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O que a popularidade das plataformas de streaming indica sobre o futuro do audiovisual?

Durante a pandemia do novo coronavírus, o número de assinantes em plataformas de streaming cresceu de forma absurda, o que reforçou o seu poder dentro do mercado audiovisual. Segundo a Forbes Brasil, a plataforma Telecine Play, por exemplo, registrou um crescimento de 400% de cadastros e um aumento de 100% no número de filmes assistidos desde o início da quarentena. Este crescimento não é apenas consequência da pandemia, mas efeito de como a tecnologia do streaming tem revolucionado o audiovisual. 

Grandes plataformas de streaming mudaram  também a forma como filmes e séries são feitos. Com o lançamento do Disney+ no Brasil, a disputa entre Netflix, Amazon Prime Video, Globoplay e outras empresas ficou mais acirrada. Neste cenário de crescimento e surgimento de novas plataformas, qual é o futuro da TV e do streaming? 

Em entrevista ao Colab, Emmanuelle Dias, doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora sobre séries e streaming, conta como esta tecnologia afeta os consumidores e a produção de conteúdo.

“A popularização do streaming está muito atrelada ao acesso aos serviços de internet e ao surgimento de tecnologias de tela, com a popularização dos smartphones e tablets. Isso facilita a assinatura dos serviços e o próprio consumo. Mas temos que fazer essa associação considerando um contexto de movimento cultural, não apenas um fenômeno isolado que está surgindo agora”, analisa Emmanuelle Dias. 

Por que o streaming cresce tanto?

Primeiramente, é preciso considerar que o streaming não é uma atividade recente. “É um tipo de tecnologia que surge no início da década de 1990 e vai sendo incorporada. Seu acesso vai se popularizando junto com o serviço de internet. O streaming não é somente o audiovisual. Serviços de som e áudio, como o Spotify, também são streaming”, explica Emmanuelle Dias.

A Netflix acompanhou o processo de introdução do streaming na sociedade. A empresa surge em 1997 com serviços de locação de DVD’s via correio, com o objetivo de mudar e inovar o sistema de vendas e empréstimos de filmes. Em 2007, lança a primeira plataforma paga de streaming, permitindo que assinantes vejam filmes e séries instantaneamente.

Com o crescimento desta tecnologia, como o streaming muda e populariza uma nova forma de consumir conteúdos audiovisuais? Gustavo Padovani mestre em Imagem e Som pela UFSCar, especialista em Gestão em Marketing pela FGV e doutorando em Multimeios na Unicamp, explica.

“Existe um certo preciosismo ao defender uma “cultura do cinema” de uma forma apaixonada e saudosista, como se os longas só fossem “de verdade” no cinema físico, ao invés de problematizar as ambivalências e transformações reais do mercado audiovisual. As plataformas VOD (Vídeo Sob Demanda) por assinatura oferecem aos consumidores muito mais opções em todos os dispositivos móveis e disponíveis a hora que ele quiser por um valor igual ou menor que um único ingresso de um filme. Poderíamos aqui discutir uma certa homogeneização no catálogo dessas obras, mas há, em contraponto a isso, cada vez mais novas plataformas com propostas diferentes de consumo. O adensamento da indicação de filmes produzidos diretamente para plataformas nos festivais, assim como os festivais de cinema que se tornam plataformas de vídeo sob demanda, são duas faces de um mesmo fenômeno social de consumo irreversível”.

Gustavo Padovani

Transformações na forma de contar histórias 

No streaming, séries são estruturadas em um formato pensado para esta tecnologia. O binge-watching é uma prática comum nas plataformas. Ele consiste no ato de assistir a vários episódios de uma mesma série em sequência, de uma só vez. Assim, existe uma despreocupação com o chamado cliffhanger, conforme explica Emmanuelle Dias:

“Séries como House of Cards foram pioneiras no processo de produção da Netflix, no modelo de lançar todos os episódios de uma só vez, inaugurando um estilo de produção que, até então, era inédito. Geralmente, as estreias ocorrem às sextas-feiras e há um uso menor de ganchos entre um episódio e outro, os cliffhanger”

Ela reforça que a produção de séries da Netflix é semelhante à produção feita na TV norte-americana mas, na TV, o futuro de uma série é decidido pelo projeto piloto (primeiro episódio de uma série). Com a adesão do público àquele conteúdo, a temporada começa a ser desenvolvida. Na Netflix, o formato é outro: o método usado é o da temporada piloto, ou seja, a aprovação do público vai depender do desempenho de uma temporada completa, podendo levar a série a ser cancelada, ou não.

A série Everything Sucks, da Netflix foi cancelada em 2018 após os baixos resultados da temporada piloto

As séries como marcas estratégicas

As séries têm o poder de conquistar uma legião de fãs, que são fundamentais para a sua existência. Cada vez mais, são usadas estratégias para fidelizar o público, não só para o conteúdo da série, mas para a empresa. Emmanuelle Dias ressalta: 

“A Netflix cria uma persona para poder dialogar com o seu público, que acaba sendo um usuário fictício que faz binge-watching (consumo compulsivo de séries, maratonas) e que gosta das séries originais. Ela criou essa persona para atrair esse público para ela, como empresa, que no início era um perfil muito jovem, e acabou funcionando”. 

Emmanuelle Dias

Essa estratégia usada pela Netflix foi um sucesso no Brasil ao usar memes e personalidades conhecidas para promover suas séries originais, como no vídeo promocional da série Stranger Things, no qual a apresentadora Xuxa usa suas próprias polêmicas para divulgar a série: 

Isso significa que é usada uma extensão narrativa que ultrapassa a série e conta uma história para além daquele roteiro original assistido. Essa estratégia é chamada de storytelling transmidiática, construída em torno da série e da cultura regional. 

“A estratégia de storytelling somada à estratégia de transmídia é, muitas vezes, utilizada com o viés de marketing e branding”, detalha Emmanuelle Dias, e completa: “A narrativa transmidiática é uma narrativa espalhada em diversos ambientes midiáticos. Star Wars, por exemplo, tem filmes, HQ’s, jogos de videogame… Cada espaço midiático conta uma história complementar do universo de Star Wars. Assim, a narrativa transmídia é uma narrativa que perpassa diferentes ambientes e cada um complementa a seu modo o universo ficcional”, explica Emmanuelle Dias.  

Streaming X Cinema tradicional

Com a pandemia no novo coronavírus, os cinemas tradicionais fecharam as portas para atender às normas sanitárias e de distanciamento social. Sendo assim, o crescimento do streaming pode ofuscar o cinema tradicional? Emmanuelle Dias afirma que uma mídia não substitui a outra, elas convivem. O streaming se tornou um tipo de conteúdo propício para o cenário de pandemia, tanto no audiovisual, quanto na oferta de lives, podcasts e conteúdos para o YouTube.

O streaming é uma tendência que não atrapalha a existência do cinema. Foto: Krists Luhaers

É claro que a experiência do cinema é completamente diferente do streaming. Porém, o streaming mudou o processo de produção normalizado pelo cinema tradicional.

“As plataformas de Vídeo Sob Demanda (VOD) já demonstraram que é possível alterar a cadeia produtiva do cinema em sua tríade clássica de produção, distribuição e exibição. Isso ocorre, principalmente, porque grande parte delas, como Netflix, Amazon Prime e Globoplay, por exemplo, realizam essas três atividades simultaneamente para seus produtos originais – ainda que a grande maioria dos seus produtos sejam realizados em co-produção”, explica Gustavo Padovani que também é roteirista da websérie em desenvolvimento “Ângulos”. 

Ainda assim, existem diferenças entre os filmes produzidos para streaming e filmes produzidos para o cinema tradicional.

“Filmes produzidos e distribuídos pelas próprias plataformas tendem a ter orçamentos menores, pois a grande estratégia da empresa é redistribuir os investimentos em um catálogo forte, grande e que possa reter e ganhar novos assinantes. Filmes de estúdio produzidos para o cinema tradicional como primeira janela possuem outras lógicas de retorno de investimento, pois o filme é negociado também com diversas janelas de exibição, logo, os riscos e os investimentos são bem maiores. Quando se trata de franquias consolidadas então, como Velozes e Furiosos, Universo Marvel e DC, por exemplo, os orçamentos estão crescendo exponencialmente”.

Gustavo Padovani

O streaming impacta as produções independentes?

O esforço de pequenas produtoras por espaço no mercado audiovisual é notável. Mas este mercado acaba se reconfigurando e produtoras pequenas, independentes e locais podem produzir conteúdos em parceria com as plataformas de streaming. 

Investir em produções nacionais é uma boa forma de fidelizar clientes no país. Thiago Venanzoni, professor da Faculdade de Comunicação do Centro Universitário FMU | FIAM-FAAM, e co-fundador do Estúdio Barbante, pontua que as produções de plataformas como Netflix e Amazon Prime Video buscam em produtoras independentes novas formas de atrair o público local. Assim, essas produtoras têm a possibilidade de emplacar grandes projetos nas plataformas.

Série lançada pela Netflix em parceria com a produtora KondZilla, em 2019

A parceria entre a produtora KondZilla e a Netflix resultou na série de ficção Sintonia, que conta a relação de jovens com o funk na periferia paulistana. A parceria foi uma forma genuína de retratar a periferia, já que a produção contou com pessoas que conheciam de perto a realidade do lugar.  

Segundo o professor, conseguir um registro de produtor no Brasil é difícil. A burocracia dificulta a obtenção do título, assim como o registro na Ancine, que permite a chegada aos fundos de investimento e outros recursos oferecidos pela organização. 

“Tem ocorrido um deslocamento, principalmente na Netflix (e a Amazon tem seguido), em investir em produções nacionais. Hoje, o Brasil é um grande mercado para essas plataformas”, explica Thiago Venanzoni. Ele ainda afirma que, o mercado audiovisual gera muitos recursos, receita, vínculos, impostos etc. Mas, ainda assim, não é uma prioridade no país. Isso faz produtoras enfrentarem desafios ao exercer seus trabalhos. Sendo assim, as parcerias são boas opções de negócio. 

“É difícil falar no Brasil de produção independente, porque todas produtoras são, em algum nível, independentes – ainda que haja diferenças gritantes entre elas. Por isso, é sempre importante que as produtoras audiovisuais olhem o que está se colocando no mercado”.

Thiago Venanzoni

Competição pode acirrar com o lançamento da Disney+

Foto: Mika Baumeister

Desde a confirmação do lançamento da plataforma Disney+ no Brasil, marcada para 17 de novembro, muito foi especulado sobre como esta nova oferta vai impactar a concorrência e o mercado audiovisual em território nacional. 

A empresa é um conglomerado que possui diversos tipos de conteúdo, que vão além do universo Disney. Incorpora produções da Pixar como Toy Story; franquias como Star Wars, Marvel, entre outros. Como conglomerado, a Disney já entra no mercado promovendo uma competição injusta no audiovisual. Mas no mercado de streaming esta prática já é utilizada.

“Muitas pessoas associam a Netflix a um canal, mas não, ela não tem uma caracterização de canal de TV. A Netflix vai incorporar conteúdos que foram veiculados por produtoras grandes, independentes, nacionais, estrangeiras etc. Então, ela acaba sendo um conglomerado, assim como a Disney. O Disney+ pode ser um potencial concorrente para a Netflix, porém, o atual mercado brasileiro está em expansão e muito concorrido”, comenta Emmanuelle Dias. 

A pesquisadora ainda complementa que considera que a Disney possui um grande arsenal de conteúdo e grande potencial a ser explorado, contudo, precisa verificar em que medida vai se apropriar de produções locais brasileiras para pluralizar o catálogo que tem a oferecer. 

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