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Aplicação de vacina deve ser feita de acordo com o calendário vacinal / Freepik

Vacinação incompleta abre caminho para avanço de doenças graves

Entenda por que doenças erradicadas, como a coqueluche, estão voltando

Em 2024, o Brasil registrou 28 mortes por coqueluche e mais de 7,1 mil casos da doença, o maior número desde 2014. Em 2025, até o dia 7 de fevereiro, foram 311 casos confirmados e três óbitos (um no Rio Grande do Sul e dois em Minas Gerais), conforme dados do Ministério da Saúde. 

Eduardo Prosdocimi, superintendente de vigilância epidemiológica do Ministério de Estado de Saúde de Minas Gerais, informa que, em 2024, o estado chegou a 94,3% de taxa de vacinação para coqueluche, resultado próximo da meta de 95%. Em 2023, o estado voltou a cumprir a meta de vacinação, não alcançada em 2022.

Porém, um desafio específico é a adesão ao esquema completo de vacinas que exige mais de uma dose, como as da dengue e da coqueluche. Segundo Prosdocimi, apenas 30% das pessoas têm retornado para a segunda aplicação, o que compromete a eficácia dos imunizantes. “É fundamental completar o esquema vacinal para garantir a proteção devida. Sem todas as doses, as pessoas não estão completamente protegidas e podem desenvolver formas graves das doenças”.

Maria Regina D’Império, professora de Imunologia da Universidade de São Paulo (USP), alerta sobre os riscos da queda na cobertura vacinal no Brasil. “Muitos pais estão deixando de vacinar seus filhos por considerar que as doenças infecciosas não são tão perigosas e que as vacinas podem ter efeitos colaterais.” Tal percepção está ligada ao fato de boa parte da população atual pertencer a uma geração que viveu sob alta cobertura vacinal e, por isso, não presenciou os efeitos devastadores de doenças graves. Segundo ela, a hesitação vacinal pode reintroduzir rapidamente doenças que estavam controladas ou até erradicadas, afetando especialmente as crianças.

A hesitação vacinal é a dúvida ou demora em aceitar vacinas, mesmo por quem não é contra a imunização. Surge de medos, desinformação ou desconfiança, sem ser uma rejeição ideológica como o movimento antivacina. Requer diálogo, não confronto, para ser superada.

No meio das estatísticas de crianças vacinadas estava a pequena Alícia, de 1 ano e 11 meses que, apesar de estar com o esquema completo, enfrentou a Coqueluche no início deste ano. A imunização pode ter evitado um quadro mais grave ou a internação. 

O caso de Alicia

Segundo a mãe, a administradora de empresas Aline Medina, 40 anos, Alícia apresentou febre alta, de 39°C, durante os dois primeiros dias de sintomas. Sem outros sinais, a situação foi inicialmente tratada como virose. “Achei que fosse uma virose. Entrei em contato com a pediatra, conversamos, e como não havia mais nenhum sintoma, ela foi tratada como uma gripe, uma virose simples”.

No entanto, a tosse persistiu, “ela tossia muito e chegava a fazer até ânsia de vômito, principalmente à noite”. Aline já tinha ouvido falar do retorno da coqueluche em Belo Horizonte, onde vivem, e decidiu comunicar à pediatra o relato de casos na escola da filha. Com a suspeita, foi realizado o exame específico, que não é coberto pelo plano de saúde, e o diagnóstico de coqueluche foi confirmado. 

“Fiquei apavorada, porque não sabia o que poderia acontecer. Ela estava com o calendário vacinal completo, e eu tinha tomado a vacina na gestação. Me senti totalmente perdida. E agora? O que fazer com uma doença dessas?”, relembra.

Por ser uma doença infecciosa respiratória de contágio rápido e causada por bactéria, o tratamento envolve o uso de antibiótico e afastamento social. A pequena Alícia precisou ficar em isolamento por cinco dias. A febre não voltou, mas a tosse permaneceu por semanas. “Os médicos avisaram que a tosse pode durar até seis meses em alguns casos. Até hoje, se ela começa a tossir, principalmente à noite, deixa a gente sempre preocupado”, conta a mãe. 

“A gente não consegue proteger nossos filhos de tudo, não dá para colocá-los numa bolha. Mas é preciso procurar orientação médica logo nos primeiros sintomas e se manter informado sobre o que está acontecendo na cidade. Se eu não soubesse dos casos de coqueluche, talvez tivesse tratado como mais uma gripe.” Para ela, manter o calendário vacinal em dia é fundamental. “É o que a gente pode fazer para protegê-los. Mesmo entendendo que nenhuma vacina garante 100% de cobertura, é o melhor recurso que temos.”

Como funcionam as vacinas

Maria Regina D’Imperio explica que as crianças são mais suscetíveis às doenças infecciosas e podem desenvolver, com mais frequência que os adultos, formas graves que podem levar à morte. Indivíduos adultos que não foram expostos a um patógeno também são mais susceptíveis a ele quando entram em contato pela primeira vez.

Maria é uma mulher branca, de cabelo curto grisalho; ela está em um ambiente aberto, em frente a plantas e veste uma camisa branca
Maria D’Imperio / José Álvarez

Segundo ela, “o sistema imune dos vertebrados como nós é capaz de reconhecer especificamente os patógenos (organismos capazes de causar doenças a um hospedeiro) e desenvolver táticas apropriadas para cada um deles a fim de controlar as infecções com o menor dano possível para o organismo infectado”. No entanto, esta capacidade, é “aprendida” durante a vida do indivíduo através das interações com os diferentes patógenos.

As vacinas contêm patógenos atenuados (mortos ou defeituosos) ou “pedacinhos” deles  que podem estar associados a compostos que estimulam a resposta imune adequada para cada caso. “Assim, as vacinas são capazes de “ensinar” o sistema imune a responder de forma específica contra cada patógeno utilizando as melhores ferramentas disponíveis para destruí-los. Por isso, as pessoas vacinadas tornam-se mais resistentes às infecções e apresentam menos chances de desenvolver as formas graves da doença”, explica Maria Regina.

Quando nos infectamos pela primeira vez com um determinado patógeno, os linfócitos específicos proliferam muito e se transformam em células com as características necessárias para destruí-lo. Ela detalha: após o controle da infecção, estes linfócitos específicos se transformam em células de memória que podem se perpetuar por muitos anos e responder de maneira rápida e efetiva a um contato futuro com o mesmo patógeno ou semelhante. Essa resposta eficaz é essencial para controlar rapidamente a reinfecção e prevenir o dano dos tecidos”.

Esse fenômeno de proteção coletiva beneficia inclusive aquelas com imunidade comprometida, como idosos, deficientes nutricionais, doentes crônicos, imunodeficientes e imunossuprimidos

Maria Regina D’Imperio explica que, quando a cobertura vacinal é elevada, a disseminação dos patógenos fica limitada, já que diminui o número de contatos entre pessoas suscetíveis e transmissoras. “Esse fenômeno de proteção coletiva beneficia inclusive aquelas com imunidade comprometida, como idosos, deficientes nutricionais, doentes crônicos, imunodeficientes e imunossuprimidos”.

Essa proteção dá a falsa impressão de que a vacinação não é importante porque, caso um pequeno grupo de pessoas não se vacine, ele continua protegido graças à imunidade coletiva. Segundo ela, as pessoas só se tornam efetivamente mais vulneráveis às infecções quando a porcentagem de pessoas não vacinadas ultrapassar um valor crítico que permita ao patógeno disseminar pela população. 

Nesse ponto, muita gente pode ser infectada, sendo que as crianças e as pessoas com imunidade comprometida devem ser particularmente afetadas, ainda mais se não existirem vacinas disponíveis para uma vacinação em massa.

Tendência de não vacinação

Doutor em comunicação com foco em pesquisas de temas como teorias da conspiração, Rodrigo Quinan destaca que o avanço de discursos antivacina e anticiência está diretamente ligado ao crescimento das mídias sociais e da internet como um espaço pouco regulado. 

Rodrigo Quinan é um homem branco de barba e cabelos negros, usando uma blusa azul escuro sentado em um sofá marrom
Rodrigo Quinan / arquivo pessoal

“Nesse período em que as pessoas passam a ter acesso a smartphones, mídias sociais e à internet (um espaço muito menos regulado do que a mídia tradicional como o rádio, a TV, o jornal) é o momento em que vemos a ascensão não só do movimento antivacina, mas de muitos discursos anticiência, extremistas e de extrema-direita, que são antissistema e anti-instituição”.

Segundo ele, esses discursos se proliferam em plataformas como Telegram, WhatsApp, YouTube e TikTok, onde encontram terreno fértil para radicalizar indivíduos. “Esses movimentos podem levar pessoas com resistência à vacina a ampliar seu repertório de teorias da conspiração, aumentando também sua desconfiança em relação à ciência”. Ele critica a falta de controle por parte das empresas donas dessas plataformas, que falham em conter a desinformação.

“Existe uma tendência de as pessoas compartilharem crenças com aqueles com quem se agrupam socialmente”. Rodrigo Quinan cita o estudo fraudulento de Andrew Wakefield (2000), que associou vacinas ao autismo e se tornou um marco do movimento antivacina: “O estudo foi desmascarado, o cientista perdeu sua licença, e o artigo foi retirado, mas virou um ícone para os conspiracionistas. Eles usam isso como ‘prova’ de que há um encobrimento”. Ele destaca que figuras públicas e influenciadores digitais amplificam essas ideias: “Muitos canais pequenos ou médios no Telegram, WhatsApp e YouTube têm um papel crucial na criação desse ambiente antivacina”.

Essa desconfiança é, muitas vezes, aliada a experiências pessoais; muitas pessoas têm experiências negativas com um sistema de saúde precarizado, o que gera uma resistência compreensível, mesmo que mal direcionada. O pesquisador aponta que o Brasil, que já teve taxas de vacinação acima de 95% em 2012, viu esses números despencarem nos últimos anos: “Isso era inesperado, pois o país sempre foi eficiente em vacinação, até a chegada da extrema-direita ao poder e a disseminação dessas narrativas antivacina”.

O pesquisador relaciona o fenômeno ao uso de narrativas falsas na política, como o kit gay na campanha de Bolsonaro em 2018: “Foi uma mentira inventada, mas as teorias da conspiração ampliaram: diziam que a esquerda iria ‘ensinar homossexualidade’ ou até ‘institucionalizar a pedofilia’. Essas ideias são antigas, mas Bolsonaro e Olavo de Carvalho as instrumentalizaram”.

“Esses discursos não surgem do nada. Eles se desenvolvem em um espaço desregulado, onde comunidades se formam e radicalizam pessoas que, de outra forma, não seriam levadas a esses extremos. Esses exemplos que eu dei são de como que a polarização faz mal, porque vacina não é para ser coisa de esquerda ou de direita, é uma questão básica de medicina que as pessoas precisam para continuar vivas.”

Como as vacinas são desenvolvidas

Maria Regina D’Imperio explica que o desenvolvimento de vacinas requer muito trabalho de pesquisa e testes clínicos para assegurar sua eficiência e ausência de efeitos adversos graves, despendendo uma quantidade enorme de recursos. Essa dificuldade se deve à complexidade dos patógenos, que evoluem constantemente para assegurar a sua sobrevivência.

“O tempo de proteção das vacinas é bastante variável. Algumas duram toda a vida, como é o caso da vacina contra a febre amarela, e outras têm que ser ministradas anualmente, como é o caso da vacina da gripe. A explicação para essa variabilidade está principalmente relacionada a características das vacinas e dos patógenos”, diz a imunóloga.

A eficácia das vacinas tende a se reduzir com o tempo após a vacinação porque as células do sistema imune estão continuamente nos protegendo, deixando cada vez menos espaço no nosso corpo para os linfócitos de memória induzidos pela vacina. Quando a proteção vacinal diminui abaixo do nível necessário para conter o patógeno, podemos ficar doentes caso sejamos infectados de novo por ele.

“Existem várias condições em que as vacinas podem não induzir uma resposta imune eficaz – lembrando que a eficácia delas está relacionada à capacidade de proteger contra a infecção e não necessariamente a de induzir uma resposta imune robusta. Em algumas situações, os pesquisadores conseguem desenvolver vacinas que estimulam a resposta imune contra o patógeno, mas não é capaz de destruí-lo”, explica D’Imperio.

As vacinas também podem não induzir imunidade contra os patógenos em pessoas com sistema imune debilitado. Entre elas destacam-se aquelas com idades avançadas, deficiências nutricionais, doenças crônicas (diabetes ou cardiopatias) e que afetam o sistema imune (AIDS, câncer ou doenças autoimunes), ou que tomam medicamentos imunossupressores (doenças inflamatórias e transplantes).

“Outros pontos importantes a serem considerados são a aceitação da vacina pela população, que envolve fatores culturais, religiosos, educacionais e políticos, necessitando a  comunicação eficaz para esclarecer sobre os benefícios, riscos e limitações da imunização, além de combater a disseminação de fake news”, destaca a professora. Questões logísticas, financeiras ou regulatórias podem ainda limitar a disponibilidade da vacina para grupos prioritários ou vulneráveis.

“Apesar da extrema dedicação dos pesquisadores em tentar desenvolver uma vacina contra a malária e a AIDS, ainda não existe nenhuma disponível”. Estas doenças são bastante letais e, individualmente, causaram a morte de aproximadamente 600 mil pessoas em 2023. Em ambos os casos, o patógeno pode se esconder dentro das células da pessoa infectada e, no momento adequado, se multiplicar e causar a morte celular. Além disso, na malária o parasito pode variar seus componentes e “driblar” a resposta imune.

Os vírus se multiplicam rapidamente e sofrem mutações genéticas, conseguindo alterar sua composição e, assim, “escapar” das respostas imunes, inclusive daquelas geradas pela vacinação. Para lidar com este problema, os serviços de vigilância sanitária ao redor do mundo monitoram continuamente as variantes virais e, a partir dos dados obtidos, são produzidas novas vacinas capazes de induzir respostas imunes contra as novas variantes

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Rayssa Moura

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