Por Francielle Laudino; Henrique Perez; Júlia Bahia; Lívia Rigueira.
A minissérie dramática “Nada Ortodoxa”, cujos quatro episódios foram disponibilizados na Netflix em março deste ano, foi inspirada no livro “Não ortodoxa: A escandalosa rejeição das minhas origens hassídicas” de Deborah Feldman. A minissérie conta a história de Esty Shapiro, uma jovem de 19 anos que vive em uma comunidade judaica em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Abandonada pela mãe e com pai alcoólatra, Esty acabou sendo criada pelos avós e pela tia, que eram extremamente rigorosos com as tradições religiosas. Devido a um arranjo familiar, a garota é obrigada a se casar com o judeu Yakov Shapiro.
Infeliz, sem liberdade e num casamento repressivo, Esty foge para Alemanha com a ajuda de Vivian, sua professora de piano. Ao chegar a Berlim, ela descobre um universo completamente diferente e novo, lá ela conhece um grupo de artistas: Robert, Yael, Axmed e reacende os laços familiares com sua mãe. Passando por um processo de autoconhecimento, libertando-se, aos poucos, das regras e dogmas que conduziram sua vida até aquele momento.
A série é construída e desenvolvida ao redor da temática da libertação da mulher, percorrendo uma trama voltada à insatisfação perante uma realidade opressora. A narrativa mostra a cultura judaica hassídica a todo momento, ilustrando bem os detalhes da vivência das tradições culturais e religiosas daquele povo. A série também é bem-sucedida em contrastar o surgimento da cultura hipster e roqueira no bairro nova-iorquino com a cultura da comunidade judaica que vive ali. A região metropolitana de Manhattan congrega um terço dos 6 milhões dos judeus que vivem nos Estados Unidos. Os judeus estão em muitas regiões da ilha, fazendo com que Nova Iorque seja a maior capital judaica fora de Israel. No Brooklyn, estão situados os judeus ortodoxos, onde também estão as maiores sinagogas e os pequenos negócios mantidos por eles.
Através de flashbacks, a minissérie questiona os extremismos religiosos, através de rituais e detalhes específicos da cultura judaica ortodoxa, demonstrando o que levou Esty a fuga e as consequências do seu ato. No decorrer dos episódios, enquanto a judia desgarrada vivencia o tempo presente em Berlim, quem assiste também conhece o seu passado e o que a fez sair de Nova Iorque. Esse recurso amarra a trama e o desenvolvimento da personagem.
Paralelamente à história dela, também acompanhamos a história de seu “marido”, Yanky. Cria-se assim uma ambientação ainda mais favorável para que o espectador se identifique com Esty e torça para ela, sem deixar de captar as razões da “perseguição” do seu marido e primo, de maneira não maniqueísta.
A cenografia é muito bem feita. Mesmo abusando de flashbacks e de passagens entre tempos e espaços diferentes, é impossível se perder entre as locações. Williamsburg é construído de uma maneira tão coerente que parece até que a série voltou décadas no passado, época dos móveis clássicos e tradicionais em madeira escura candelabros e cortinas cor de creme. Os figurinos saídos dos anos 50, celulares antiquados de flip e telefones antigos são detalhes que fazem o mundo ortodoxo cada vez mais real. O apartamento de Esty, por exemplo, parece ter saído direto dos anos 70: a cozinha cor de creme com azulejos bregas em rosa e azul bebê compõe o ambiente.
Ao retratar a cidade de Berlim, a série explora não só a beleza dos monumentos, teatros e baladas, como também relembra a história do povo desses lugares, como, por exemplo, em uma cena no lago, onde um dos personagem conta a Esty que, antes de ser um local de diversão, aquela era uma zona de conflito entre as duas Alemanhas, na Guerra Fria. Dessa maneira, a série usa do cenário como um artifício não só para contar a história de Esty, mas também para criar referências históricas.
A fotografia é fundamental para dar um tom biográfico à história, na medida em que, ela ajuda a olharmos o mundo pelos olhos da protagonista, que na maior parte do tempo está reagindo e percebendo um mundo novo e nem sempre sabe o que dizer diante do que vê. Portanto, a linguagem se dá através de olhares, sentimentos e gestos. Por meio, de closes ups nas feições, em fotografias e objetos, estabelecem-se os capítulos da história e demarcam-se as mudanças de pensamento e transformações sofridas por Esty. Isso pode ser atestado por exemplo, no 1º episódio, quando ela come um sanduíche de presunto e fica desesperada, pois acreditava que aquilo poderia a deixar doente, e depois percebe que o sanduíche não fez mal algum a sua saúde. Outra cena interessante e que assinala outra mudança de pensamento acontece no lago, quando a personagem respira aliviada ao retirar sua peruca de mulher casada.
A direção também é certeira em encenar a opressão que o ambiente ortodoxo (sempre retratado em ambientes fechados, em contraste com as externas de Berlim) exerce sobre as mulheres. Apesar de nas comunidades hassídicas o ato de raspar a cabeça da mulher para o casamento ser feito em um ambiente privado, com a presença da noiva e sua mãe, a minissérie usa desse momento para mostrar os rostos infelizes e mortificados das meninas da comunidade ao verem Esty ter a cabeça raspada. É uma cena de grande impacto, que mostra no rosto confuso da protagonista, um misto de alegria e desespero. É um dos grandes momentos da jovem atriz israelense Shira Haas, cuja luminosa performance está surpreendentemente indicada ao (geralmente dominado por séries em americanas ou em língua inglesa) prêmio Emmy.
Além da cativante jornada de libertação de uma mulher, a série reforça a todo momento os perigos do extremismo religioso, e é impossível não pensar em várias situações ao redor do mundo, e em várias outras religiões, inclusive no Brasil. Essa é sua grande relevância.
Nada Ortodoxa (Minissérie, Alemanha, 2020)
Direção: Maria Schrader;
Roteiro: Anna Winger, Alexa Karolinski, Daniel Hendler (baseado no livro de Deborah Feldman);
Elenco: Shira Haas, Amit Rahav, Jeff Wilbusch, Alex Reid, Ronit Asheri, Gera Sandler, Dina Doron, Aaron Altaras, Tamar Amit-Joseph;
Distribuidora: Netflix;
Trabalho produzido na disciplina de Jornalismo Cultural do 8° período do curso de Jornalismo do Coração Eucarístico.