, como em O Bandido da Luz Vermelha (1968), com uma violência exagerada, como em Cuidado Madame (1970) e um certo desbunde, como em A Mulher de Todos (1970). Em relação a esse contexto histórico, existem dois filmes, do Cinema Marginal que falam sobre a impossibilidade de comunicação durante a Ditadura Militar: Sagrada Família (1970) de Sylvio Lanna e Bang Bang (1971) de Andrea Tonacci.
Em Sagrada Família, Lanna opta por separar radicalmente a imagem e o som, assim, não há, praticamente, nenhum som diegético no filme. Além disso, o realizador escolhe fazer um desenho sonoro bastante complexo, com frases soltas, ruídos da cidade, músicas de rádio, personagens cantando canções da época, como Jesus Cristo de Roberto Carlos. Dessa maneira, mesmo as composições dos enquadramentos sendo ricas e complexas, as cenas acabam não tendo um valor para a narrativa. Assim, quando se junta essas duas partes: a imagem e o som, não há uma narrativa. Entretanto, é possível encontrar uma história em Sagrada Família, porém não é o que interessa a Lanna. O que importa é a impossibilidade de ser comunicar e, também, de se expressar. Portanto, Sagrada Família dialoga bastante com a época, porém com uma abordagem experimental, na qual Lanna separa radicalmente a imagem e o som, tornando o filme quase que incompreensível.
Em Bang Bang (1971), o protagonista se encontra em diversas situações, nas quais não consegue dialogar com as outras pessoas. Nas corridas de táxi, praticamente, não há uma conversa entre os dois, o protagonista fala para virar em um lugar, mas o motorista vira na próxima entrada. A falta de diálogo é tanta que as duas corridas terminam com o homem sendo expulso do veículo. Outro momento que evidencia a impossibilidade de comunicação, é a conversa do protagonista com sua amante em um bar. O diálogo é um ensaio de um diálogo, na qual o casal conversa sobre como conversar. Além dessas passagens, há, no filme em si, uma falta de diálogo com o público. O único momento em que se inicia uma exposição para o espectador sobre a narrativa do filme é quando alguém, de trás da câmera, joga uma torta no personagem e impede a transmissão da mensagem. Dessa maneira, percebe-se a intenção de Tonacci: fazer um filme sobre a falta de comunicação entre os personagens e, também, do próprio filme com o público.
Sagrada Família e Bang Bang foram feitos, praticamente, na mesma época, com atores e equipe técnica em comum. Existem até cenas que foram utilizadas em ambos os filmes. Apesar de falarem sobre o mesmo tema: a impossibilidade de se comunicar e de se expressar durante o regime militar, há uma diferença de abordagem entre os dois. Em Sagrada Família, Lanna utiliza um excesso de informações na banda sonora, fazendo com que a imagem perca o seu valor, ocasionando em cenas mudas. Lanna, praticamente, faz uma auto censura em seu filme. Já em Bang Bang, Tonacci transparece esse tema, justamente, na falta de comunicabilidade entre seus personagens e do filme com seu público. Além disso, ambos os filmes parecem ter sido auto censurados, já que os cineastas retiram qualquer possibilidade de compreensão dos filmes pelo público. Entretanto, mesmo com a tentativa retirar críticas diretas a ditadura, Bang Bang foi censurado pelo regime militar. Portanto, ambas as obras são reações desses cineastas ao contexto de violência e censura que estavam vivendo, evidenciando a impossibilidade de comunicação, entre os indivíduos, nos tempos de ditadura.
Júlio Martinez é monitor do CCM e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.