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A utopia de “mareiar” a cidade

“Eu nos caminhos/ Nos morros/ Naqueles corpos todos/ Nas decadências de um mar/ Que me levava ao centro de tudo/ Que me tomava tudo”.

Os versos do compositor mineiro Nobat compõem sua canção intitulada “Praia da Estação”. E expressam algumas sensações em torno desse movimento que, interligado a outros, compõe o quadro das ocupações urbanas político-artísticas da cidade nos últimos anos.

O ambiente urbano de Belo Horizonte, em sua claustrofobia própria a qualquer metrópole, e em sua manifestação político-cultural peculiar à sua história, construiu seu mar íntimo ao centro das vivências que não alcançam o ‘respiro’ do litoral. Uma Bahia que desce à praia de concreto, um viaduto que liga o Contorno da cidade à poesia de rimas periféricas.

A região central tem caráter aglomerador, abriga prédios públicos, o mercado imobiliário, a boemia, moradores de rua, a mais diversa gama de transeuntes dividindo o mesmo espaço, que produz sua própria dinâmica de funcionamento. Subindo as escadas do metrô na Estação Central, depara-se com um vasto território, convidativo pela estrutura ampla, plana e bem localizada: a Praça da Estação é palco de encontros de toda essa gente.

Foto: Thaylane Cristina

Diante de um decreto do ex-prefeito, Márcio Lacerda, em 2010, que coibia a realização de eventos de qualquer espécie no local, nasce um movimento popular de reação à privatização dos espaços públicos.

A internet foi lugar de debate para convocar as pessoas a ocuparem o espaço da praça, usufruir daquele local público já tão familiarizado pela população belo-horizontina, ressignificando-o.

Sem necessidade de mar, rio ou cachoeira, a praça ganhou banhistas da fonte, batuque e uma festa para mostrar que o pertencimento aos espaços públicos é direito de seus frequentadores. Então, a “Praia da Estação” cresceu em consonância com outros movimentos de mesmo cunho, que aconteciam especialmente nas regiões centrais.

A Praça da Estação, por sua vez, constitui a área, hoje solidificada no imaginário de boa parcela da juventude, do hipercentro da cidade, juntamente à Rua Sapucaí e ao Viaduto Santa Tereza. Um recorte urbano que acolhe alguns dos principais eventos de rua que levaram pessoas das mais diferentes classes sociais ao âmago de Belo Horizonte.

Talvez, um ponto de partida cronológico para se entender a ocupação desses espaços e os eventos que deram vigor a eles seja o Duelo de MCs. O “teto” do Viaduto Santa Tereza foi o abrigo primordial para que a casa dos outros movimentos começasse a ser estruturada.

Energia contagiante

A partir de encontros realizados em diversos bairros da capital mineira, a cena dos MCs, que se reuníam para improvisar pelo simples prazer, ganhou motivação. A atividade começou a se estabelecer com reuniões quinzenais na Praça Sete e, em 2007, após a etapa eliminatória do projeto Liga dos MCs na cidade, os seguidores da cultura hip hop começaram a se articular para dar vazão ao crescimento daquela cena urbana.

Assim nasceu o Família de Rua, coletivo que surgiu em função do Duelo e organiza suas edições, contando com colaboradores de rima. “A energia daquele momento contagiou a gente. Isso foi num sábado e aí, na terça ou quarta-feira da próxima semana, o Léo (integrante do coletivo) também já estava conectando alguns amigos pra poder pensar: ‘Velho, vamos fazer uma batalha de MCs, vamos criar um espaço pra essa galera se encontrar e poder exercitar o improviso. E pra outras pessoas que queiram chegar, cheguem também’”, conta PDR Valentin, um dos idealizadores do Família de Rua. Poucos dias após as articulações iniciais, vindos no movimento, ocorreu o primeiro duelo na Praça da Estação.

Nos primeiros duelos, a estrutura era montada de forma bem simples e rudimentar, com poucos equipamentos, emprestados e organizados em improviso: sobe um skate, os integrantes do Família De Rua colocaram caixas de som e nomearam o sistema de “Skate Sound System”.

É, aí, que ocorre uma significante mudança no projeto, que definiria seu formato pelos próximos anos. “A gente vai parar no viaduto muito por acaso, porque começou a chover e, na Praça da Estação, não tinha como se esconder da chuva. Aí alguém lembrou do viaduto. O viaduto não tinha nada, não tinha nem luz”.

Foto: Thaylane Cristina

PDR recorda o momento em que o Viaduto Santa Tereza foi ocupado pela primeira vez, ficando marcado como a casa dos MCs: “A gente começou a chamar atenção porque era um lugar que, em algum momento, já havia sido pensado para ser ocupado pela cultura da cidade, mas que tava lá ‘jogado’. E aí, no começo de 2008, a gente começou a demandar do poder público melhoria daquele espaço. E fomos procurados para começar a atender essas demandas dos jornais e tal. Foi muito natural, a gente foi se entendendo nesse processo”.

A jornalista Clarissa Carvalhaes, especialista em História da Cultura e da Arte, pontua a relevância das ações naquele momento: “Quanto à ocupação dos espaços públicos é sabido que, em qualquer região do mundo, esse ato é sempre uma resposta à demanda da própria cidade. Em BH, coube ao Duelo ser o precursor dessa ‘adesão’, que mais tarde originou todos os outros movimentos, não apenas culturais. Pois a ocupação é exatamente isso. Sabe-se que o Duelo nasceu graças ao trabalho de um grupo bem pequeno (inicialmente) que sentiu necessidade de ir para espaços onde pudesse ser visto por todos”.

Grupo usa o Hip-Hop para colocar gênero no centro da discussão

Diferentes personagens

Outros movimentos culturais e políticos que despontavam na área ganharam visibilidade, como o Praia da Estação, Catraca Livre, Fora Lacerda, Fica Ficus e o próprio renascimento do carnaval, com seus bloquinhos de rua. Manifestações estas que surgiram, todas, também debaixo do Viaduto e inspiradas pela cena hip hop.

Hoje, ainda estão em curso inúmeros projetos públicos e discussões sobre ocupação cultural da área em torno da Rua Sapucaí, na região central. O Conselho da Zona Cultural da Praça da Estação é um órgão participativo que conta com representantes da UFMG, artistas, o síndico do Prédio Central e comerciantes da área, além de representantes de órgãos públicos. O conselho se organiza em reuniões mensais há cerca de dois anos, para discutir novas formas de usar o espaço com cultura e arte, sem afetar negativamente a rotina do local.

Laura Rennó, uma das conselheiras, afirma que “ocupar o espaço público sem pensar em inserir os agentes e atores dessa área é um projeto fadado ao fracasso”. Ela ainda comenta que o objetivo da organização não é domesticar a área e, sim, propor regras que façam sobressair os desafios de atender a diferentes demandas e interesses dos diversos personagens que utilizam a área diariamente.

O Conselho também busca discutir melhorias na mobilidade e serviços públicos do local, como infraestrutura, iluminação, transporte público e regulamentação de vendedores ambulantes.

Em setembro deste ano, um bate-papo foi promovido na “Benfeitoria”, bar localizado à Rua Sapucaí, para discutir as intenções de ocupações e manifestações artísticas para a área. Fica claro o contexto de opiniões divergentes e decisões públicas lentas e delicadas para se entender os próximos passos que marcarão o asfalto do baixo-centro com arte, política e performances artísticas.

Benfeitoria oferece o espaço a atividades diversas (Foto: Fernanda Oliveira)

Um dos pontos citados por arquitetos na discussão é a gentrificação. Definir diretrizes para utilização de um espaço heterogêneo é um terreno perigoso quando esbarra na troca de um grupo por outro, perdendo o sentido original. Geralmente a cultura que perde espaço é aquela de menor poder aquisitivo e marginalizada por razões sociais, étnicas etc. Mariana Matias Souza Cruz, 31 anos, estudante de Arquitetura e Urbanismo na Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto) comenta: “A gente tá num processo de começar a discutir essa região e de se apropriar dela. Tem que estar muito alerta, existe uma financeirização dessa região muito grande. A gente ‘gourmetiza’ de tal forma que a população que frequentaria aquela região vai deixar de frequentar”.

Talvez, a utopia de transformar o concreto em mar, em ar de pessoas que se banham nas possibilidades urbanas para além da claustrofobia, seja realmente fruto de um processo popular, sobre o qual a ótica pública tem dificuldade de lançar luz para mapear passos e ações. Visto que as ocupações têm seu nascimento justamente na oposição à política que cerceia espaço e contribui para o ar rarefeito. Talvez, as discussões organizadas apenas serão imersas na enorme onda orgânica dos movimentos que, inconscientemente, sempre sabem chegar à praia.

Reportagem de Bruna Vilela, Gabriela Arruda, Karine Pereira, Karoline Martins, Luiz Henrique Braz, Natália Aquino e originalmente publicada na revista Metáfora.

Revista Metáfora (Memória FCA)

A Metáfora foi um projeto do curso de Jornalismo do campus Coração Eucarístico, uma revista multimídia cuja temática girava em torno de questões sociais. O projeto funcionou dentro da redação do Jornal Marco, com periodicidade bimensal. A revista possibilitou aos alunos exercitarem a reportagem em ambiente digital utilizando múltiplas linguagens: fotografia, vídeo, texto, áudio e infografia.

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