Desde 2017, o streaming representa a principal fonte de renda da indústria musical. Só no ano passado, com a pandemia, ele foi responsável por 83% da receita dessa indústria. Apesar disso, em 2018 já representava 93% do total das receitas de música latina, contra 75% do mercado estadunidense. Não é por acaso que graças ao sucesso das plataformas a música latina se tornou um fenômeno mundial. No entanto, a xenofobia permanece um desafio na consolidação da música fora do eixo Estados Unidos e Europa.
Entenda como as plataformas digitais impactam na dinâmica da indústria musical e afetam a saúde mental de artistas lendo a matéria O lado sombrio da música.
Xenofobia na música é reflexo da sociedade
Para Astreia Soares, socióloga e professora da Universidade FUMEC, o que se percebe na indústria fonográfica é a reprodução de valores e discursos hegemônicos da sociedade. Questionada sobre a xenofobia na música latina, ela afirma que “o mesmo olhar que se tem para a América Latina vai ter para a música latino-americana”.
“A suas culturas e músicas deixarão de ser importantes quando esses países não são importantes no mundo”
Sobre a música asiática, Krystal Cortez, coordenadora adjunta do MidiÁsia (Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea), faz uma reflexão parecida. Para ela, o preconceito arraigado na dinâmica da indústria musical é um reflexo do eurocentrismo presente na origem da sociedade ocidental. “A emergência do discurso orientalista fez parte de um projeto amplamente difundido de ocidentalização do mundo, que pressupõe a sua superioridade”, explica. Como resultado, artistas asiáticos são colocados em posição de inferioridade étnica, racial e cultural frente aos artistas e estilos ocidentais. Assim, existe uma construção do Ocidente como categoria “universal”, em oposição ao Oriente enquanto categoria “particular”.
“A reação negativa ao K-pop e outros produtos culturais das sociedades do Extremo Oriente nada mais é que uma resposta ao risco de perda do monopólio do lugar do “universal” pelo Ocidente, em face da ascensão de competidores de outras partes do mundo.”
Em 2019, o conhecido jurado do The X Factor, Simon Cowell, chegou a afirmar que lançaria uma banda UK-Pop, uma versão britânica do K-Pop, para competir com os coreanos. “Atualmente, você pode dizer que o K-pop está dominando o mundo. Agora, é hora do UK-Pop”, disse em vídeo que virou motivo de piada no Twitter.
Além da xenofobia, a Krystal Cortez aborda o racismo contra pessoas amarelas. Para ela, discursos da supremacia branca foram essenciais para legitimar as investidas imperialistas dos estados modernos ocidentais e os modelos de exploração colonial e neocolonial. Segundo ela, a ideia do “perigo amarelo” sintetiza o temor ocidental da liderança do mundo por nações asiáticas, consideradas, de forma equivocada, culturalmente retrógradas ou primitivas.
BTS é alvo de comentário xenofóbico
Há poucas semanas a tag “RACISM IS NOT AN OPINION” (racismo não é opinião, em tradução livre) apareceu nos assuntos mais comentados do Twitter após fala racista contra o grupo sul-coreano BTS. Matthias Matuschik, locutor da rádio alemã Bayern 3, chamou os integrantes de “alguns vírus de baixa qualidade que, com sorte, também haverá uma vacina em breve.” A fala foi uma crítica ao cover feito por eles da música “Fix You”, do Coldplay.
Oligopólio domina música e premiações
A professora Astréia Soares também recorre à dinâmica da indústria fonográfica para explicar a xenofobia musical. Ela lembra que existe um oligopólio de gravadoras americanas que dominam o setor musical mainstream. Apenas a Warner Music, Universal Music e Sony Music detêm mais de 80% do market share global, o que impõe uma forte barreira aos artistas fora delas.
Foram essas três gravadoras e a Academia do Grammy que criaram em 2020 um Grupo de Diversidade, Equidade e Inclusão após anos de críticas de fãs e artistas à premiação. Mesmo assim, em 2021, a premiação carece de representatividade e exclui mulheres, negros e não estadunidenses das principais categorias e dos palcos, limitando-os às subcategorias latinas e de black music.
Apesar disso, Krystal Cortez acredita que as últimas décadas mostram uma virada na lógica da relação entre pop, globalização e colonialidade, sendo o K-pop um dos braços mais visíveis dessas transformações. “Cada vez mais, a indústria musical estadunidense se verá forçada a inserir artistas não-anglófonos em suas dinâmicas de premiações, de forma a dialogar com os diversos públicos dessas produções espalhados pelo mundo”, opina.
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“Disseram que eu voltei americanizada”
A famosa frase da Carmem Miranda apropriada por Anitta abre espaço para a discussão da americanização das músicas e artistas.
Em live, a cantora de funk fala sobre não cantar em português, mas em espanhol e inglês. Ela diz que é preciso “dançar conforme a música”, indicando que as músicas em inglês e espanhol são mais bem aceitas do que as da sua língua nativa.
“Na época da Carmem Miranda, para entrar nos Estados Unidos, ela tinha que ser assimilada”, coloca a professora. Porém, Astréia Soares acredita que hoje essa não seja a realidade e cita o caso de Gaby Amarantos. “Já assimilou, hoje em dia não assimila mais”, afirma sobre a tentativa da cantora de se encaixar no padrão de artista criado nos EUA.
Sobre o K-Pop, Krystal Cortez a membro do MidiÁsia acredita que o estilo é americanizado o suficiente para ser atraente no ocidente, mas que a chave do seu sucesso é justamente a tradição e cultura única sul-coreana. “O K-pop se configura em um estilo musical cunhado com base nas convenções mais gerais do pop – um gênero musical abertamente comercial oriundo do países ocidentais – mas que foi relido à luz dos parâmetros de disciplina, ética e moralidade da Coreia do Sul”, diz.
BLACKPINK, Girl Gruop sul-coreano, aposta em parcerias com as cantoras norte-americanas Selena Gomez e Cardi B em seu álbum.
Além disso, questionada sobre a falta de presença do C-Pop (pop chinês) e J-Pop (pop japonês) na indústria internacional, ela pontua que, em comparação, o K-pop é mais eficiente em se difundir no mercado global por vias oficiais, tendo os públicos internacionais como objetivo principal.
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Qual o futuro da música latina e asiática?
Astréia Soares acredita que o futuro da música é a complexificação da mistura cultural até o ponto em que será impossível recortá-la por suas origens. “A cultura foi feita para ser apropriada. É um diálogo intercultural, cada um vai ter que entrar com a sua parte”, defende.
Já para Krystal Cortez, a emergência do K-pop e do reggaeton apontam para uma mudança expressiva em termos de representatividade étnica e cultura. “Os países do Leste Asiático e da América Latina podem oferecer um ponto de vista promissor das dinâmicas de produção, distribuição e consumo da indústria da música pop, com a condição de não serem associados a uma posição de inferioridade cultural”, acredita.
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