POR: João Plá
Criado em 1892 pelo Barão Batista Viana Drummond, o Jogo do Bicho foi uma estratégia que o Barão usou para atrair visitantes ao seu Jardim Zoológico, localizado no bairro de Vila Isabel, na zona norte do Rio. O Jogo do Bicho, até então, era exclusivo do zoológico, mas com o passar do tempo, o jogo ganha proporções enormes e se estende para fora dos muros do Jardim, caindo, portanto, nos braços de muitos cariocas. Havia bicheiros em todas as partes da cidade e, diariamente, a população carioca fazia sua “fezinha”.
Os anos passam e em meados dos anos 1970, é criada a cúpula do Jogo do Bicho, formada pelos maiores contraventores da cidade. Com a criação da cúpula, uma guerra é premeditada e a série documental expõe, minuciosamente, cada detalhe dessa guerra que envolve milhões de reais, disputa por territórios e brigas entre famílias, no estilo melhor “máfia italiana e americana”.
O documentário, criado pelo jornalista Fellipe Awi, foi dirigido por ele e seus colegas Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti, que sempre tiveram curiosidade sobre a relação do jogo com as escolas de samba do Rio e decidiram, por essa razão, se aprofundar e documentar o (sub)mundo da contravenção. Narrada pela voz emblemática de Pedro Bial, a série tem como objetivo inicial contextualizar o telespectador sobre o começo dessa guerra e por esse motivo, é citada a cúpula do bicho e os banqueiros que a formavam inicialmente. Nomes como o de Castor de Andrade, Waldemir Garcia, Anísio da Beija-Flor e Capitão Guimarães são mencionados, tal como suas histórias e seus feitos. Esse início é importante para que se entenda o que acontece nos dias atuais.
A série expõe, mesmo que nas entrelinhas, a importância da hierarquia na cúpula, uma vez que cada bicheiro dominava uma área da cidade e seus sucessores teriam que dar continuidade a essa separação. Aparecem, então, os protagonistas e alguns sucessores dessa guerra para contar, segundo suas visões, o que acontecia nos bastidores do conflito. A ação, corajosa e original, de trazer os protagonistas dessa guerra, fez do documentário uma das maiores produções jornalísticas nos últimos anos. “Mostramos que a máfia brasileira, carioca, é única no mundo, poderosa, com uma expressão estética incomparável” Relatou Pedro Bial, a voz da série.
A obra segue, e os personagens dão continuidade a história que mais parece uma novela das 21:00h, com assassinatos, traições, vinganças e brigas familiares por herança e poder. A série destaca um conflito – que dura até hoje – entre Shanna Garcia e Bernardo Bello, que são ex-cunhados. Conflito esse proveniente de uma briga entre as irmãs gêmeas Shanna Garcia e Tamara Garcia (ex-mulher de Bernardo), filhas de um dos maiores contraventores da história, o Maninho. Bernardo é o maior bicheiro hoje no Rio e cresceu nesse mundo da contravenção por ser ex-genro de Maninho. Shanna e sua mãe, por sua vez, lutam por justiça, uma vez que Bernardo detém grande parte das riquezas da família e elas, no entanto, não detêm a parte que lhes era garantida por direito. Bernardo é acusado, inclusive, de ter matado o irmão mais novo de Shanna, o Myrinho.
Entre assassinatos, buscas por vingança, dinheiro e jogos, existem outros fatores que são importantes na vida de um contraventor, são eles o poder e a imagem. O documentário traz como entrevistado o carnavalesco Milton Cunha que mostra a ligação desses grandes nomes do Jogo do Bicho com o carnaval. Cunha, que tem o carisma como sua maior característica, relata que desde o começo da cúpula, os contraventores se tornavam patronos e bancavam diversas escolas de samba, chegando a criar uma Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), com o objetivo de desvincular suas imagens de fora da lei. Ademais, ser dono de Escola de Samba dava aos banqueiros um enorme poder, tendo em vista que o carnaval no Rio é conhecido em todo o globo e gera uma grande renda. O que os desfiles são hoje se deve aos bicheiros da cúpula, pois houve um investimento exorbitante no carnaval do Rio por parte deles. O carnaval e a contravenção andam de mãos dadas há anos.
Nos últimos episódios da série, Adriano da Nóbrega entra em cena e o escritório do crime do Rio de Janeiro também, afinal, Adriano fundou o escritório do crime. O escritório do crime atuava com assassinatos sob encomenda formada por milicianos e atiradores de elite. O escritório do crime é responsável por diversas mortes, inclusive, há ligações com a morte da vereadora Marielle Franco, que foi brutalmente assassinada em 2018. É destacada também a aliança de Adriano com Bernardo Bello, mas que teve seu fim por conta de divergências. Adriano morreu em 2020 por conter muitas informações que poderiam mudar o cenário da guerra e evidenciar o nome de muitos mandantes de diversas mortes. Uma verdadeira “queima de arquivos”.
No meio de toda essa novela ainda surge o nome de Rogério de Andrade, sobrinho de Castor de Andrade. Rogério bate de frente com Bernardo Bello em busca de poder e Shanna Garcia se alia a ele, o que dá continuidade e mais munição a essa guerra que assola o Rio de Janeiro há tantos anos.
O documentário não fez todo esse sucesso em vão. A série é fruto de dois anos de estudo e gravações, é fruto da coragem de entrevistar os maiores contraventores e se aprofundar nesse mundo do crime. Produzida pelo Conversa.doc, núcleo de documentários do ‘Conversa com Bial’, a série é uma superprodução digna de várias premiações. Ela cumpre o papel de expor, com clareza, a relação do Jogo do Bicho com o carnaval e de se aprofundar na guerra que acontece até os dias atuais.
O documentário, na minha opinião, é o maior acerto do Globoplay em 2023.