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O Karioca da Rua dos Timbiras

“Eu preferi pegar o trecho. Comecei a conhecer a rua, a viver na rua, morar na rua, dormir na rua e fazer as minhas necessidades físicas, pessoais, conhecendo a rua”. Foi com essa fala que o morador de rua, carinhosamente apelidado de Karioca pelos amigos, iniciou nossa entrevista em um sábado ensolarado, em meio ao movimentado cruzamento da rua dos Timbiras com a São Paulo, no centro de Belo Horizonte.

Foi nessa mesma região que conheci Karioca. Em uma quarta-feira, na hora do almoço, estava chegando no meu Up prateado para visitar meu namorado na rua dos Timbiras quando um moço apareceu correndo e indicando onde eu deveria estacionar. Na hora, já fiquei incomodada com a abordagem de um flanelinha e por ter que, como de praxe no centro-sul de BH, pagar para estacionar meu carro em uma via pública. Porém, quando parei o veículo, fui recepcionada como nunca antes por esse homem sorridente e simpático que recusou as moedinhas que lhe ofereci. Ele considera injusto ter que pagar para estacionar na rua, uma vez que o motorista já tem vários gastos, como gasolina alta e IPVA.

A figura daquele homem ficou na minha cabeça por alguns dias. Uma semana depois, eu o vi de novo, e fui novamente muito bem recebida ao sair do carro. Tentei dar umas moedinhas, mas ele recusou novamente e, ainda, jogou várias notas de R$20 e R$50 no meu carro, falando: “amizade não se compra. Mas se for para comprar, quanto você quer para ser minha amiga?”. Coloquei meu namorado para descobrir quem era esse moço que parecia conhecer tudo e todos na Timbiras. Descobrimos: Wedson mora na rua, próximo ao cruzamento da Timbiras com a São Paulo, há cerca de quatro anos. Não mendiga, anda sempre cheiroso e é extremamente educado; tem uma fé em Deus inabalável; trabalha de CLT; e não deseja sair das ruas. Fiquei curiosa para conhecer mais sobre sua história e o que o levou do Rio de Janeiro a Minas Gerais.

Infância marcada pelo abandono

Wedson Ribeiro Mota nasceu em 1988 na cidade de Cabo Frio (RJ), mas cresceu na cidade vizinha, São Pedro da Aldeia. Ele é o mais velho de seis filhos, foi criado por sua mãe, Jocélia, e nunca conheceu o pai. Sua infância foi marcada por sofrimento e vulnerabilidade. Aos 12 anos, começou a trabalhar no Posto Elefantinho, em São Pedro da Aldeia, enchendo pneu e lavando carro. Quando Karioca tinha 18 anos, Jocélia faleceu devido a uma úlcera e ele precisou fazer uma escolha: entrar para o crime ou “sair pelo mundo”. Wedson comenta que para a juventude de grande parte das periferias brasileiras é oferecida a opção de ir para o crime. 

Para ser sincero, o crime paga mais. Uma pessoa lá no Rio de Janeiro que vende drogas, ganha R$ 800,  R$ 1000 por dia. Quem não vai querer entrar para o crime ao invés de trabalhar uma semana e ganhar  R$ 400,  R$ 500? O dinheiro entra mais rápido e mais fácil.

Karioca

O caminho do crime foi a escolha de dois dos seus irmãos. Um deles, que Karioca chama de Rivarola, se envolveu com a criminalidade  aos 17 anos. Foi assassinado pouco tempo depois e seu corpo nunca foi encontrado. Pelo menos, é assim que Wedson conta a história. Ele comenta que sua outra irmã, Angélica, conhecida como Jessiquinha do Pó, foi presa em Cabo Frio pela segunda vez, em fevereiro de 2023, após uma denúncia. Ela foi detida em flagrante por tráfico de drogas, carregando cocaína e maconha.

Já Karioca, que defende que sua irmã está “pagando pelos erros dela”, é contra o crime. Por isso, aos 18 anos, ainda muito jovem para criar os irmãos mais novos e muito velho para não se responsabilizar por suas escolhas, ele decidiu mudar-se para Porto Alegre e conhecer a vida nas ruas.

12 estados e 50 cidades

Wedson conta que escolheu ir para Porto Alegre (RS) porque um colega seu, chamado Arlindo, tinha parentes na cidade que poderiam lhe dar suporte. Ele arrumou um emprego em uma transportadora, onde era ajudante de caminhão, e foi morar na rua. Ficou somente sete meses na capital gaúcha, que considerava um lugar muito frio para quem dorme na rua.

A testa de Karioca tem marcas de quem já viveu muitas vidas. Durante anos, realizou viagens e conheceu 12 estados e mais de 50 cidades no Brasil, entre eles Espírito Santo, Paraná, Alagoas e São Paulo. Nesse período, sempre morou na rua e viveu de forma digna, afirma. Essa época é nebulosa, uma vez que a fala rápida e pouco linear de Wedson deixa lacunas em sua descrição. Há cerca de 11 anos, quando retornou para Cabo Frio e trabalhava vendendo pizza, conheceu Michele. Eles foram casados durante cinco anos, ainda que Karioca não considere que a vida de casado seja para ele. Da união, nasceu Valentina, de 5 anos. “Eu fiquei durante esse tempo casado mesmo porque eu era doido para ter um filho. Quando minha filha fez 3 meses, eu desisti de tudo. Não desisti, né? Eu queria ter liberdade, eu não quero viver uma vida presa pagando luz, aluguel, água, prestação… eu quero ter uma vida livre”.

Ele trata a rua como um sinônimo de liberdade. Ao contrário do que muitos acham, não considera morar na rua difícil, mas alerta que não é para qualquer um. Wedson afirma que não se trata de uma preferência, mas um costume. Ele considera um absurdo a realidade de muitos brasileiros de trabalhar o dia inteiro, ganhar um salário mínimo e ainda pagar muitas contas: “Eu sou livre, eu não pago luz, aluguel, água, internet. Tudo o que eu trabalho é para mandar a pensão da minha filha, para comer, para me vestir”. Karioca afirma que mora voluntariamente na rua e que deseja continuar:

Nada vai me tirar da rua, nem se um cara me der um milhão de reais para me tirar da rua hoje em dia, eu não quero. Ele pode me dar o que for, um carro, uma BMW, um milhão e falar: “Karioca, eu quero que você saia daqui”, eu falo “pode pegar seu carro, pode pegar seu dinheiro e vá com Deus”.

Karioca

Questionado sobre qual considera a pior coisa de morar na rua, Wedson critica pessoas que utilizam drogas, principalmente o crack. Ele acha que quem usa está doente: “Não tem cabimento a pessoa abrir a lata de lixo, pegar um pedaço de coxinha, de pão, de queijo e comer, o cara está doente. Eu não vejo outra resposta a não ser uma doença”.

Rua dos Timbiras

Karioca conta que muitos que estacionam na rua o olham como se fosse usuário de drogas ou bandido. Inclusive, quando chegou na Rua dos Timbiras há quatro anos, era comum chamarem a polícia por taxarem-no como bandido. O sotaque carioca de Wedson serviu, segundo ele, para reforçar esse julgamento.

Os anos de convivência permitiram que moradores e trabalhadores da rua o conhecessem melhor. Diversos comerciantes relataram que ele é muito prestativo e ajuda várias pessoas da via, principalmente lavando carros e carregando compras das idosas que vivem na região. Marcos, dono do Restaurante Coqueiros, onde Wedson costuma almoçar, conta que ele protege o quarteirão de assaltos. Cleiton, sócio do DEC Salão de Beleza, comenta que o morador de rua – como escolheu ser chamado – tem um coração bom e que, por morar quase em frente à fachada do salão, deixa a calçada sempre limpa.

Karioca é quase um zelador da Rua dos Timbiras. Durante a entrevista, fomos interrompidos por uma moça grávida, por volta dos 25 anos, que achou uma carteira na via e a entregou ao trabalhador para que ele achasse o dono. Ela poderia ter deixado com qualquer comerciante ou porteiro da via, mas considerou ele o mais apto para devolvê-la. Karioca conta que a simpatia e confiança das pessoas da rua foi conquistada pelas mínimas atitudes dele.

Simplesmente pela forma de falar, de tratar as pessoas com um bom dia, um boa tarde, um boa noite, um “tá muito chique”. Eu acho que a vida é simples, tratar o próximo bem é o mínimo que a gente pode fazer.

Karioca

Karioca é vaidoso e está sempre limpo e cheiroso. Para tomar banho, ele busca um balde de água na oficina mecânica do Marconi, pega seus produtos de higiene pessoal e roupas que ficam guardados em uma caixa subterrânea da CEMIG que ele utiliza como closet, vai para o recuo na calçada em que dorme e se lava vestindo um calção de banho, estilo Big Brother Brasil. Para fazer suas necessidades fisiológicas, Wedson utiliza os banheiros de estabelecimentos da rua ou edifícios residenciais. Todo esse auxílio foi conquistado pela simpatia com a qual trata todo mundo.

A vida de Karioca é singular. Imagino que ele esteja no seleto grupo das pouquíssimas pessoas em situação de rua que têm carteira assinada. Desde o início de 2023, ele trabalha no bar O Boêmio, localizado no Edifício Central. Ellen Sadin, sócia  do bar, é também moradora da Rua dos Timbiras. Ela conta que conheceu Karioca há cerca de três anos e que, quando foi abrir seu negócio, teve alguns percalços: “Abrimos O Boêmio num prédio onde não há outros bares, e, seguindo o regimento antigo dele, os banheiros não poderiam ser usados por clientes, somente por condôminos. A alternativa que encontramos para viabilizar o bar foi colocar alguém para cuidar do banheiro. Abrindo e fechando pros clientes e limpando no final do dia. Logo pensei nele”. O cargo, que inicialmente era para cuidar do banheiro, se expandiu para uma recepção acalorada dos clientes ainda nos corredores do prédio. 

Qual o seu maior sonho? “Morar no céu”

Quando questionado qual o seu maior sonho, Karioca comenta que é morar no céu. Suas falas são envoltas por uma fé inabalável em Deus e um pensamento no aqui e agora, sem muito espaço para eventos do passado e do futuro. Já seu maior sonho em vida é estar em paz.

O meu sonho é esse, estar em paz todos os dias, vivo todos os dias, abraçar meus amigos, beijar meus amigos, falar que os amo todos os dias, aproveitar os momentos com eles, porque eu tenho certeza de que não vou levar nada. Já que não vou levar nada, eu vou deixar um legado.

Karioca

Karioca pode ser encontrado em frente à Rua dos Timbiras, 1945; no bar O Boêmio, na Av. dos Andradas, 367; e no Instagram @wedson8935

Das muitas histórias que Karioca conta, algumas não podem ser checadas.
Colaboração: Guilhemar Caixeta Filho.
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