Anna PaimRicardo Parreiras, o experiente radialista de 95 anos, chegou à Rádio Inconfidência na véspera do carnaval deste ano e, para sua surpresa, recebeu a notícia de que haveria uma reunião no dia seguinte com o diretor artístico. A colega de rádio Maria Lúcia Carneiro, mais conhecida como Lucinha, também convocada, indagou-o sobre o motivo da reunião. Ele pensou em duas possibilidades: aumento da carga de trabalho ou aumento salarial. Ledo engano.
Pediram que Parreiras e quatro colegas entrassem em uma sala de espera. Quando o chamaram, sozinho, havia dois homens sentados. O diretor artístico, então, apresentou-se. Ricardo perguntou se o sujeito era mesmo o “chefe”, pois, em décadas de atuação na empresa pública, nunca o tinha visto andando pela rádio nem interagindo com os funcionários. Era um “piloto de mesa”, conforme define o radialista.
O outro presente na sala foi apresentado como sendo um representante do departamento jurídico da emissora, que lhe entregou um papel cheio de palavras rebuscadas. Sem entender o complexo conteúdo presente no documento, Parreiras perguntou sobre o que aquilo realmente se tratava. Foi então que recebeu a fria e inesperada resposta do diretor artístico: “o senhor está sendo demitido da rádio”.
Sob esse ponto de vista, Ricardo Parreiras narra os acontecimentos ocorridos entre os dias 16 e 17 de fevereiro de 2023, que marcaram o fim de quase 75 anos de contribuição e serviços prestados à Rádio Inconfidência.
Da infância em Bonfim aos estúdios da Inconfidência
Ricardo Parreiras nasceu em Bonfim, no Colar Metropolitano de Belo Horizonte, em Minas Gerais, no dia 17 de janeiro de 1928. De família humilde, mudou-se para a capital mineira ainda na infância. O primeiro contato com o rádio se deu por meio de um convite do vizinho, cujo pai havia recentemente comprado o aparelho. Desde então, Parreiras se encantou, principalmente pela voz de figuras como o carioca Orlando Silva, conhecido como o “cantor das multidões”. “Me tornei ´Orlandista´ desde essa época”, afirma o locutor. Ele relata que, na sua juventude, o rádio era a “grande vedete de uma casa”, onde todos se reuniam em volta daquele aparelho e ficavam durante horas ouvindo os programas.
O rádio é o grande companheiro
Ricardo Parreiras, radialista
A longeva passagem pela Rádio Inconfidência começou por influência de amigos que o encorajaram a entrar na rádio, impressionados pelo seu talento musical. Na família não havia artistas. A mãe, por exemplo, trabalhava como costureira para ajudar na renda da casa, cantando enquanto “pedalava” na máquina de costura.
“Acabei indo à Rádio Inconfidência porque era a maior rádio de Belo Horizonte”, justifica-se, em tom nostálgico. Cheio de estímulos, procurou o diretor do programa “Escola de Rádio”, o músico Elias Salomé, para que pudesse fazer um teste. Foi conduzido, então, a uma sala onde havia um piano e, a pedido do diretor, começou a cantar. No meio da audição, foi interrompido por Salomé, que disse: “Você é ótimo! Você é ótimo! Está inscrito no programa”, recorda Parreiras.
Inicialmente, utilizava seu nome registrado em cartório, José Parreiras, e junto com outros candidatos elaborava, semanalmente, um número musical para o programa. Após meses de participação, ganhou um concurso interno que o levou à Seção Artística da rádio. Ganhando cada vez mais espaço, conheceu o locutor esportivo Paulo Nunes Vieira, que lhe sugeriu um novo nome artístico, afirmando que “José” era nome de “tocador de sanfona”, relembra o veterano. Inspirado no artista mexicano Ricardo Montalbán, dessa forma, nasceu o irreverente comunicador Ricardo Parreiras.
Logo no início de sua trajetória outras oportunidades foram aparecendo na Inconfidência. Parreiras não se restringiu à música e começou a atuar também em radionovelas. Além disso, também se aventurou na produção e vozes de programas humorísticos. Esse estilo eclético permitiu com que ele passasse por quase todos os departamentos da emissora, de cantor a diretor artístico, no caso deste sendo nomeado pelo vigente governador ao cargo na década de 1960. A produção de seu primeiro programa musical teve a participação da então desconhecida cantora Clara Nunes, falecida precocemente aos 40 anos, cujo lançamento ele atribui a si e, com orgulho, se descreve como o seu “primeiro produtor” .
No entanto, a atuação jornalística não se restringiu aos trabalhos na rádio. Parreiras escreveu para o jornal “O Diário”, da Cúria Metropolitana, e atuou como locutor em anúncios publicitários. Mostrando a sua carteira de trabalho, Parreiras, enfaticamente, diz: “eu sou jornalista, radialista e publicitário com muita honra”.
Até o momento de sua demissão, apresentava o “Clube da Saudade”, transmitido de segunda a sexta, das 22h à meia-noite, e conduzido por ele desde 2006. O programa era voltado a um público idoso, ou, nas palavras de Ricardo, “da bela idade”. Com emoção, ele fala sobre esses espectadores espalhados por todo o Estado de Minas Gerais e que agora se encontram “órfãos” pelo fim de sua atração, tendo em posse cartas que lhe mandavam na época do programa até os dias de hoje, cujas histórias o ajudam a relembrar os bons momentos que ele viveu durante os quase 75 anos de carreira.
Demissão, críticas e apontamentos
Quase dois meses após a demissão, o semblante e o tom de voz não escondem a insatisfação pelo episódio. A atual situação da Rádio Inconfidência também o incomoda profundamente. Ricardo denuncia problemas na infraestrutura da rádio, afirmando que “até os fones estão caindo aos pedaços”. Critica também os baixos salários dos operadores de som, profissionais essenciais para o funcionamento de uma rádio. “R$1,5 mil por mês é um absurdo”, denuncia, indignado.
O cara fala que eu não sou concursado e por isso estou sendo demitido. Foi quando eu perguntei: mas levaram 75 anos para descobrir que eu não poderia trabalhar na área, que eu não sou concursado? Quer dizer que a rádio tem trabalhado errado todos esses anos?
Ricardo Parreiras, radialista
Além disso, ele acredita que a razão do descaso com a Rádio Inconfidência, uma emissora pública, tenha como objetivo uma futura tentativa de privatização por parte da gestão do atual governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo). “O papo que a gente ouve no nosso meio é que ele quer esvaziar a rádio, esvaziar a TV Minas para ficar mais fácil para vender.”
O radialista relata uma viagem que fez com a esposa, hoje falecida, a Araxá, terra natal do governador. Durante sua estadia, conta que viu diversas lojas, caminhões e postos de gasolina estampando o sobrenome Zema. “É o dono dessa cidade”, afirmou na ocasião. Parreiras não contém a indignação em relação às atitudes do atual chefe do Executivo estadual, ressaltando, principalmente, a aparente falta de interesse em relação à valorização da cultura.
Durante a conversa, Ricardo menciona a participação recente de Zema em uma entrevista para uma rádio da cidade de Divinópolis. Nela, o governador foi presenteado com um livro de poesias da renomada autora Adélia Prado, e, em uma gafe, perguntou se ela era funcionária da rádio. “Nosso governador não sabe quem é Adélia Prado”, acusa.
Em homenagem aos desligados da Rádio Inconfidência na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), realizada em 22 de março deste ano pelas comissões de Cultura e do Trabalho, da Previdência e da Assistência Social, Ricardo Parreiras teve a oportunidade de expressar seu descontentamento publicamente. “Xinguei o governador, xinguei os diretores”, conta. O radialista, no término de sua fala na ALMG, acatou aos pedidos e cantou a música “Cabelos Brancos”, seguida por longos aplausos da plateia.
Olhando para o futuro aos 95 anos
Portanto, após décadas no jornalismo e de uma saída traumática da Inconfidência, o triste clima da recente demissão ainda é sentido. Nessa difícil empreitada, tem ao seu lado o apoio integral do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais (SJPMG) em busca de justiça e do cumprimento de seus direitos. Parreiras ressalta, ainda, a importância de pessoas próximas durante todo esse processo, classificando-as como “família”, independentemente de laços sanguíneos.
Minha primeira família é a que mora comigo, meus filhos e meus netos. Minha segunda família mora na Rádio Inconfidência, meus colegas, meus amigos e minhas amigas. E a terceira família são os ouvintes
Ricardo Parreiras, radialista
A jornada de Ricardo Parreiras se confunde com a história da rádio mineira. Os acontecimentos que seguiram a sua demissão causaram uma evidente revolta ao radialista. Entretanto, ele se mantém resiliente, com sensação de dever cumprido e ansioso para o que o futuro lhe reserva.
Porém, apesar dos constantes apelos e convites para um retorno à prática jornalística, aos 95 anos de idade, o veterano alega que já trabalhou demais e parece decidido a seguir novos caminhos — dessa vez, fora do jornalismo — programando, inclusive, viagens. Primeiro destino? Arraial d’Ajuda, na cidade de Porto Seguro, no litoral Sul da Bahia.
Conteúdo produzido por Gabriela de Araújo Sousa, João Antônio Cunha, João Victor Gambogi, João Victor Vieira, Lucas Luckeroth e Thiago Lucchesi na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard e do estagiário docente Marcus Túlio.
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