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Tomates mofados
Tomates mofados são próprios para consumo? (Imagem de Gábor Adonyi via Pixabay)

Você tem fome de quê?

Por que enquanto algumas pessoas passam fome, a mídia tradicional escreve sobre o consumo de comida estragada?

No dia 22 de abril de 2021, a Rede Massa, afiliada do SBT no Paraná, reproduziu uma reportagem com a seguinte chamada: “Gás caro e comida mais saborosa: fogão à lenha vira xodó nas casas”. Alvo de revolta pelos internautas, a matéria foi excluída do canal da Rede Massa no YouTube, após a emissora ser criticada por romantizar a pobreza e mascarar o problema do aumento no valor do gás e, também, no número de pessoas passando fome.

Internautas ironizam reportagem da Rede Massa. Reprodução / Twitter

Mais de 125 milhões de brasileiros lidam com a falta de acesso a alimentos durante a pandemia. Este dado, de um estudo feito pela Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB), revela uma faceta preocupante do país. Diante desse cenário, o tema sobre insegurança alimentar pode servir de ideia para diversas pautas.

Para Moriti Neto, um dos fundadores de O Joio e O Trigo – projeto de jornalismo brasileiro que investiga a alimentação com apelo político -, essa pauta transparece a superficialidade da cobertura jornalística em questões urgentes. Segundo o repórter, a alimentação é uma temática recheada de camadas, mas os jornais, em geral, não aprofundam a apuração. Ele afirma que vê esse tipo de pauta como “irresponsável e perigosa”, e continua: “Não é questão de virar moda [o uso de fogão a lenha] ou não, as pessoas não estão conseguindo comprar gás!”

A pauta da fome no jornalismo

Neto explica que o projeto O Joio e O Trigo nasceu de uma tentativa de suprir uma lacuna na imprensa brasileira: o buraco na cobertura acerca da alimentação pelos veículos de mídia, para além das questões gastronômicas ou estéticas. Devido a sua trajetória no meio e à luta por uma cobertura jornalística justa, o redator indaga: “Cadê a preocupação primeira com a justiça social e socioeconômica?”. Para ele, pautas alimentícias superficiais acabam por esvaziar uma questão importante sobre alimentação, que vai além do consumo e da dieta. 

Além da reportagem da Rede Massa, o jornal Folha de S. Paulo, que faz parte do Grupo Folha, também foi alvo de críticas. Um dos principais conglomerados de mídia do país, que afirma ter como princípios editoriais o pluralismo, o apartidarismo, o jornalismo crítico e a independência, publicou uma reportagem denominada “Quando é seguro comer pão, queijo e outros alimentos mofados”.

Na mesma linha, o jornal O Globo, que, segundo o site oficial, também preza pela isenção, foi responsável pela publicação da matéria “Refeições para fazer em uma panela só ajudam a economizar gás e água; confira as receitas”.

Segundo o professor Mozahir Salomão Bruck, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa, em Portugal, e Diretor da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas, o jornalismo é ator social burguês, com interesses políticos e sociais elitistas. Apesar de relutante quanto às motivações que levam um jornalista a surgir com uma pauta – que, segundo ele, pode ser ou não ideológica –, faz-se necessário, de acordo com Bruck, “tomar a agenda na relevância, na urgência e na gravidade que ela tem.”

Nessa perspectiva, a enunciação da imprensa – para quem fala, como fala e por que fala -, torna-se objeto de estudo.

Enquanto as pessoas estão morrendo de fome, tem gente discutindo o que é ou não seguro comer. Mas isso faz o jornalismo menor? Não. Isso mostra que a sociedade é abismal, você tem um abismo entre pobres e ricos, e ela [a sociedade] é composta por pobres e ricos. O problema não é esse tipo de pauta existir, mas o outro lado não estar bem coberto”.

Mozahir Salomão Bruck

Quanto à escolha de pautas, Mozahir discorre: “O jornalismo, dentro da função ética e do compromisso com a cidadania, tem que saber hierarquizar. Só que, em função das opções editoriais do veículo e, prevalentemente, por falar para a classe média, em função do perfil de público, ele hierarquiza outras pautas”. Segundo ele, do mesmo jeito que a história é a história dos vencedores, no jornalismo, a pauta privilegiada não é a dos pobres: “Esse tipo de pauta resulta de uma visão social da mídia burguesa.”

As escolhas de pautas e como os jornais decidem hierarquizar suas notícias são reflexões presentes no meio jornalístico e fora dele. De acordo com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o respeito ao interesse público e a responsabilidade social são princípios do jornalismo. Mas não é apenas isso que interfere nas escolhas dos assuntos, segundo Mozahir, “o jornalismo trabalha muito numa ambiência cultural de sentido no qual ele vai monitorando. [Essas matérias] Fazem sentido para um determinado público. Tem que buscar entender qual o sentido e qual o destinatário dela”, conclui.

Matéria desenvolvida pelas estudantes Bárbara Faria, Laura Peixoto, Letícia Mendes na disciplina de Jornal Laboratório, no semestre 2021/1.

Leia também: Lições e desafios da cobertura jornalística na pandemia.

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Colab é o Laboratório de Comunicação Digital da FCA / PUC Minas. Os textos publicados neste perfil são de autoria coletiva ou de convidados externos.

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