O crítico e realizador de cinema Pierre Léon em entrevista a revista Cinética fala da existência de um exoesqueleto dos filmes contemporâneos. A comercialização das obras vêm acompanhada de um aparato de trailers, releases e opiniões que afastam o espectador da presença de um filme do qual pouco se conhece. A partir desse diagnóstico, é preciso pensar maneiras de reengajar o filme sob outro olhar menos contaminado. Esse gesto, é claro, não é imediato, e muito menos natural. É necessário exercitar o olhar crítico que o press release espera minar na sua coação sob determinados pressupostos: o que são boas atuações, o que é “natural” ou realista. É isso em parte que instaura o paladar de um público diluído nos excesso informacionais, nas fofocas de gravação das obras, nas polêmicas que torneiam o conteúdo do filme (ainda não visto). Além – muito além – de tudo isso, subsiste um filme.
Para o crítico contemporâneo, que indispõe da trajetória de um renomado como Leon – que já passou por revistas como a Trafic, de Serge Daney e Jean-Claude Biette – há de ser possível enxergar outros caminhos além de esperar um ou 2dois anos após o lançamento de filmes para que se possa assisti-los. É preciso ir com agilidade até as obras, informados daquilo que elas significam no presente. Não há uma forma plena de escapar ao excesso que inunda redes sociais, comerciais televisivos e conversas cotidianas. Contudo, é preciso construir uma aproximação de forma que o desejo de sobriedade e pureza da experiência não seja um monstro de sete cabeças que inevitavelmente nos alienaria da obra enquanto um fazer do agora. É importante também pensar sobre essas mídias enquanto extensões virtuais do produto principal, que estão conectadas com as pretensões dos realizadores sem qualquer ingenuidade. Não se assiste ao filme e pronto. É consumada a pletora informacional da experiência multi midiática.
Coringa (2019) inevitavelmente nos convida a esse pensamento sobre seu extra filme. Por vezes, assisti-lo em uma sala de cinema foi eletrizante, mas também alarmante. Entre relatos de ovações e repudio a obra, algo ali colide forte com algumas sensibilidades contemporâneas, com alguns fatos. A chamada para uma matéria no site Gizmodo diz “O Serviço Militar Americano avisa tropas sobre violência em exibições do Coringa”. Remete aos acontecimentos trágicos em Aurora, Colorado, 2012: um jovem entra na sala de cinema e executa espectadores do filme O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Fontes afirmam que o atirador dizia ser o próprio Coringa, vilão do filme passado da trilogia de Christopher Nolan.
Uma figurinha das camisas de fãs de filmes adaptados de quadrinhos, o Coringa de Heath Ledger, é emblemático. Why so serious – por que tão sério? -, bordão do personagem em que o poder potencialmente niilista do palhaço que dinamita as estruturas sociais de uma cidade é transformada em ato. O Coringa do filme de Christopher Nolan começa como um assaltante ao banco da cidade de Gotham – em pleno ano da quebra da bolsa de valores estadunidenses. Ele conduz os acontecimentos da cena como um maestro aristocrata, completamente em domínio de si, um vilão minucioso e misterioso, mas nunca fragilizado. Nolan nunca tensiona os limites da indagação do vilão que olha para o herói em um momento crítico e diz: você me completa, nós somos iguais. Não tensiona, porque no universo do diretor a sociedade de fato precisa de uma força maior que possa zelar por seu bem estar, mesmo que a certo preço.
As informações também fazem pensar na memética do personagem na Internet. Memes cínicos que pregam o individualismo extremado em frases de efeito acopladas com frames não só dessa versão mais recente do personagem no cinema, mas de todas as outras – principalmente a interpretada por Heath Ledger. Esses memes evidenciam o desejo de encontrar uma força interna irônica e distanciada. Uma força desacreditada na política como um meio. São memes que se dizem apolíticos, mas sintomáticas de uma postura diante da política contemporânea. Memes que enunciam a emancipação do olhar alheio, mas que existem para serem compartilhados em redes sociais, por excelência os espaços da hipervisibilidade.
De repente, o personagem Coringa se torna uma nova imagem de pensamento da iconografia política brasileira. Uma nova força cujo teor é sempre da violência, do radicalismo individualista. Podemos pensar a partir das declarações do Ex-black block Cleyton Coringa para o portal Terra em 2014 quando perguntado sobre a evidente contradição entre suas manifestações antipartidárias em 2013 e sua candidatura a deputado federal:
“Manifestação é manifestação, tem que ser apartidária. Ali todos sabiam que não podiam levantar bandeira. Já eleição é eleição. É outra história. Eu mesmo gosto de ser apartidário, mesmo sendo filiado a partido. Não vejo contradição. O partido até me zoa porque tem lá um ex-Black Bloc.”
O palhaço, por excelência, domina o ridículo de si. Havia uma sabedoria em Yorick, o bobo da corte de Hamlet, que atento a mise-en-scène da nobreza dinamarquesa sempre deu a última risada. Ao estar ao mesmo tempo com e contra o personagem, a câmera do filme de Todd Philips anda numa corda bamba. Como um bobo que maneja a sátira da própria corte para quem trabalha, o filme joga com sua plateia, prosperando nas transgressões que promove. Das piadas politicamente incorretas ate as inevitáveis aproximações com a cultura dos homens brancos heterossexuais que possuem um vago senso de marginalidade nos países ocidentais, o filme engendra em si uma realidade muito diferente daquela dos estudos de personagem dos anos 70 (Taxi Driver, O Rei da Comédia) que lhe servem de inspiração.
Coringa (2019) se passa na cidade fictícia de Gotham no começo dos anos de 1980, que se assemelha a versões que Scorsese idealizou da Nova Iorque dos anos de 1970. As ruas estão contaminadas por quantidades infecciosas de lixo não coletado, ratos inundam as ruas e os programas sociais do estado sofrem graves cortes de verbas. Acompanhamos a decadência da cidade através do protagonista da obra, Arthur Fleck (Joaquim Phoenix). Seu corpo estatelado no chão de um beco qualquer após uma surra abre o filme, e dali para baixo também veremos a sua derrocada psíquica. As gargalhadas de Arthur estão longe daquelas dos elogios hamletianos. São involuntárias, e induzidas por um transtorno mental.
O Coringa de Phoenix é, antes de sua consagração, um homem magro, pequeno e doente. Funcional a base de remédios, ele cuida de sua mãe debilitada com um emprego degradante. Mais do que a origem de um supervilão da DC Comics, o que assistimos é um tour de force da loucura e abandono que nos introduz ao pária da construção capitalista neoliberal; o sujeito do burnout psíquico contemporâneo. A dependência dos remédios, o desejo por visibilidade e as frustrações afetivas engendram um personagem que através das forças ambíguas das sequências se constitui como igualmente relacionável e repulsivo. Ou seja, como um idiota.
Além de ser enquadrado em ângulos monstruosos, ou em maquiagens desbotadas e assustadoras, Fleck também é retratado afetuosamente pelo filme. A ilusão de sua participação bem sucedida no talk show de Murray Franklin (Robert DeNiro), nos insere dentro das fantasias do protagonista, como se ele próprio estivesse filmando. Em várias sequências nos é revelada essa disparidade entre a sua percepção subjetiva e aquilo que a câmera depois nos mostra como a realidade. Por alguns momentos o pássaro da imaginação lança lindo voo, somente para que se esmague em uma parede não muito distante – o diretor ocupa esse lugar de administrar e quebrar as ilusões. A mudança abrupta de uma música empoderadora para uma trilha estranha de suspense na sequência em que o Coringa desce dançando uma grande escadaria, é exemplar nesse movimento oscilatório das cenas. Entre o fascínio e o medo, o filme antes de tudo se mostra absorto nas contradições inerentes ao próprio personagem.
Os momentos sublimes do filme emergem da performance de Phoenix, que corporifica as idiossincrasias do mal estar psíquico. A enfermidade resulta em novas possibilidades de corpo. Uma magreza que se faz ver através da pele frágil e machucada, e modulações vocais de risadas descontroladas. Embora nada fique isento de dúvidas sobre o passado de Arthur Fleck, Phoenix constrói um corpo que já carrega essa história. É como se a força da presença de Phoenix coloca-se em segundo plano todo o resto. Phillips aposta no trabalho de construção do personagem, e só assim seu filme emerge como uma obra de força. Os comentários das implicações políticas desse corpo são muito inferiores.
A medida que a mitigante saúde mental do personagem de Phoenix se esvai, o crescendo nos leva até a ereção de Arthur como símbolo dos sofrimentos de uma população desacreditada na política. A execução dos executivos Wall Street no metrô de Gotham é o gatilho não só para uma rebelião de multidões, mas também para uma mudança de chave no comportamento de Arthur e para sua transformação no Coringa. As ruas são tomadas por mascarados que invocam os assassinatos do misterioso palhaço. Os delírios de Arthur se intensificam a partir do momento em que sua figura se faz vista (embora anônima) nos espaços de representação.
Os grupos que constituem a multidão rebelde de Gotham não estão fazendo uma revanche só contra desigualdades econômicas; trata-se de uma energia perigosa, com a qual o imaginário político mundial tem flertado recorrentemente, e engendra nas multidões um desejo por destruição. Uma rebelião contra um projeto político em si. Quando o Coringa é captado por uma câmera de metrô baleando um corporativo rastejante, as balas insistentes revelam que há um devir destrutivo em ação. Como num lapso, Arthur encarna o emissor da violência e não mais a vítima. Se o filme reconhece que existe uma violência sistêmica que assola o seu protagonista oprimido, ele não deixa de evidenciar que existe um empoderamento fascinante quando o pária se vinga de sua condição subalterna. A crueldade vira uma nova linguagem, e é corporificada pelo protagonista nos seus gestos mais agressivos contra si e contra outros. A violência se torna ferramenta de rebelião contra tudo aquilo que um dia o oprimiu, e não existe o desejo de reestruturação através de uma nova ordem. A candidatura de Thomas Wayne à prefeito de Gotham não é vista com bons olhos pela população marginalizada.
Contudo, parece ser necessário que a metamorfose de Arthur se torne pública. Como mais promover e afirmar uma identidade na contemporaneidade sem que ela esteja acoplada a uma máquina de visibilidade capitalista. É preciso dar a ver esse Coringa, esse personagem que está disposto a assassinar um anfitrião de programa televisivo ao vivo. A confiança de seus movimentos em frente a câmera subsiste como um dos momentos mais assombrosos do filme; ele nunca havia parecido tão pulsante quanto ao entrar no estúdio de televisão. Nessa mesma sequência, o Coringa nega que suas ações sejam políticas. Mas, lhe escapa que o espetáculo é a política, e que o desejo que tanto ele quanto as multidões de Gotham engendram em si é, acima de tudo, o de se serem vistos. A validação da existência em uma realidade que se torna mais real na medida em que é midiatizada.
Todd Phillips certamente produz uma reflexão política através dessas questões que foram colocadas. A ingenuidade de seu protagonista, contudo, pode ser depreendida da obra como um todo. A ambiguidade de Arthur Fleck em sua metamorfose psíquica é condizente com o fascínio que o diretor possui pelo seu personagem. Entre o glamour e o ridículo, Arthur destrambelha seu emergente protagonismo pelas ruas de Gotham, permanecendo o epicentro focal da câmera de Phillips, mais ingênua do que crítica quando leva as ações de Phoenix para a esfera pública.
A evidente dimensão reacionária do filme Coringa é aqui evocada indubitavelmente, não deixando de nos provocar a não fazer do Coringa um caso de análise da ineficiência do Estado, ou da opressão exercida pelos mais ricos sobre os mais pobres. Isso é fazer pouco da obra, embora de fato, exista uma carta da reação apocalíptica “contra tudo que está aí” que o filme eventualmente joga na sua incerta relação com os espectadores. O determinismo psicológico de Fleck obscurece outros possíveis objetos de interesse. A câmera colada nos gestos e interações de Phoenix borra o ambiente que o cerca; o foco das lentes é majoritariamente superficial e determinado em explorar a miríade de ângulos, disposições corporais e expressões faciais que exteriorizam o personagem.
O filme funciona melhor quando faz esta adesão à pele de Fleck, esse filho bastardo do capitalismo meritocrático. Sua investigação não obtém tanto sucesso ao tentar juntar as linhas dramáticas do filme em torno da rebelião popular. É como se a própria multidão estivesse vazia, isenta de singularidades como a do Coringa, e não acompanhasse a nuance de sua construção. Vira uma multidão como muitas outras, uma massa de manobra que elege mais uma vez uma autoridade que lhes parece legitima. É mais como se o filme precisasse criar a massa para justificar a relação do Coringa com o assassinato da família Wayne do que qualquer outra coisa. Uma instrumentalização de um efeito cênico em prol da exaltação de um personagem que o próprio filme não parece saber se é um idiota ou santo. O poder visual das massas vira nada mais do que uma poluição argumentativa, nos lembrando das mãos maniqueístas que operam a direção da obra.
Quando emergimos novamente para as mídias acessórias que repercutem o filme, depositamos mais uma vez nosso olhar diante dos memes do Coringa. O niilismo desses pedaços de mídia seria mais assustador se não estivesse aberto ao ridículo da ingenuidade. Provêm, fora qualquer ironia, daquelas pessoas que levam o filme cabalmente a sério, vendo no seu protagonista um antiherói fabuloso. Mas, o Coringa de Phillips, finda por ser menos um herói e mais o símbolo de uma resistência egoísta e inocente às maiores articulações do capitalismo neoliberal. A canonização de Fleck, afinal, se dá através de um tradicional talk show da televisão de Gotham.
Fábio de Carvalho é monitor do Centro de Crítica da Mídia e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.