Crônica de Ana Carolina Dias e Arnon Gonçalves.
Eram 6h em ponto quando Joana acordou. Lavou o rosto, escovou os dentes e ao pentear os cabelos, notou com espanto um fio branco. Passou uma xícara de café forte e comeu um pão que comprara no dia anterior, enquanto ouvia um podcast sobre os últimos acontecimentos da semana. Olhou para a janela da cozinha, onde duas máscaras estavam penduradas. Lá fora a cidade acordava, aqui dentro ela pensava quando tudo isso iria terminar.
_ Segundo dados da Federação Nacional dos Jornalistas, 78 jornalistas morreram de covid-19 em 2020, em três meses o número de mortes em 2021 supera todo o ano de 2020… – dizia a jornalista do podcast, quando Joana arregalou os olhos e desligou o áudio.
Colocou os dois celulares no bolso, o gravador e um kit de máscaras na mochila e pegou o tripé. O jornal estava cortando gastos, então, não podia contar com um câmera para a matéria do dia e teria que fazer tudo sozinha. Na portaria do prédio, cumprimentou o síndico, um senhor baixinho de cabelos grisalhos, que sinalizou para que se aproximasse.
_ Cuidado nessas ruas, menina – disse, com uma expressão enfática. – A coisa tá feia. Me mandaram aqui no zap que não dá nem pra confiar nessa tal vacina que estão oferecendo por aí. O presidente falou que…
Joana se esforçou para não deixar sua aflição transparecer. Além de apurar, verificar informações e produzir matérias que fossem fiéis aos fatos, precisava também assegurar que o Seu João, síndico do prédio, não acreditasse em notícias falsas circulando pela internet e, pior, não saísse compartilhando elas por aí. Fez o nome do pai, beijou a cruz de seu colar e seguiu para a rua. Orava para ter um dia produtivo, mas, principalmente, por segurança. A apuração de rua se tornou muito complicada desde o início da pandemia. Precisava manter distância dos entrevistados, evitar lugares fechados e carregar o peso tanto dos equipamentos quanto do medo, além de enfrentar dificuldades para fazer com que o povo quisesse dar entrevista em um momento como esse, e se o povo não fala…
Em muitos momentos, Joana precisava esconder suas perturbações e simplesmente fazer seu trabalho. Como no dia em que entrou em uma UTI para conversar com um dos pacientes internados com suspeita de covid. Pensou que seria só mais uma entrevista, mas o que encontrou lá foi uma situação desoladora. Com os leitos todos ocupados, um mar de gente se estendia pelos corredores, aos gritos, aos berros, com súplicas por alguém que afagasse a angústia que estava sentindo, consolasse a dor de quem acabara de perder alguém e acalmasse familiares, que, há dias, não recebiam notícia de seus parentes mais próximos. Joana saiu de lá tremendo e passou a noite chorando. É fácil falar em estabilidade emocional quando você está dentro de casa, acompanhando o mundo por uma tela de computador.
No outro dia transformou sua angústia em determinação, e ainda que fosse difícil se manter sã diante um cenário político conturbado, com o governo tomando tantas decisões equivocadas, um isolamento interminável e um vírus se propagando cada vez mais, ela sabia o quanto seu trabalho era importante. Se as pessoas não podiam sair de casa, não podiam ver os acontecimentos de perto e apurar sobre cada um deles, quem faria isso?
Joana sentia orgulho da sua profissão e sempre a defendeu. Ainda que a remuneração fosse aquém de seus esforços, sabia que neste momento de crise sanitária, econômica e social, seu papel possui importância singular. A essa altura, havia produzido matérias que forneciam uma cobertura completa da crise e também cobrado por soluções para a vacinação, transporte e auxílio emergencial. Além de mobilizar a população para adotar medidas de proteção contra o vírus e ajudar aqueles que voltaram para a miséria. Ao mesmo tempo em que tentava combater a desinformação.
Morando sozinha, não corria o risco de se contaminar e levar o vírus para casa, mas não sabia se podia ou não ficar feliz com isso. Não sabia se podia ficar feliz com alguma coisa em um momento tão caótico, com tantas pessoas mergulhadas em desespero. Como sua amiga Cláudia, também jornalista, morando com os três filhos e a mãe já de idade, sobrecarregada com todas as funções que acumulara: as atividades da profissão, as tarefas domésticas e o cuidado com a família.
_ Home office trabalha menos? Isso é uma grande mentira, nunca trabalhei tanto! Quando tem matéria de rua para cobrir, passo o dia com medo de me contaminar e levar o vírus para casa. Mas não posso parar o serviço, todos dependem de mim.
Apesar das duas trabalharem no mesmo jornal, já não conseguiam se falar tanto como quando estavam na redação, interagindo diariamente. Mas o editor geral, um homem calvo de meia-idade, não parecia compartilhar de suas aflições.
_ Precisam apurar isso… Precisam cobrir aquilo…E de segurança, não precisam?
Deixou os devaneios de lado quando avistou o posto de saúde do outro lado da rua, onde a vacinação estava atrasada e a população do bairro, desesperada, alegava irregularidades por parte da gerência do lugar. E lá se foi Joana, entrevistar uma das fontes da denúncia, com o álcool em gel nas mãos e uma determinação que insistia em ficar, mesmo com todos os problemas.
_ Como você disse que se chama mesmo?
_ Joana Moreira.
_ E trabalha para qual jornal?
_ O …
_ Pois bem. O que acontece é que queremos vacinar, as pessoas estão morrendo aqui, pode anotar isso aí. Vocês precisam fazer alguma coisa! – denunciou a fonte.
Ao término da entrevista, enquanto lanchava e assistia a gravação, Joana se lembrou que ficaria em casa no próximo dia, seguindo o revezamento proposto pela empresa. Outra vez não soube se podia comemorar, já que outro colega jornalista assumiria seu lugar nas ruas, para vivenciar todos os riscos que envolvem o descaso, a má gestão, a angústia e o medo, de uma cobertura do caos.
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