A indústria musical, também conhecida como indústria fonográfica, é um mercado bilionário que vem se transformando juntamente com as tecnologias. Cada vez mais, o foco dos investimentos vai para a ampliação da presença de artistas em plataformas digitais, principalmente as de streaming, como Spotify, Deezer e YouTube Music, para citar três dos maiores players do mercado.
Essas e outras inovações revolucionaram o modo de consumir música e intensificaram a transformação de músicos e cantoras em grandes artistas, que precisam ampliar sua presença midiática para aumentar também seus ganhos financeiros. Ou seja, a música se torna, cada vez mais, parte de um produto mais complexo do capitalismo, que inclui a imagem e a performance dos artistas.
Tais diretrizes capitalistas e o aumento de produção do mercado musical ocasionam, frequentemente, exploração e sobrecarga nos músicos, fatores que levam a questionar o descaso da indústria musical em relação à saúde mental dos artistas.
Mídia, indústria musical e saúde mental
Em uma participação no simpósio anual da Performing Arts Medicine Association, (Associação de Medicina nas Artes Performáticas, em tradução livre), o cantor James Blake afirmou que o mercado induz o artista a se sobrecarregar e sofrer transtornos mentais, ao mesmo tempo em que estimula o uso de substâncias químicas.
Blake ainda citou o fato de que muitos músicos iniciantes têm que se submeter a turnês longas para se sustentar, já que que o lucro de venda das músicas não é suficiente para se manter. “Nós somos a geração que viu várias outras gerações de músicos se voltar para as drogas, os excessos e mecanismos repetitivos que os destruíram”, completou o músico. Sua fala repercutiu em diversas publicações, como a Billboard, o jornal inglês The Guardian e sites como o brasileiro Tenho mais discos que amigos.
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, nem sempre a vida do artista consiste em glamour e dinheiro. Pesquisa feita em 2019 pelo site Tenho mais discos que amigos, revelou que 73% dos músicos têm problemas de saúde mental como depressão, ansiedade e ataques de pânico, e apenas 19% disseram ter apoio dentro da indústria musical. Neste contexto, pode-se afirmar que o mercado musical tem uma parcela de culpa no desenvolvimento desses transtornos mentais?
Segundo Enaldo Silva, mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da disciplina de Crítica da Mídia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), ao mesmo tempo em que é essencial para o sucesso do empreendimento musical, a mídia colabora com a exploração dos artistas, capitalizando suas imagens e sentimentos.
“A indústria comercializa os sentimentos dos músicos, ela não vende só a música em si, ela vende a vida dos artistas e a imagem deles, e a mídia coopera com isso”.
Enaldo Silva, professor de Crítica de Mídia da PUC Minas
O professor Enaldo Silva destaca, ainda, que o mercado musical se preocupa com aquilo que é novo, com a inovação das produções e os meios de agradar cada vez mais o público jovem, e não tem como objetivo a preocupação com o bem estar dos músicos.
“Não podemos afirmar que a indústria é a culpada pelos transtornos mentais. Mas certamente ela não tem como objetivo principal a preocupação com o bem estar e a saúde dos músicos. Eu, como amante da música e criado no meio musical, sinto que a cada dia mais a indústria se preocupa com aquilo que é novo e atual”, completa.
Relação entre artistas e mídia é tema de TCC
Júlia Grego, estudante de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), é uma das criadoras do podcast Além dos acordes. Desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) juntamente com as colegas Amanda Santos, Clara Passos, Gustavo Macedo e Pedro Jellinek, o podcast trata da visibilidade (ou invisibilidade) midiática na carreira de artistas com diferentes perfis, de Taylor Swift à banda mineira Lagum.
A partir de sua experiência na realização do trabalho, Júlia Grego conta que o mercado da música, assim como outros setores, se preocupa somente com a produção e o lucro, esquecendo de se importar com a saúde mental e bem estar dos artistas: “Quando falamos de indústria, não falamos só do setor da música, e sim do mercado em geral. O termo indústria vem do conceito de produção a todo momento e a todo custo, sem se preocupar com o “operário”, os artistas são os operários da indústria musical”.
Embora o meio musical seja uma área que sempre se reinventa e busca ampliar seus meios lucrativos, ainda opera em uma cultura arcaica e tradicional e demonstra precisar de mudanças nas suas diretrizes. No documentário “Miss Americana”, produção lançada pela Netflix e construído pela diretora Lana Wilson, Taylor Swift conta sobre a pressão que sofria em ser a “garota perfeita” vindo da indústria e da mídia, e como isso influenciou no comportamento dela em buscar sempre a perfeição.
“Ao longo da minha carreira, os executivos sempre diziam: Uma boa moça não fica dando opinião. Uma boa moça sorri, acena e agradece. Eu me tornei a pessoa que queriam que eu fosse”, desabafa a cantora durante a filmagem do documentário.
O curta-metragem que retrata a trajetória da queridinha da América, mostra as diversas barreiras que a cantora teve que romper dentro do mercado fonográfico após sofrer críticas e ser impedida de opinar sobre questões políticas e sociais. Taylor Swift diz que se reinventou diversas vezes para agradar a mídia, o público e o mercado: “As artistas mulheres que eu conheço tiveram que se reinventar 20 vezes mais do que os artistas homens. Elas precisam fazer isso ou perdem o emprego”.
Cobranças de fãs e cultura do cancelamento também impactam saúde mental
Além da mídia, ouvintes, fãs e espectadores também contribuem com a exploração dos artistas. Sendo os consumidores do conteúdo multimídia, exercem total influência no fluxo de produção e criação das músicas. “A gente tem que pensar que a indústria não é formada só pelos produtores, diretores, empresários. As pessoas que consomem também fazem parte da indústria, porque essa cobrança em relação aos artistas vem da sociedade também”, ressalta Júlia Grego.
Além disso, o público é o principal responsável pelo boicote à imagem de figuras públicas quando elas não correspondem ao que foi idealizado. Tendo sua vida exposta, essas figuras estão sujeitas a receberem críticas e ofensas de todos os lados e, muitas vezes, esse ataque vem dos próprios fãs. “O fã tem um papel importante, em entender que atrás do ídolo existe uma pessoa comum que comete erros. A cultura do cancelamento por exemplo, mostra como críticas vindas do público podem tomar proporções maiores e causar grandes transtornos na vida dos famosos,. Mas artistas não são máquinas”, ressalta a graduanda Júlia Grego.
Com a ampliação das plataformas de streaming, o single voltou a ser o formato de distribuição de músicas mais usado pelos artistas, o que impacta também em seu ritmo de trabalho. “É interessante ver como a demanda da música mudou, hoje em dia os artistas não produzem mais álbum, eles produzem, singles únicos e lançam a todo momento”, ressalta Julia Grego. Mas, para ela, não adianta evoluir em produções técnicas e manter o funcionamento desumano e capitalista da Indústria: “Já que a música evolui tanto, a indústria deveria mudar também”.