A Fotografia diante da pandemia de coronavírus

FOTO: Douglas Magno

Por Renata Garboci.

Em dezembro de 2019, foi divulgada, pela imprensa mundial, a contaminação de comerciantes de um mercado na cidade de Wuhan, China, por um vírus que poderia causar sérios danos à saúde dos habitantes. Naquele momento, não tínhamos a dimensão de como nossas vidas seriam impactadas pelo novo coronavírus (Covid-19/Sars-Cov 2). 

Em junho de 2020, o novo coronavírus já infectou no Brasil mais de 700 mil pessoas, e causou a morte de mais de 37.134 pessoas. No mundo já são cerca de 6 milhões e 931 mil de infectados e mais de 400 mil mortes – segundo os dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Ministério da Saúde do Brasil. 

Na atual conjuntura, as organizações de saúde, autoridades governamentais, a comunidade científica e os meios de comunicação mundiais acreditam que o fim da pandemia e seus impactos na sociedade são imprevisíveis. A partir do momento em que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou que a Covid-19 havia se tornado uma pandemia, iniciou-se uma jornada para compreender o que seria essa doença e quais seriam os impactos que essa nova ameaça poderia nos causar. 

FOTO: Douglas Magno

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, pandemia é um termo utilizado para doenças que se proliferam por diversas regiões (continental ou mundial), e que possuem alto poder de contágio. 

Neste contexto, os meios de comunicação passaram a ter um papel importante na difusão de informações sobre os cuidados para evitar a contaminação e nos registros sobre o desenvolvimento da pandemia do novo coronavírus no mundo. 

Na história mundial, temos registros de diversas pandemias: a Peste Justiniano em 541 A.C, a Peste Negra em 1343 D.C., a Gripe Russa em 1580, a Gripe Espanhola em 1918 e a Gripe Suína ou H1N1 em 2009. A Gripe Espanhola seria a primeira dessas pandemias com registros fotográficos.  

Pandemia de Gripe Espanhola, 1918
FOTO: Biblioteca Nacional Digital (via Agência Senado)

A exemplo de 1918, a fotografia está sendo utilizada, em 2020, como registro desses acontecimentos históricos e dos impactos sociais das pandemias. Neste post, refletiremos sobre a fotografia como documento histórico e o papel do fotógrafo como agente construtor de narrativas de acontecimentos, como os da atual pandemia de Covid-19. 

Devido às proporções da pandemia, é divulgado, diariamente, nos diversos canais de comunicação digitais, impressos e nas redes sociais, um número incalculável de imagens. Para o pesquisador Jorge Pedro Souza, é função do fotojornalismo informar, contextualizar, oferecer conhecimento sobre os acontecimentos e cobertura de assuntos de interesse público. A fotografia de imprensa ao longo da sua história foi se interrelacionando com os acontecimentos históricos e sociais, fazendo parte da transformação do campo de visão das pessoas e ao mesmo tempo sendo influenciada pelos meios socioculturais em que está inserida. 

FOTO: Douglas Magno

Ao analisarmos as fotografias sobre a pandemia, podemos dialogar com as reflexões de André Rouillé sobre o papel documental da imagem. 

“Mesmo não sendo em sua natureza um documento, cada imagem fotográfica contém, no entanto, um valor documental que, longe de ser fixo ou absoluto, deve ser apreciado por sua variabilidade no âmbito de um regime de verdade – o regime documental.” 

Com base nos autores Sousa e Rouillé, podemos refletir que as imagens sobre a pandemia do novo coronavírus, em seu caráter polissêmico, podem ser analisadas como fragmentos do real, que nos chegam por meio das intenções voluntárias ou involuntárias daqueles que as produzem. Voluntários e involuntários porque o enquadramento se dá pela escolha do que fotografar, as imagens são criadas a partir da intenção de construção de uma narrativa dos acontecimentos e também com base nas vivências e códigos culturais daqueles que produzem as imagens. 

Para compreendermos a fotografia, segundo Dulcília Buitoni, não podemos analisar apenas aquilo que está explícito na imagem, mas também o seu contexto, decifrando os traços simbólicos o caracterizam. 

De acordo com Buitoni, podemos compreender que a fotografia pode ser vista como um traço do real que mostra a existência de um momento, mas ela não explica e interpreta, somente mostra. No caso da fotografia jornalística, a leitura da imagem está associada ao texto, pois ele possui o papel de completar a informação para não causar duplas interpretações. Nesse ponto, podemos compreender que a prática do fotojornalismo se dá dentro de um processo de representação da realidade.

As imagens de tragédias possuem uma estética própria que foi desenvolvida ao longo da fotografia jornalística. Os registros sobre a pandemia do novo coronavírus trazem semelhanças com as imagens sobre a gripe espanhola em 1918, divulgadas pela imprensa. Em seu livro Diante da dor dos outros, Susan Sontag descreve que as imagens de tragédias possuem uma brutalidade própria, que a crueza dos fatos representados nas fotografias é necessária para o registro documental da dor. Segundo Sontag:

“Na fotografia de atrocidades, as pessoas querem o peso do testemunho sem a nódoa do talento artístico, tido como equivalente à insinceridade ou à mera trapaça. Fotos de acontecimentos infernais parecem ser mais autênticas quando não dão a impressão de terem sido corretamente iluminadas e composta porque o fotógrafo é um amador – o que é igualmente aproveitável.” 

Sontag também nos leva a refletir sobre até onde vai o poder documental da fotografia e se e como ele pode mudar as ações que causam tragédias. Como sabemos, observar, as fotos da Primeira Guerra Mundial, que mostraram de forma crua os horrores dos campos de batalha, não impediram que uma nova guerra de proporções ainda piores acontecesse logo em seguida. 

Outro ponto levantado por Sontag é a percepção de normalidade depois do contato constante com as imagens de tragédias nos meios de comunicação. O choque inicial diante da dor do outro pode se dissipar com o tempo. 

Sobre a covid-19, as imagens das vítimas e do caos ocorridos na Itália em março e abril nos Estados Unidos e em maio no Brasil nos levam a refletir sobre as palavras de Sontag a respeito do poder documental e histórico da fotografia, mas não há garantias de mudanças de atitudes para evitar a ocorrência de novos desastres.

Ao observarmos as imagens de guerra, percebemos a concretude da perda e do sofrimento. Mas no caso atual, se tratando de um vírus, uma doença, como tornar isso real e visível na imagem? E, além disso, realizar um registro imagético de algo que nos é invisível? 

FOTO: Douglas Magno

Como tornar a devastação de um vírus visível na imagem? A opção dos fotógrafos da pandemia tem sido pelos hospitais lotados, profissionais da saúde nos limites da força e valas cheias de caixões dos entes perdidos em decorrência da doença.

FOTO: Douglas Magno
FOTO: Douglas Magno

A perspectiva do fotógrafo nesta pandemia se tornou o nosso olhar sobre ela. Eles registram o cotidiano dos hospitais, funerais e as ruas vazias (ou não) pelo isolamento social, fazendo com que os nossos modos de ver os acontecimentos de hoje sejam os registrados pela imprensa, pela fotografia ou pela câmera de vídeo. E é por meio de suas imagens que é documentado o fato histórico, uma pandemia que atinge e muda a rotina da sociedade. Sontag, no trecho abaixo, analisa essa relação do espectador da notícia com a representação da realidade tragédia trazida pela mídia. 

“A compreensão da guerra entre pessoas que não vivenciaram uma guerra é agora, sobretudo um produto do impacto dessas imagens. Algo se torna real para alguém que está longe acompanhando o fato em forma de noticia – ao ser fotografado. Mas, não raro, uma catástrofe vivenciada se assemelhará, de maneira misteriosa, à sua representação”. 

Por meio de fotos e vídeos a estética da pandemia está sendo criada, e o acontecimento é documentado. As imagens entram em choque com o discurso de governantes nos Estados Unidos, Itália, Brasil e Inglaterra. Muitas autoridades tentaram manter atitudes de normalidade e provocar a descrença acerca do trabalho da mídia, classificando-o como discurso de histeria coletiva. Mas, contra o negacionismo, as imagens da pandemia nesses países demonstram a situação caótica de uma doença que deixa em colapso sistemas de saúde. 

FOTO: Douglas Magno

Milão, mesmo com o discurso de “Milão não para”, parava diante do novo coronavírus, e o mundo acompanhou diariamente a tragédia registrada pela fotografia. Ao observarmos as imagens em vários países, podemos ver uma estética da tragédia semelhante no trabalho de diversos fotógrafos. Há uma preocupação não com a beleza ou com o melhor enquadramento, mas sim, com o caráter informativo da imagem, de como aquela fotografia poderá expressar o invisível, registrar a disseminação da pandemia e o colapso dos sistemas de saúde.  Podemos observar, nessa junção do texto com a imagem, o objetivo de incentivar o isolamento social. As imagens buscam expressar a necessidade da quarentena e do distanciamento. 

FOTO: Douglas Magno

Ao vermos as imagens da Itália, e depois dos Estados Unidos e agora no Brasil, percebemos como se fossem imagens de uma mesma história. Se não houvesse legendas nas fotografias, mostrando de onde e quando foram tiradas será que saberíamos de que lugar elas são? Os rostos das pessoas são cobertos por máscaras, não podemos perceber nas imagens o individual, vemos o coletivo. As fotografias sobre a pandemia criaram uma estética do coletivo, de que a dor não é individual. 

Como Sontag coloca em Diante da dor dos outros, a fotografia de guerra traz a narrativa do coletivismo. Talvez seja essa a mensagem transmitida pelas fotografias, talvez fique documentado que a pandemia de coronavírus é um desafio de todos, sem exceção. 

FOTO: Douglas Magno

Renata Garboci é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC Minas.

Referências

BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. Belo Horizonte; Autêntica Editora, 2011. 

BUITONI, Dulcilia Schroeder. Fotografia e jornalismo: a informação pela imagem. São Paulo: Saraiva, 2011.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros; tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 

SONTAG, Susan. Sobre fotografia; tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 

ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea; tradução Constancia Egrejas. – São Paulo: Editora Senac. São Paulo. 2009. 

SOUSA, Jorge Pedro Sousa. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Universidade Fernando Pessoa. Porto. 1998. 

https://www.nytimes.com/news-event/coronavirus

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