Colab

João

“Laudo indica que tiro que matou João Pedro o atingiu pelas costas”

Ah, se todo mundo soubesse o que eu sei e sentisse o que eu sinto! Mas como eu sei? Também não sei. Só sei que sei! Sei quem foi o João Pedro. Conheci ele dois anos atrás. Assim como Rodrigo S. M. conheceu Macabéa. Assim, de relance, andando pela cidade. Sinto tristeza só de pensar. Tristeza e alívio. Alívio que a morte chegou pra ele antes mesmo de ter tempo de ver o mundo como eu vejo. Ele ainda tinha esperança! Mesmo depois de tudo, ele tinha. Tinha, porque era forte. Muito mais forte do que eu sou. Talvez por isso morreu tão cedo, por acreditar! 

Apesar de jovem, viveu muita coisa. Mais do que muitos que morrem velhos, mas sem nunca terem vivido. Sua história talvez tenha terminado antes da hora. Mas quem sabe qual é a hora? Acredito que só a morte sabe. Ou talvez não. Talvez ela não seja como eu, que planeja cada movimento. Talvez seja mais como o João, instintiva. Bom, não sei e também não procuro saber, pois hoje escrevo apenas como desabafo.

Sua mãe sempre dizia: “Na rua, toma cuidado, que ser preto na favela é alvo de policia!”. Ah, se ele tivesse escutado! Mas ele escutou. Andava na dele. Não dava moleza, que isso é coisa de drogado, nem andava muito depressa, coisa de ladrão. Andava com a cabeça reta, nem muito abaixada, como quem esconde algo, nem muito levantada, como quem procura briga. Mesmo assim, para o negro na favela cuidado não é suficiente. É estudante, mas para a polícia é delinquente. É usuário que vira traficante. É morto na rua, mas também dentro de casa.

Um certo dia, por meio de um comunicado oficial do governo, informaram que o exército ia para a favela combater o tráfico. João nunca quis ser policial, nem mesmo quando era bem pequeno. Nunca pegou em arma, nem daquelas de brinquedo. Desde cedo, já entendia que aquilo, de bom, não tinha nada! Outro dia, sem aviso, os homens de verde-oliva tomaram conta da sua escola. Com as aulas suspensas, ficava em casa, com medo de sair. Numa manhã, porém, teve que ir ao mercado. E, foi voltando para casa, que o soldado pegou ele com a mão na sacola. Revistado e humilhado, conseguiu driblar a morte. E que sorte! No morro não se costuma ter duas vidas. Ficou abalado como eu nunca o tinha visto. Mas, como fogo que vira brasa e depois explode em fogo de novo, sua esperança reacendeu. 

Com sorte, se passaram mais dois anos, até que veio a pandemia e suas aulas foram suspensas pela segunda vez. Queria sair, jogar bola com o vizinho e encontrar os amigos na escola. Mas, isso daí, ele só pensava. Não reclamava de ficar em casa, pois acreditava que, logo, logo, tudo voltaria ao normal. Como eu também queria acreditar! Ajudava a mãe nos serviços de casa e brincava no tempo livre. No entanto, pouco durou a brincadeira. Sem aviso e sorrateira, a morte veio pegar o que era dela. Concluo, agora mesmo, que a morte é como eu, paciente e meticulosa. Não faz nada por acaso. Só que, diferente de mim, ela não joga no lado dos que vivem, mas no dos que matam. E João a tinha enfrentado. Dessa vez, ela não podia errar. Teria que ser golpe certeiro. E, daquele que deveria o proteger, João levou um tiro pelas costas e morreu.

Sarah Rabelo

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