A violência doméstica contra a mulher é definida no artigo 5° da Lei nº 11.340 de 07 de Agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. De acordo com o Instituto Maria da Penha, as vítimas podem ser de qualquer classe social, orientação sexual, raça e idade. Já o agressor pode ser homem ou mulher e ter com a vítima uma relação amorosa ou familiar. Segundo levantamento do g1, o número de feminicídios no Brasil aumentou em 5% entre 2021 e 2022, ano em que 1,4 mil mulheres foram mortas nessas condições.
Como reflexo da realidade social do país, a questão também é retratada em obras da ficção. Recentemente foi lançado o filme Angela, baseado na história real da socialite mineira Ângela Diniz, assassinada pelo namorado, Doca Street, em um crime que teve repercussão nacional em 1976. Em agosto de 2023, um mês antes da estreia, o STF tornou inconstitucional a tese de legítima defesa da honra, adotada pelos advogados de Doca no caso. O argumento era usado no julgamento de crimes para justificar o comportamento do acusado, alegando que o assassinato ou a agressão eram aceitáveis quando a conduta da vítima supostamente ferisse a honra do agressor.
O papel do cinema na conscientização
Formada em jornalismo, Naura Schneider trabalhou como repórter e apresentadora na Rede Globo, até que migrou para a dramaturgia e fez várias novelas dentro da emissora. Posteriormente, Naura fundou a Voglia Produções, que há mais de 15 anos foca em produções para teatro, televisão e cinema relacionadas ao universo da mulher na sociedade brasileira. Entre seus trabalhos de destaque estão o documentário O Silêncio das Inocentes (2010), sobre a aplicação da Lei Maria da Penha no Brasil, e o filme Vidas Partidas (2016), drama ficcional que conta a história de um relacionamento abusivo.
A ideia de seu primeiro filme dentro dessa temática, Dias e Noites (2008), veio após a leitura do livro do autor Sérgio Jockymann, no qual a obra se inspira. “Eu fiquei encantada porque era uma história real. Falava de uma mulher que se separou do marido, na década de 60, e toda a carga que aquilo trazia, porque ela apanhava dele e também perdeu a guarda dos filhos. Enfim, mais uma dessas histórias que a gente ouve as avós e as mães contarem, que são muito reais e até hoje acontecem pelo Brasil inteiro”, conta.
Naura, então, percebeu a necessidade de abordar mais essa questão, visto que as próprias pessoas da produção do filme passaram a procurá-la para contar que conheciam mulheres, sejam parentes ou amigas, que tinham passado por agressões. “Eu percebi que a realidade da violência doméstica estava muito mais perto do que eu imaginava. Eu, graças a Deus, nunca passei por isso, mas comecei a ver que era algo muito recorrente. Na época [início dos anos 2000], não se falava muito em violência doméstica, inclusive, conseguir patrocínio para esse tipo de trabalho era meio complicado, as empresas não queriam se envolver”, conta.
A atriz começou a se aprofundar no tema e, após três anos de estudo, lançou o documentário O Silêncio das Inocentes. “Comecei a entrevistar várias mulheres no Brasil, inclusive a própria Maria da Penha. Só que esse documentário criou asas. Ele ganhou o prêmio de melhor média-metragem da América Latina, fui para Paris com ele, para Portugal…começou a ter uma importância. Muitas pessoas me ligavam das universidades, estudantes de direito, de psicologia, advogados, me pedindo o DVD. Foi realmente um marco nesse sentido, e aí eu percebi que eu devia falar desse assunto”, comenta a cineasta.
Eu fui entendendo, ao longo do tempo, o quanto essas mulheres tinham uma dependência psicológica, uma autoestima extremamente abalada, e, às vezes, um histórico de família que fazia com que elas entendessem que aquilo era uma forma de amor. Então, isso foi me deixando cada vez mais instigada com essa temática. O Silêncio das Inocentes foi um documentário despretensioso, não fiz imaginando que se tornaria uma referência. Ele cresceu sozinho, porque preencheu uma lacuna de um tema que não tinha tanta representação
Naura Schneider, atriz e produtora
Ficção x realidade
Para Naura Schneider, a informação é uma arma importante no combate à violência, pois as mulheres precisam saber identificar que estão em uma relação abusiva:
Eu acho que o cinema, como a arte de modo geral, pode contribuir muito. A ficção fala de um tema que é muito árido e pesado, de maneira mais lúdica. É mais fácil sentar e assistir um filme, como o Vidas Partidas, do que ouvir uma mulher em um aniversário, em uma reunião, contando a história dela. Geralmente, isso traz angústia, porque ninguém quer saber ou ver. É a velha frase que costumam falar: “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Gera um estranhamento nas pessoas. Mas se você assiste um filme ou uma peça, você está ali vendo uma expressão artística, porém, que está contando a realidade
Naura Schneider, atriz e produtora
Sobre a preparação, como atriz, para interpretar personagens que sofrem violência doméstica, ela conta que o processo leva vários meses e envolve, entre outras coisas, conversar com mulheres que passaram por isso. No filme Vidas Partidas (2016), Naura vive a personagem Graça, uma mulher que sofre violência física do marido Raul (Domingos Montagner), e fica paraplégica após um dos episódios de agressão. “Em certos momentos em que a personagem aparece chorando, eu estava chorando de verdade, porque preciso buscar uma carga emocional muito pesada e nós somos humanos, né. Lembro de experiências, do tipo ‘eu me senti assim naquela época com fulano’. Você vai buscando essas coisas e é quase uma terapia, você joga para fora. O cinema te proporciona isso”, conta.
A atriz destaca a importância da representação da violência doméstica nos filmes para mulheres que foram vítimas: “Lembro que quando terminou o Festival de Recife, algumas mulheres vieram falar comigo. Elas seguravam a minha mão e diziam: ‘Você contou a minha vida, você falou da minha vida’. Aquela ficção era real para elas”, comenta. Naura ressalta que antigamente o assunto era menos abordado, mas isso tem mudado nos últimos anos. “Hoje quase toda novela tem alguém que passa por isso. O assunto de assédio, agressão e feminicídio é mais falado. E quanto mais for falado, mais pessoas serão conscientizadas”.
A violência de gênero nas novelas brasileiras
Lorena Caminhas, doutora em Ciências Sociais e pesquisadora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), analisou 21 novelas em que agressões contra mulheres foram representadas. O estudo está publicado no artigo Violência de gênero e telenovelas nacionais: um diagnóstico crítico, disponível aqui.
De acordo com a pesquisadora, a telenovela, enquanto produto cultural, foi pensada para ser um retrato da nação. Logo, tudo o que é importante na sociedade acaba aparecendo nas telas. É o caso de problemas de gênero: o Brasil possui altas taxas de feminicídio e violência contra as mulheres, por isso o tema é constantemente representado nas novelas.
Caminhas ressalta que as moralidades sociais estão inseridas nas narrativas, porque tanto os autores quanto o público vivem nesse contexto. “A novela não só se alimenta do nosso cotidiano, da nossa moralidade conservadora, como também ajuda, por outro lado, a construir isso. Uma coisa alimenta a outra. Por isso eu acho que ela ainda é um fenômeno importante. Apesar de hoje termos streamings e tv à cabo, as novelas, sobretudo as da Rede Globo, continuam sendo parte da narrativa sobre a nação e da forma como vemos os lugares das pessoas”
Dois lados da mesma moeda
Segundo a pesquisa, apesar das novelas terem contribuído para “trazer à tona um problema público”, que é a violência de gênero e “construir uma visão mais crítica”, a forma como o tema é tratado é ambígua: “A teledramaturgia tem duas maneiras de representar a violência: uma maneira é representá-la de fato como uma violência, dentro do prisma: isso é caso de segurança pública e tem que ser remediado na justiça. A outra é naturalizá-la, ou seja, usar casos em que a violência supostamente seria mais branda, amena ou até aceitável”, conta.
Muitas novelas fizeram essa movimentação de mostrar o que é violência doméstica, feminicídio, e também outros tipos de violências, como a psicológica e a patrimonial, que costumam acontecer dentro do lar. Por outro lado, temos várias cenas de vilãs, por exemplo, sofrendo agressões, inclusive de homens, e essa violência é naturalizada. É colocada como “aqui se faz, aqui se paga.” Aquilo não vai ser tratado como uma violência. Pode ser visto como uma revanche, um momento de fraqueza, de baixa da personagem de fazer suas armações, mas não como uma violência
Lorena Caminhas, integrante do Grupo de Estudos em Gênero, Mídias, Desigualdades (GEMID/USP)
A pesquisadora acrescenta que as novelas apenas refletem a maneira como o assunto é tratado na vida real. “As violências que a sociedade enquadra como muito sérias, a novela não naturaliza. Mas violência não é só apanhar com um cinto, com uma raquete, levar um soco no olho. Nós naturalizamos uma gama de outras violências. Quando não é algo explícito, às vezes é tratado como parte do relacionamento, ou, na narrativa das vilãs, é colocado como um castigo que elas precisavam”.
Avanços no debate
Lorena acredita que a televisão brasileira está em processo de evolução nesse sentido, sobretudo na última década. “A retratação mudou. Nos anos 2000, a violência era ‘relevada’, colocada dentro da relação familiar, como se dentro da própria casa fosse possível resolver. Hoje, já temos novelas que falam: ‘Não, isso é caso de polícia. É caso de justiça, é caso de denúncia’. Então, a questão vai se constituindo cada vez mais como um problema público”.
“A violência contra as mulheres não é uma questão de relacionamento falido, e sim de algo sistemático, estrutural. Isso é retratado em um processo complexo, tanto de quem está produzindo/escrevendo, de incorporar essas pautas, quanto do público, que cada vez mais exige que esses imaginários sejam trabalhados, porque agora enxerga as histórias de uma forma diferente. Existe a interlocução da novela com quem assiste, o que faz com que os autores tenham que pensar essas mudanças”
Ciclo da violência doméstica
De acordo com o Instituto Maria da Penha e o Casm Bh, no contexto conjugal, as agressões acontecem dentro do ciclo da violência doméstica, que tende a se repetir até ser quebrado. Esse fenômeno é dividido em três fases:
- Criação da tensão: o agressor está irritado e a violência começa com xingamentos, ofensas ou ordens crescentes;
- Ato de violência: a vítima sofre agressões que podem ser físicas, psicológicas, financeiras, morais ou sexuais;
- Lua de mel: o agressor demonstra culpa, promete mudanças e pede desculpas. Um período de tranquilidade inicia e ele tenta convencer a mulher a continuar no relacionamento.
Tipos de violência doméstica
Cinco tipos de violência contra a mulher podem ocorrer:
Colaboração: Lorena Marcelino
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