O mundo distópico de Margaret Atwood

Por Gabriela Barbosa

O “Conto da Aia” é um romance distópico, publicado em 1985 pela canadense Margaret Atwood. Distopias são obras literárias (ou audiovisuais) que enxergam um futuro catastrófico, tornando-se, assim, a antítese da utopia. A partir do século XIX, elas aparecem como um meio de fazer com que os consumidores parem para pensar nos rumos que a história pode tomar, caso alguns elementos da realidade sejam exagerados. Criando uma colcha de retalhos inspirada em acontecimentos reais, Margaret Atwood criou o enredo de “O Conto da Aia”.

Na obra, encontramos uma sociedade totalitária fundamentalista cristã, chamada de República Gilead, que distorce fatos do Velho Testamento para fazer valer suas ordens. O regime é particularmente muito cruel com as mulheres, que são delegadas a apenas funções serviçais. Existem, assim, as Aias (que possuem função reprodutiva), as Marthas (que se dedicam ao serviço doméstico), as Tias (que cuidam da formação de Aias) e as Esposas (que são as mulheres inférteis dos Comandantes responsáveis pela administração do lar).

Nessa história, ambientada nos Estados Unidos, o mundo passou por diversos problemas que afetaram consideravelmente a taxa de natalidade, como epidemia de Aids, acidentes em usinas nucleares, vazamento de armas químicas e uso descontrolado de inseticidas, por exemplo. Portanto, o maior bem da sociedade são as crianças, que garantem seu futuro. Assim, mulheres aptas reprodutivamente têm seus filhos sequestrados e passam por um treinamento obrigatório em que qualquer sombra de opinião própria é revidada com castigos severos.

Acompanhamos a vida narrada pela personagem Offred, mas esse não é seu nome real. O prefixo “of” surge como “de”, demonstrando que ela é propriedade “de Fred”, de acordo com o nome do Comandante da família a quem serve. Sua função se resume a engravidar e, logo, doar o filho para o casal. Durante seu período fértil, as Aias são conduzidas para cerimônias na casa do Comandante com a presença da família e dos funcionários, com leitura de trechos do Velho Testamento e estupro assistido pela Esposa.

Caso o objetivo seja atingido, ela passa, então, para uma próxima família que também precise de herdeiros. Caso falhe em mais de uma família, a Aia é enviada para as Colônias, onde são processados resíduos tóxicos que a condenam a uma morte lenta e dolorosa.

O interesse de Margaret Atwood por distopias começou ainda na adolescência, quando teve acesso a obras de Ray Bradbury, Aldous Huxley e George Orwell. Nascida em 1939, a autora cresceu com o mundo mergulhado na Segunda Guerra Mundial. Após estudos sobre o puritanismo estadunidense do século XVII e sobre as utopias e distopias dentro de um contexto onde o crescimento da direita religiosa era visível, Atwood se fez a pergunta: “se a América tivesse uma ditadura, de que tipo ela seria?”. Assim, se baseou no cenário dos anos 1980, utilizando-se de acontecimentos reais de diversas culturas para criar a trama de “O Conto da Aia”.

A teocracia presente em Gilead foi inspirada pela ascensão da direita religiosa no início dos anos 1980, segundo Atwood. Teocracia é um termo de origem grega que significa “governo divino”, portanto, nesse sistema, a religião é o que orienta as decisões tanto políticas quanto policiais e jurídicas. Um dos maiores exemplos é o Antigo Egito, onde o faraó era adorado como um filho do deus Amon-Rá e visto como a encarnação do deus Hórus.

Em “O Conto da Aia”, as castas que separam as mulheres entre Aias, Marthas, Tias e Esposas está igualmente presente nas suas vestimentas. As Esposas, como são conhecidas as mulheres dos Comandantes, usam o azul da pureza; as Marthas, responsáveis pelos afazeres domésticos, o verde; já o marrom é a cor que identifica as Tias. Para as Aias foi delegado o vermelho-sangue que, segundo Atwood, era utilizado por prisioneiros de guerra no Canadá por ser mais visível na neve, além de ser uma referência a Maria Madalena.

Organizar as pessoas a partir da vestimenta não é uma prática recente. Margaret Atwood revisita a era da Mesopotâmia e encontra sua justificativa no Código de Hamurabi, ressaltando um trecho onde apenas damas aristocráticas poderiam usar véu – caso uma escrava fosse vista de véu, a condenação seria a pena de morte por tentar se passar por outra pessoa. O traje das aias bebe em várias referências, como as toucas da era vitoriana e os capuzes das freiras, além do chador, vestimenta feminina que cobre todo o corpo, exceto o rosto, que foi usado por Atwood em uma visita ao Afeganistão, em 1978.

Na introdução da nova edição do livro, a autora afirma que “o controle da mulher e de bebês tem sido uma característica de todo regime repressivo no planeta”, remetendo especificamente a dois momentos da história que lembram a situação de Gilead.

O primeiro aconteceu durante o regime nazista, num programa de reprodução chamado Lebensborn, cujo objetivo era aperfeiçoar e expandir a raça ariana e inibir o número de abortos que, à época, eram contados cerca de 600 mil anualmente. Oficiais alemães eram “incentivados” a casar e reproduzir, enquanto mulheres que poderiam provar sua ancestralidade ariana recebiam auxílio financeiro para terem filhos, que logo ficavam à mercê da SS. Com a expansão do programa, mulheres de outros países, como Noruega e Polônia, que se encaixavam nos padrões estéticos, tinham seus bebês sequestrados. Crianças que falhavam no teste de pureza racial eram enviadas para orfanatos e executadas.

O segundo momento ocorreu durante a ditadura argentina (1936-1986), onde mais de 500 bebês, filhos de militantes da esquerda, foram sequestrados e adotados por apoiadores do regime. O objetivo era não só “reorganizar” a sociedade como também reafirmar a força do governo.

A infertilidade no mundo de Gilead é um dos problemas mais preocupantes na ficção. No enredo, a personagem principal atribui a culpa ao ambiente tóxico. As chances de um bebê nascer saudável é de 1 para 4. Enquanto para os poderosos de Gilead a infertilidade é atribuída apenas às mulheres, duas personagens ao longo da trama sugerem que a infertilidade masculina é a grande vilã. Na obra, não só a Esposa do Comandante como também o médico que consulta Offred sabem que a questão é mais complexa. Assim, a autora faz um gancho com alguns estudos na China, um país que sofre problemas ambientais e tem mostrado uma queda na fertilidade masculina.

Em Gilead, as mulheres são proibidas de ler, de se informarem, de esboçarem opiniões próprias. Em “Fahrenheit 451”, obra do escritor de ficção científica Ray Bradbury, encontramos um cenário no qual livros são terminantemente proibidos e o trabalho dos bombeiros consiste em queimá-los. Voltando para a história, essas cenas de queima de livros ocorreram em diversos momentos da história, como na Inquisição Espanhola e no Terceiro Reich, com obras que eram consideradas hereges ou contrárias às ideologias. Atwood também se refere à proibição de escravos estadunidenses de aprenderem a ler ou escrever. Para os historiadores, acreditava-se que a educação era uma arma para fomentar rebeliões.

Por fim, há a Resistência denominada Mayday. “Mayday costumava ser um sinal radiotelefônico de pedido de socorro, muito tempo atrás, numa daquelas guerras que estudamos no colégio”, conta Offred. O termo anglicizado vem direto do francês M’aidez, ou “me ajude”. Para estruturá-lo, Atwood pesquisou movimentos de resistência na Segunda Guerra Mundial e conversou com alguns residentes. Ela menciona integrantes do grupo Rosa Branca executadas por distribuírem panfletos contra o nazismo e espiãs britânicas que também operavam como assassinas.

Ao final do livro, há um capítulo denominado “Notas históricas” que simula a transcrição de uma palestra no XXII Simpósio sobre Estudos de Gilead, que ocorre no dia 25 de junho de 2195. Nele, um professor da Universidade de Cambridge, Inglaterra, chamado James Darcy Pieixoto, analisa trinta fitas cassetes gravadas por Offred, encontradas em um baú de metal vedado por fita adesiva, fruto de uma escavação num sítio arqueológico no estado do Maine. Pieixoto faz uma análise dos dados coletados a partir das fitas e os cruza com informação que angariou desde então na pesquisa sobre o período histórico de Gilead.

Esse trecho é bastante rico para entender as motivações da autora para determinadas situações dentro da trama, como eventos reais que inspiraram o enredo e análises “de fora” de Gilead. Vale a pena ler esse capítulo do livro, que também elucida possibilidades do que veio a acontecer com Offred, a personagem narradora da história.

Gabriela Barbosa é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC Minas e graduada em Publicidade e Propaganda. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa.