Não é só uma piada: talk show e o cinismo na TV aberta

Por Julia Lery

Falei como um palhaço, mas jamais duvidei da sinceridade da plateia que sorria.

Charles Chaplin

Talvez uma boa metonímia da maneira como os discursos e engajamentos do talk show se colocam frente ao espectador seja um jogo de improviso proposto por Rafinha Bastos a Gregório Duvivier, no programa Agora é Tarde[1]. O apresentador explica as regras: seria uma competição entre Marco Gonçalves e Gregório Duvivier. Rafinha determina um tema e cada improvisador precisa fazer um discurso se posicionando de maneira favorável a esse tema. Quando Rafinha tocar uma campainha, o improvisador deve mudar de posicionamento e falar contra aquele tema. Quando a campainha soar novamente, o participante volta a defender o posicionamento inicial. “Até o cérebro fundir”, diz Marco Gonçalves. “Até você ter um derrame cerebral”, concorda Rafinha Bastos.

Depois de Marco Gonçalves discutir sobre calcinhas, Gregório Duvivier recebe o tema nariz. A transcrição do momento vem a seguir: Duvivier diz que “o nariz do Rafinha… [Rafinha protesta, dizendo ‘ai!’] é o nariz mais bonito que eu já vi, ele é aquilino, ele é…” [Rafinha toca a campainha.] “Horroroso, ele é um nariz disforme, ele é um nariz que mostra na verdade o caráter péssimo que ele tem, ele tem…” [Rafinha, encenando ter sido desagradado, diz “Não, pelo amor de Deus!” e toca novamente a campainha] “uma beleza de um ser humano, de um humorista talentosíssimo, nascido no…” [campainha] “Rio Grande do Sul, ou seja, horroroso, porque é um estado separatista que quer sair do Brasil” [campainha] “apesar de ser a coisa mais bonita que eu já vi na minha vida”.

Quando analisada em falas sobre calcinhas e o nariz de Rafinha Bastos, a duplicidade de engajamentos pode parecer inofensiva no discurso proferido pelos talk shows. Mas a blindagem ideológica promovida pelo jogo, pela ironia e pelos engajamentos contraditórios presentes nesses programas passa por temas muito maiores. Ela permite, por exemplo, que Rafinha Bastos alterne posturas, ao entrevistar Larissa Riquelme, a “musa das Copas do Mundo”, que variam entre interesse jornalístico e assédio sexual[2]. Que ao entrevistar o deputado Jair Bolsonaro, Rafinha possa se dizer defensor da liberdade dos homossexuais e, no momento seguinte, fazer uma piada homofóbica com os integrantes da banda[3]. Que Danilo Gentili, apresentador do concorrente The Noite, possa encenar um linchamento, diminuindo, de maneira “humorística” e satírica, a gravidade do ocorrido, para que Rachel Sheherazade, entrevistada e colega de emissora, se justifique, rindo, pelo posicionamento favorável a justiceiros que expressou no telejornal que apresentava[4]. Ou ainda que Gentili possa, em um monólogo em que fala sobre o aumento do índice de desemprego para 8%, passar a informação errada, de que o índice havia subido mais 8%, e ainda assim continuar a piada sem ser questionado[5], afinal, tudo aquilo não passa de um jogo e, apesar de tratar de informações do mundo real, o talk show não assume compromissos para com esse mundo.

 As formas humorísticas através das quais os talk shows se sustentam e expressam seus posicionamentos são as mais variadas. O uso humorístico da ironia é comum, bem como do sarcasmo, mas também se fazem presentes um tipo de humor bufão e sátiras de derrisão explícita, baseadas na simples ridicularização. Essa heterogeneidade se vê tanto em diversos momentos de um mesmo programa quanto quando contrastamos programas diversos. O estilo de Rafinha Bastos, apresentador de Agora é Tarde, tende a ser mais irônico e perspicaz, e o de Danilo Gentili, em The Noite, mais bufão e satírico. Mas mesmo nos momentos em que os programas não fazem uso de um humor baseado em ironias cômicas, mas em sátiras de derrisão explícita, eles adotam uma postura irônica quando se colocam perante o público. Tudo o que é afirmado ali é, quando conveniente, relativizado, por se tratar de um espaço onde as regras do entretenimento podem prevalecer sobre uma responsabilidade para com o real.

A mediação estabelecida por esse tipo de entretenimento televisivo é entendida, conforme apontado por Silverstone (2002), como um jogo, comprometido apenas com regras próprias. O espectador, na relação que estabelece com aquele conteúdo, busca o cumprimento de algumas regras, que passam pelo entretenimento e pelo humor. Ele não busca, portanto, o compromisso do programa para com uma realidade extratelevisiva, mas apenas o cumprimento das promessas de show e riso. Cria-se, assim, uma relação de cumplicidade entre espectador e programa, gerando ainda um problema de representação da alteridade e uma perda do senso de responsabilidade em relação ao outro e ao mundo que nos cerca. É esse modo irônico de se colocar do talk show, que se declara “apenas um jogo” que permite a convivência entre um engajamento com notícias do dia e, ao mesmo tempo, com piadas que distorcem propositalmente fatos desse real noticioso; entre um discurso de defesa do interesse público e, ao mesmo tempo, piadas que têm minorias como alvos.

A análise dos talk shows The Noite e Agora é Tarde está em consonância com a afirmação de Vladmir Safatle (2008) de que a televisão contemporânea leva até seu público um conteúdo previamente ironizado, ou seja, que está em constante autonegação. Esta autonegação seria uma resposta ao distanciamento que o próprio espectador estabelece do conteúdo midiático. Ele é capaz de se entreter com um programa televisivo, e até mesmo aceitar seu conteúdo político, mas é uma crença irônica, distante, que o autor chama de “crença desprovida de crença”. Em outras palavras, é através da ironia e da autonegação que a sociedade contemporânea perpetua suas relações de poder. Essa relação nos leva a pensar em uma dificuldade ou, como chega a afirmar o autor, na falência dos modelos de crítica em uma sociedade em que cinismo e ironia são generalizados.

Longe da concepção usualmente conhecida, o cinismo tratado por Safatle não passa por um problema de ordem moral, e não é uma distorção proposital de discursos para a justificação de uma ação. O cinismo configura uma estrutura de racionalidade típica das sociedades e dos tempos de crise de legitimação, e supre a necessidade gerada pela ausência de substancialidade normativa da vida social. É, portanto, um regime racional contraditório, que se sustenta a partir e apesar de seus paradoxos.O fundamento do cinismo é o de que uma contradição posta é uma contradição resolvida. É uma discordância validada, na qual práxis e crenças apontam para lados opostos, mas continuam a sustentar uma ideologia dominante e legitimada, baseada na repetição de rituais materiais, que não exigem uma crença ou uma entrega total, apenas uma crença cínica que permita sua repetição.

Os talk shows The Noite e Agora é Tarde podem ser entendidos, então, como produtos cínicos, o que se tornam quando assumem posturas contraditórias perante o público: eles podem, em dados momentos, tomar para si a defesa do interesse público e da democratização do espaço midiático como pautas – e isso pode ser exemplificado em momentos nos quais os apresentadores questionam personalidades políticas e mostram posicionamento enfático. Em outros momentos, os talk shows têm a liberdade de apresentar conteúdos que nada têm a ver com a informação, e ainda menos com a defesa do interesse público: suas piadas podem ser excludentes, e seu humor repleto de entretenimento ideológico que se coloca de forma politicamente incorreta, ofensiva e até reacionária. Esses dois posicionamentos, embora pareçam contrários, são complementares na lógica cínica do programa. O hibridismo entre entretenimento e informação é feito de modo a se sustentar na ideia de que os discursos que apontam para lados opostos podem ser aceitos como complementares, e não como uma simples contradição.

O uso indiscriminado da ironia está intimamente ligado ao exercício do poder na sociedade cínica. A ironia, usada neste contexto, funciona como uma maneira de perpetuar valores e, ao mesmo tempo, apontar para sua inadequação, criando os enunciados aparentemente contraditórios que, por sua impotência, esvaziam as críticas e dão sustentação ao que é hegemônico na contemporaneidade. Ou, com as palavras de Georges Minois (2003, p. 593), “a zombaria política generalizada, longe de desembocar na subversão, acaba contribuindo para banalizar as práticas de denúncia”.

Se a ironia já foi tida como subversiva e contrária ao poder por sua insolência, hoje é possível compreendê-la como um sintoma do esvaziamento da crítica ideológica. Esse recurso de linguagem, que consiste em dizer algo de forma a ativar uma série de interpretações subjetivas (sem invalidar nenhum de seus significados, mas apenas sobrepondo-os, mesmo que pareçam contraditórios) funciona, ainda, como uma maneira de eximir o falante de responsabilidade pelo que diz. Para Linda Hutcheon (1994), a ironia pode ser usada para dar o benefício da dúvida a qualquer texto. Isso significa que, por não haver um meio de se julgar o que o autor realmente quis dizer (se é que o autor realmente quis dizer alguma coisa, e não apenas deixar o texto em aberto e atribuir a responsabilidade ao leitor), torna-se impossível responsabilizá-lo pelo que diz. Por outro lado, a reivindicação da ironia também pode ser usada para reduzir o estranhamento e os pontos que discordamos de um texto. Para isso, basta que chamemos esses discursos de irônicos, assim, fazemos com que confirmem, e não refutem nossas expectativas.

            Com o esvaziamento da crítica ideológica, a cumplicidade do público e a dificuldade de se responsabilizar o indivíduo pelo discurso que reivindica sob o rótulo da ironia e brincadeira, não é difícil compreender as cenas que se passam na televisão. Não é surpresa que Danilo Gentili satirize Juliana Oliveira, sua assistente de palco, uma mulher negra e gorda, fora dos padrões midiáticos de beleza. Surpreende menos ainda que ele conte com o riso e o aplauso do público, sob o argumento de que aquilo é “só uma piada”. Não parece ofensivo criticar o cabelo afro ou a forma física da mulher, afinal, aquele não é o lugar para se pensar em opressões estruturais – apenas no show e na brincadeira. As inadequações do discurso já aparecem, assim, redimidas pelo lugar de proferimento.

[1]RAFINHA BASTOS ENTREVISTA GREGÓRIO DUVIVIER. Agora é Tarde. São Paulo: Band, 24 de dezembro de 2014.

[2]RAFINHA BASTOS ENTREVISTA LARISSA RIQUELME. Agora é Tarde. São Paulo: Band, 04 de julho de 2014.

[3]RAFINHA BASTOS ENTREVISTA JAIR BOLSONARO. Agora é Tarde. São Paulo: Band, 8 de abril de 2014.

[4]DANILO GENTILI ENTREVISTA RACHEL SHEHERAZADE. The Noite. São Paulo, SBT, 12 de março de 2014.

[5]DANILO GENTILI ENTREVISTA FERNANDA COLOMBO. The Noite. São Paulo, SBT, 06 de junho de 2014.

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Julia Lery  é Mestre em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Possui graduação em Jornalismo pela mesma instituição (2012). Tem experiência na área de Comunicação com ênfase em Jornalismo e produções audiovisuais

Referências

HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1994.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 593.

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

SILVERSTONE, Roger. Complicity and Collusion in the Mediation of Everyday Life. New Literary History, Fall 2002.