No trailer de Anora (2024), vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, anuncia-se o filme como “uma história de amor de Sean Baker” – algo que parte da crítica especializada parece ter levado a sério. Mesmo com a ferocidade de Mickey Madison no papel-título – uma trabalhadora sexual de um clube noturno em Nova York que se envolve com um herdeiro da plutocracia russa – houve quem lamentasse sua suposta ingenuidade. Neste conto visceral e alucinado, porém, o espetáculo prostibular não é apenas tema: ele também contamina a forma e a linguagem cinematográfica. Não acreditemos tão facilmente em suas ilusões propositais.
A teatralidade inerente a um programa – a venda de uma performance da hiperfeminilidade normativa – é anunciada desde a primeira cena: um travelling lateral revela excitamentos produzidos na linha de montagem do sexo pago. Nesta fábrica neon de tensão e gozo, nada parece tão real – justamente, porque talvez não seja. No prólogo, essas imagens plastificadas alternam-se, em uma edição interruptiva e contra os fluxos do prazer visual, com fragmentos do cotidiano mais brando de Ani – como a protagonista prefere ser chamada, ao menos durante o expediente. Pelo contraste – ressaltado, inclusive, através da iluminação, mais naturalista nos seus momentos de descontração e descanso –, percebemos, inequivocamente, a artificialidade da encenação libidinal. Vislumbrando o avesso do desejo, a sedução, ao menos com as audiências, nunca se completa.
Esse jogo de olhares, no mínimo, nos convida a estabelecer um pacto cauteloso com Anora. Seus encontros com Ivan (Mark Eydelshteyn), o jovem bilionário que passa a contratá-la com exclusividade, imprimem (quase) a mesma tônica e estética frenética de suas jornadas de trabalho comuns. Não é amor, é hora extra. Numa dupla atuação, Mickey Madison tem que sustentar, como uma matrioska, a personagem dentro da personagem; ficcionalizar afetos é a única maneira de garantir a viabilidade da proposta econômica final, cravada com um diamante de três quilates: o casamento. Mesmo em suas defesas mais obstinadas dessa improvável aventura – que, assim que descoberta, passa a ser combatida pela família do rapaz –, a preocupação material com o dinheiro nunca sai de sua mira.
Se tal apego não incita a ambiguidade crítica de Anora – e eu acredito que sim –, que parece bastante ciente dos termos e condições do seu contrato de longo prazo, a caracterização de Ivan como um playboy mimado, franzino, viciado em videogames e que, com um furor adolescente, dá cambalhotas na cama antes de transar, avoluma algumas certezas. Longe de encarnar a figura íntegra e redentora que, tantas vezes na história do cinema, “resgatou” prostitutas de uma marginalidade pregressa e perversa, Ivan é um evidente deboche à masculinidade viril. Os excessos de sua composição caricata, numa interpretação tão cativante quanto odiosa de Eydelshteyn, impedem, ao menos em partes, que acatemos a ternura (e a ingenuidade) de Ani sem desconfianças.
Aqui, a comédia não é romântica, é politizadora. Numa quebra de expectativas com gêneros cinematográficos consolidados – mascarados, prostituídos, emputecidos – a ironia do primeiro ato da obra – uma falsa reedição de imaginários instituídos por filmes como Uma linda mulher (Gary Marshall, 1990) – se transborda e transforma em absurdo no segundo. O humor previamente anunciado interfere, numa alquimia explosiva e subversiva, na temperatura do drama que passa a se instaurar. No embate com três guarda-costas enviados para dissolver a união – Toros (Karren Karagulian), Garnik (Vache Tovmasyan) e Igor (Yura Borisov) –, velhos estereótipos de uma cultura audiovisual robusta se estilhaçam como a mesa de centro da mansão de Ivan. A prostituta não é vítima, seu amante não é um herói e os capangas não são a contraparte masculina vilanizada que costuma canalizar e aplacar a iniquidade dos homens.
Na verdade, junto com Anora, esses tipos dão face aos sujeitos preferenciais da filmografia de Baker – presentes em obras como Tangerine (2015), Projeto Flórida (2017), e Red Rocket (2021): o proletariado ultrapauperizado do capitalismo neoliberal do nosso tempo, que, contra todas as probabilidades, precisa se unir quando Ivan, o herdeiro, foge para evitar retaliações. A busca caturra pelo garoto é inflamada, principalmente, por atravessamentos de classe: o emprego dos capangas – absolutamente inaptos para o ofício que exercem – depende dessa infausta jornada, tanto quanto a recém conquistada segurança financeira de Ani. Baker sublinha, a todo momento, as ações e preocupações desses e dos demais precariados que sustentam uma paisagem fabulosa e consumista que começa a ruir.
O diretor aposta, no desfecho, em uma outra forma de vazão do sexo para sintetizar essa ruína. Contra um regime visual pornográfico que, em alguma medida, modulava as relações entre Ani e Ivan, a protagonista parece se render à amabilidade de Igor, um dos capangas, em uma cena final silenciosa, fria e sóbria. Com essa escolha, Baker pode favorecer uma leitura moralista da prostituição, como se a expressão sexual fosse a única via possível de enunciação da crise subjetiva da sua protagonista – porque natural, atávica. Há outras formas, menos essencialistas, de se remover o véu da representação prostibular: o pagamento, sobretudo equacionado em quilates, me parece um melhor happy ending para essa história de amor.
Por Juliana Gusman para o Blog Boca: https://www.bocacinema.blog/