Oniuou, indígena da etnia Xavante, nasceu na Aldeia Xavante Namakura, localizada próxima a Barra do Garças, no estado de Mato Grosso, em 1943. Somente aos 17 anos, teve contato com os brancos. Mário Juruna foi o nome adotado para se apresentar na sociedade branca. Ele, como a maioria dos indígenas, teve que deixar sua casa, seu parentes e seu modo de vida em nome do desenvolvimento desenfreado dos brancos. Ele entendeu bem cedo como seria sua vida a partir dali.
Em 1983, nos anos finais da ditadura militar, o eco de passos determinados ressoou pelos corredores de mármore do Congresso Nacional. Cacique Mário Juruna, com seu inseparável gravador a tiracolo, caminhava com a missão de “gravar tudo que o branco diz”. Seus olhos, carregados de história e resistência, iriam ao encontro do microfone para discursar como primeiro deputado federal indígena.
Sua responsabilidade histórica não lhe roubou energia. Pelo contrário, sua voz firme ecoou no plenário: “E muita gente que achava, quando eu entrei na política, muita gente falava contra Juruna, falava: Imagina como que Juruna vai entrar no plenário, imagina, o índio, o que é que vai resolver no plenário, como é que índio vai representar índio? E eu quero saber: imagina, o que é que o branco pode? Talvez índio pode representar melhor do que qualquer deputado, qualquer senador e qualquer da República”.
Suas palavras, afiadas como flechas, expunham as feridas abertas da política brasileira: “Aqui gente tá morrendo. E por quê? Porque não tem presidente, não tem autoridade. E toda autoridade é comprada, toda autoridade está se vendendo, quer o dinheiro, quer ganhar dinheiro”.
Um longo silêncio
O sol mal havia nascido em 12 de fevereiro de 1987 quando tiros assolaram a Terra Indígena Xakriabá, no norte de Minas Gerais. O cacique Rosalino Gomes de Oliveira caía, vítima de pistoleiros a mando de fazendeiros locais. Seu crime: lutar pela demarcação das terras de seu povo.
Naquele mesmo ano, a mais de mil quilômetros dali, em Brasília, Ailton Krenak pintava o rosto de preto com tinta de jenipapo na tribuna da Assembleia Nacional Constituinte: “O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil”. Sua voz se fazia ouvir em nome de tantos Rosalinos de Minas e do país.
Apenas em 2018, 35 anos mais tarde, Joênia Wapixana, da etnia Wapixana, se tornaria a primeira mulher indígena a se tornar deputada federal pelo estado de Roraima, cargo que exerceu de 2019 a 2023. No mesmo período, ela também foi a primeira presidente da Comissão de Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Durante esse período, ela desempenhou um papel crucial na defesa dos direitos indígenas, promovendo a demarcação de terras e a proteção de comunidades, como a reserva indígena Raposa Serra do Sol.
Célia Xakriabá
Três décadas depois do discurso de Mário Juruna, Célia Xakriabá caminharia pelos mesmos corredores de mármore do Congresso Nacional percorridos pelos passos do cacique. Seu cocar, imponente, parece tocar o teto. Nas mãos, não um gravador, mas um smartphone. Sua mensagem é firme como as raízes dos pequizeiros de sua terra: “Antes do Brasil da coroa e do chapéu existiu o Brasil do cocar”.
O caminho de Célia até o Congresso foi pavimentado não apenas por passos, mas por rastros de sangue e de luta. O crime ambiental cometido pela Samarco em Mariana, em 2015, foi denunciado pela deputada. A lama invadiu o Rio Doce, trazendo morte e destruição ao território de seus parentes Krenak. Célia estava lá, ao lado de outras lideranças, exigindo justiça: “Não existe repactuação e reparação, deste que é o maior crime ambiental e trabalhista do Brasil, sem ouvir os povos indígenas e comunidades tradicionais. Apesar de alguma publicidade do tema, a população atingida não teve participação nos rumos dessa discussão da repactuação”, disse a deputada logo após a aprovação do relatório que será entregue aos governos de Minas Gerais, Espírito Santo e ao presidente Lula.
De Oniuou a Xakriabá, uma linha invisível, mas inquebrável, conecta suas vozes. Cada palavra pronunciada e cada passo dado nos salões do poder é um ato de resistência contra séculos de tentativas de apagamento. São testemunhos de que, longe de serem sujeitos apolíticos, os povos indígenas sempre foram atores fundamentais na construção da democracia brasileira.
A nova onda
Conhecido como Cacique Carlinhos, o Cacique Arapowana, do povo Xukuru Kariri, contempla o território que sua comunidade ocupa há dois anos e sete meses em Brumadinho, Minas Gerais. Seu olhar, ao mesmo tempo determinado e preocupado, reflete a luta contínua de seu povo.
“Aqui tamos em processo de retomada”, explica Carlinhos, sua voz carregando o peso de gerações de resistência. “A espiritualidade nos guiou até esse território aqui, mas, antes disso, nós fizemos uma luta muito árdua”.
A história de Carlinhos e seu povo é um microcosmo da realidade enfrentada por comunidades indígenas em todo o Brasil. Mas algo está mudando. Uma nova onda de representatividade indígena está ganhando força na política brasileira, ecoando os passos pioneiros de Mário Juruna décadas atrás.
Domingos Andrade, membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), observa esse cenário com otimismo cauteloso: “Conforme os dados que nós temos, de 2024, superou as eleições de quatro anos atrás. Houve um maior número de participação indígena, houve um maior número de eleitos, vereadores, prefeitos, vice-prefeito, dentro desse processo”.
Para Andrade, o quadro político está se transformando em Minas Gerais. “No estado de Minas Gerais, os dados que nós temos são da eleição de duas pessoas que se declaram indígenas, na cidade de São João das Missões, o Jair Xacriabá, e no município de Manga, o Anastácio,” afirma. “Então são dois indígenas prefeitos na região norte aqui de Minas Gerais”.
O próprio Cacique Carlinhos faz parte dessa onda de participação política: “Eu recebi um convite tanto dos apoiadores tanto de uma parente, né? Que ela é a deputada Federal a Célia Xakriabá mais deputados também, né? Para mim ingressar na política”, relata ele. Embora não tenha sido eleito, sua candidatura a vereador em Brumadinho foi um marco significativo. “Fui o mais bem votado do Partido dos Trabalhadores do município de Brumadinho, né? Com 139 votos”.
A crescente representatividade não se limita apenas a cargos eletivos. Indígenas estão ocupando espaços importantes em diversos setores da sociedade. “Nós temos indígenas que são médicos, indígenas que são advogados e, ainda mais agora, trilhando no caminho da política”, ressalta Andrade.
No entanto, os desafios persistem. O preconceito e o racismo ainda são obstáculos significativos. “Eles destacam que ainda é forte essa questão do preconceito, do racismo, câmaras de vereadores com a maioria homens, brancos, e que não aceitam a participação da representatividade do movimento social, do movimento popular”, observa Andrade.
Apesar dos obstáculos, a determinação dos povos indígenas em ocupar espaços políticos é inabalável. Como diz o Cacique Carlinhos: “Nós temos que ocupar esses espaços porque passou o tempo de a gente ser excluído e a gente só tá gritando dentro dos territórios”.
Essa nova onda de representatividade indígena – que, de nova, não tem nada – não é apenas uma questão de números ou estatísticas. É um movimento de resistência, de afirmação cultural e de luta por direitos. É a continuação de uma jornada que começou há séculos, mas que agora ganha nova força e visibilidade nos corredores do poder.
Avanços e iniciativas
O sol nascente ilumina a Aldeia Arapowã Kakyá em Brumadinho, onde o Cacique Carlinhos reúne sua comunidade para mais um dia de luta e esperança. Mas o ar estava carregado de expectativa. O cacique tinha novidades para compartilhar.
“Eu recebi o convite do prefeito eleito para fazer parte na gestão dentro do município”, anuncia Carlinhos, seus olhos brilhando com a possibilidade de mudança. “Nossos Encantados permitindo, vamos criar a primeira Secretaria dos Povos Tradicionais dentro do Estado de Minas Gerais, aqui em Brumadinho”.
A proposta, inovadora, é mais do que uma aspiração. O prefeito eleito Gabriel Parreiras, do PRD, já incluiu a criação da secretaria como uma das pautas prioritárias de sua gestão, sinalizando um compromisso concreto com as demandas dos povos tradicionais.
Esse movimento em direção a uma representação mais ampla e inclusiva não está acontecendo apenas em Brumadinho. Por todo o Brasil, comunidades indígenas estão se mobilizando, preparando-se para ocupar espaços políticos que há muito lhes foram negados.
Andrade destaca a importância dessas iniciativas: “Várias oficinas formativas foram realizadas nas comunidades para que elas entendessem a importância da participação na política eletiva. Foram feitos seminários, encontros, diversas ações voltadas a essa temática da política”.
Essas ações de base estão dando frutos. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tem desempenhado papel importante nesse processo, incentivando e apoiando candidaturas indígenas em todo o país. “Os indígenas discutiram qual o papel dos partidos políticos dentro desse processo”, explica Andrade. “A partir daí, as comunidades escolheram os seus representantes para concorrer às câmaras municipais, para concorrer aos cargos da majoritária”.
Para além da política eleitoral, indígenas estão ocupando espaços importantes em diversos setores da sociedade. O próprio Cacique Carlinhos, por exemplo, faz parte do Conselho Municipal de Saúde de Brumadinho, representando sua comunidade e levando as demandas dos povos indígenas para as políticas públicas de saúde.
“Eu fui o único aqui do município de Brumadinho a representar, como um indígena e usuário do SUS, representar em Brasília na última conferência nacional”, conta com orgulho, embora sua voz carregue uma nota de frustração. “Onde eu sofri um racismo. E quando eu cheguei dentro da minha comunidade, nesta cidade, ninguém veio me agradecer por ter representado o município de Brumadinho”.
Essas experiências, tanto positivas quanto negativas, estão moldando uma nova geração de líderes indígenas. Jovens como Mateus Marques, monitor de uma escola em Belo Horizonte, estão testemunhando essa transformação em primeira mão.
“É bom ter essas visitas porque a gente tem um imaginário muito construído pelo capitalismo”, reflete Mateus, após uma visita à Aldeia Arapowã Kakyá com seus alunos. “Vivenciar isso de perto, vir com o próprio corpo e sentir o chão, é sentir o contato com eles. É outra coisa”.
Territorialidade e empoderamento indígena
Em Minas Gerais, existem 19 Territórios Indígenas (TIs) distribuídos em diversos municípios, refletindo a rica diversidade étnica e cultural do estado. A maior concentração de população indígena em TI encontra-se na cidade de São João das Missões, que abriga 10.398 moradores da etnia Xacriabá. Este município é sede da Terra Indígena Xakriabá, que se estende também pelos municípios de Itacarambi e Cônego Marinho, com status de “Dominial Indígena”. Em contraste, existem TIs com populações, como a Terra Indígena Mukurin, localizada em Campanário, que está ainda em fase de identificação.
A situação fundiária desses territórios varia significativamente: desde áreas em identificação, como a própria TI Mukurin, até terras já registradas no CRI e/ou SPU, como a Terra Indígena Maxakali em Bertópolis e Santa Helena de Minas. Outras TIs notáveis incluem a Terra Indígena Krenak em Resplendor, a Reserva Indígena Fazenda Guarani em Carmésia e Dores de Guanhães (abrigando as etnias Krenak e Pataxó), e a Dominial Indígena Pankararu de Coronel Murta. Esta diversidade de situações fundiárias e distribuição geográfica reflete a complexidade dos processos de reconhecimento e demarcação de terras indígenas no estado.
As etnias presentes no estado são Mukurin, Aranã, Pankararu, Pataxó, Xacriabá, Kaxixó, Krenak, Maxakali, Tuxá, Xukuru-Kariri e Pataxó Hã-Hã-Hãe Cada uma dessas comunidades possui sua própria história de resistência, mas todas têm algo de natureza ímpar que as une: pertencem ao tronco lingüístico Macro-Jê e Tupi-Guarani (Guarani), de acordo o com o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, o CEDEFES.
Os Xakriabá, uma das maiores populações indígenas do estado com mais de 8.000 residentes em suas aldeias, estão concentrados nos municípios de São João das Missões Cônego Marinho e Itacarambi, no norte de Minas. As Terras Indígenas Xakriabá e Xakriabá Rancharia são fundamentais para a manutenção de sua cultura e modo de vida tradicional.
Já os Maxakali encontram-se principalmente nos municípios de Bertópolis e Santa Helena de Minas (em torno de 2.000 hab), no nordeste do estado, onde a Terra Indígena Maxakali desempenha um papel crucial na preservação de suas tradições. Outra comunidade habita o Vale do Mucuri, em Teófilo Otoni, com população aproximada de 500 residentes indígenas.
Os Krenak, por sua vez, estão localizados em Resplendor, perfazendo em torno de 500 pessoas. Estão no leste de Minas, onde lutam pela preservação de seu território ancestral às margens do Rio Doce, local hoje devastado pelo crime ambiental da Samarco. Em 2023 os Krenak tiveram o anúncio da homologação das Terras Krenak de Sete Salões. No no final de abril, a indígena, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, assinou a aprovação dos estudos de identificação e delimitação das Terras Indígenas Krenak de Sete Salões. Paralelamente, a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos concedeu a primeira reparação coletiva realizando um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro aos indígenas Krenak e Guarani Kaiowá (MS), por crimes na ditadura.
A territorialidade é um aspecto central na vida e na luta dos povos indígenas de Minas Gerais e do Brasil. Os territórios não são apenas espaços físicos, mas representam a base da identidade cultural, espiritual e social dessas comunidades. A demarcação e proteção desses territórios são essenciais para a sobrevivência e o fortalecimento das tradições indígenas.
Os esforços da comunidade indígena no sentido de “aldear a política” parece estar dando certo, haja visto os resultados mostrados nesta reportagem. Outro exemplo notável é o município de Coronel Murta, no Vale do Jequitinhonha, onde a etnia Pankararu, buscando representatividade política, levou cinco indígenas a se candidatarem a cargos de vereador nas últimas eleições.
A busca por reconhecimento e demarcação de terras continua sendo um desafio significativo. Muitos territórios ainda se encontram em diferentes fases do processo de regularização, desde áreas em identificação, como a Terra Indígena Mukurin, até terras já registradas, como a Terra Indígena Maxakali.
A relação entre territorialidade e política é intrínseca para os povos indígenas de Minas Gerais. A luta por espaços políticos é, em grande parte, uma extensão da luta pela terra e pelo direito de viver conforme suas tradições. À medida que essas comunidades ganham mais voz na arena política, aumentam também suas chances de influenciar políticas públicas que respeitem e promovam seus direitos territoriais e culturais.
Reportagem desenvolvida por João Vitor Castro, Katia Torres e Kevin Soares para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/1 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.
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