Cecília Oliveira é atualmente um dos maiores nomes do jornalismo investigativo do país. Nascida em Contagem (MG), começa a trabalhar ainda menina, aos 16 anos, quando inicia a experiência numa fábrica de válvulas cardíacas – uma área totalmente diferente. Mesmo em um “mundo distinto”, a comunicação consegue chamar a atenção de Cecília por meio da rádio Itatiaia, que ela escutava o dia inteiro. De tanto escutar programas como “Glória Lopes, a Repórter”, surge um novo interesse para a jovem menina: tornar-se jornalista.
Escute um pouco da história de Cecília Oliveira pela voz dela:
Vida acadêmica
Decidida a entrar no mundo da comunicação, Cecília consegue ingressar na UNI-BH, aos 21 anos. Ela foi a primeira da família a entrar em uma universidade. No no ambiente acadêmico, sente que estava em um espaço com maior receptividade a novas visões de vida, dando abertura para quem, até então, tinha uma visão de mundo fortemente marcada pela religião.
Ainda na faculdade, Cecília começa a sofrer empecilhos com a realidade do mercado de trabalho na área da comunicação. Naquela época, as chances de ser uma profissional bem-sucedida eram pequenas em Belo Horizonte e região metropolitana, devido a existência de poucas empresas jornalísticas, comparando-se com a realidade do eixo Rio-São Paulo. Ela cogita mudar de área, mas no fim das contas segue fazendo estágios na área da assessoria de imprensa.
A formação no exterior
Em 2008, ela conclui a pós-graduação em Criminalidade e Segurança Pública no Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e em Políticas de Drogas, VIH y Derechos Humanos pela Universidade do Texas.
Cecília conta que a primeira viagem internacional ocorre aos 30 anos, quando foi participar de cursos no exterior. A jornalista não falava inglês, então lhe disponibilizaram um tradutor, o que não era suficiente para traduzir as ideias que tinha. Como sabe ser camaleoa e se adaptar, isso também passa a ocorrer com a linguagem.
Ela revela que enfrentou barreiras de comportamento microagressivo de alguns editores. Chegou a duvidar das coisas que escrevia, e precisou se reconstruir em um processo demorado. “Todo dia alguém duvida do que você consegue fazer. Foi um problema na minha carreira, pois comecei a duvidar das coisas que escrevia. Demorei para me reconstruir.”
Hoje, a jornalista reconhece o crescimento e a amplitude do mercado digital, tanto em aspectos positivos quanto negativos, como o aumento de oportunidade de empregos, mas também a necessidade de criar uma marca pessoal nas redes sociais. Esse é um dos empecilhos que ela enxerga no futuro dos jornalistas: a influência digital. O desafio atual é se manter relevante e atualizado a todo momento.
De Contagem para o The Intercept
Após concluir a pós-graduação, Cecília percebe que o mundo era maior do que ela via e sente vontade de crescer. Sempre teve vontade de morar no Rio e enxerga em uma vaga de assessoria de comunicação no Programa de Redução da Violência Letal (PRVL) uma oportunidade de se mudar. Candidata-se para a vaga, mas não passa na seleção. Tempos depois, tenta novamente o processo e conquista a oportunidade.
Já no Rio, mora em Oswaldo Cruz e depois na Glória, quando dividiu o lar com uma pessoa desconhecida. Naquela época, os blogs eram o mais novo acontecimento nos meios de comunicação, ganhando visibilidade pelas redes sociais. Com o advento do Twitter (atual X), Cecília se torna conhecida na ambiência, e novas portas se abrem para a jornalista. “Tinha muito gringo no rio pela copa do mundo. O Brasil estava economicamente muito bem! Tinham muitos jornalistas correspondentes. A Taylor Barnes (também escritora do The Intercept Brasil) me apresentou para o meu futuro marido, Andrew Fishman.”
Em 2014, o Brasil abre as portas para a Copa do Mundo, e mais estrangeiros passam a circular pelo país. Em fevereiro daquele ano, o The Intercept já era realidade nos Estados Unidos. O veículo surge como forma de divulgar os vazamentos de dados do governo americano por Edward Snowden. E um dos jornalistas que cobre este caso é Andrew Fishman, estadunidense – e atualmente marido de Cecília.
“Surge a ideia: e se criassem o Intercept Brasil?” – pergunta. Então, em 2016, na garagem de uma produtora de cinema no Rio de Janeiro, um dos maiores veículos de jornalismo investigativo do país começa a ser idealizado.
No mesmo ano, Dilma Rousseff concede sua primeira entrevista pós impeachment para Gleen Greenwald, jornalista norte-americano e co-fundador do The Intercept Brasil. A entrevista se torna um dos impulsionadores do veículo, trazendo grande repercussão.

Fogo Cruzado
Ainda em 2016, Cecília busca dados sobre tiroteios na capital carioca durante os Jogos Olímpicos, e, surpreendida com a ausência de informações, ela passa a contabilizar tiroteios e disparos de arma de fogo manualmente através de um monitoramento em redes sociais, com base em relatórios policiais e da imprensa.
O instituto em seu primórdio, era um projeto incubado dentro da Anistia Internacional, e contava com uma equipe de três pessoas. Após tornar-se independente da Anistia, se transforma no Instituto Update e a equipe cresce para 13 pessoas. Apenas em 2021 renasce batizado de Fogo Cruzado, “Uma organização sem fins lucrativos autônomo, que produz dados abertos com foco na preservação da vida e no processo de expansão para outras capitais brasileiras”. – afirma.
Hoje, o instituto Fogo Cruzado, tem uma equipe de 20 pessoas e produz indicadores inéditos sobre violência armada a partir de uma metodologia inovadora. Além de possuir aplicativos para mostrar essa contabilização, todos os dados são abertos e disponibilizados gratuitamente no maior banco de dados sobre violência armada da América Latina.
Sobre os muitos opositores ao projeto que insistem em compartilhar narrativas falsas a respeito do site, Cecília destaca: “Não se importam com a informação, apenas se for beneficiar o lado deles”.
Compromisso com a verdade
A trajetória de Cecília Oliveira é sem dúvidas, marcada por coragem, resiliência e um compromisso inegociável com a verdade. De um início profissional curioso em Contagem ao front do jornalismo investigativo no Brasil, sua história é um exemplo de como a informação pode ser uma ferramenta de transformação social. Ao fundar o Fogo Cruzado, ela não apenas preenche uma lacuna de dados sobre a violência armada – assim como criou um espaço de resistência, memória e cuidado com a vida.
Seu trabalho reverbera nas comunidades mais afetadas, nos corredores de universidades, nos debates públicos sobre segurança e direitos humanos. O tempo passa, e Oliveira se torna uma referência incontornável quando se fala em jornalismo de dados e em cobertura responsável da violência urbana. Seu nome está ligado à luta por transparência, pelo direito à informação e, sobretudo, pela valorização da vida de pessoas que muitas vezes são reduzidas a estatísticas.
Ao romper com a lógica do sensacionalismo e investir em dados concretos, ela transforma o jornalismo em uma ferramenta de cidadania. Não à toa, tem sido reconhecida internacionalmente por seu trabalho – que vai muito além das manchetes e mergulha nas estruturas que perpetuam a desigualdade no Brasil.
Cecília Oliveira continua sendo uma voz ativa e indispensável no debate público. E ainda que tenha alcançado grandes feitos e notoriedade, segue com os pés fincados nas origens: fiel à sua ética, à sua comunidade e à missão de informar com responsabilidade. Mais do que uma jornalista, é uma construtora de pontes entre a dor e a solução, entre o caos e o entendimento. E, nesse processo, inspira toda uma nova geração de comunicadores a jamais perderem de vista o poder transformador da palavra.
Você pode conferir um trecho da entrevista realizada com Cecília para a produção deste perfil clicando aqui.
Este conteúdo foi produzido Ana Amorim, Eduardo Ferreira, Ítalo Lemos e Luiza Barbosa, sob supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard na disciplina Apuração, Redação e Entrevista.
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