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A imagem apresenta um martelo de juiz em madeira, posicionado sobre uma base, com botões de flores de cannabis dispostos ao lado.
STF bate martelo e toma mais uma decisão sobre a regulamentação da maconha / Foto: Imagem da Internet

STF regulamenta Artigo 28 da Lei de Drogas

Entenda a regulamentação do STF sobre o Artigo 28, que fala sobre a liberação de drogas como a cannabis no Brasil

Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a debater a regulamentação do porte de drogas para uso pessoal na chamada Lei de Drogas, centrando a discussão no caso de Francisco Benedito de Souza, condenado por portar 3 gramas de maconha para consumo próprio. Na sessão do dia 25 de junho de 2024, os ministros analisaram o Recurso Extraordinário 635659, que questiona se o porte para uso pessoal deveria ser considerado crime ou infração administrativa. Entre os argumentos apresentados, a Defensoria Pública destacou a proteção aos direitos constitucionais da intimidade e da vida privada, promovendo uma reflexão sobre a abordagem do sistema de justiça no tratamento do uso de drogas. 

A discussão é permeada pela história da legislação brasileira sobre drogas, que começou a se formalizar com a Lei 6.368, de 21 de outubro de 1976. Esta lei foi a primeira a tipificar o uso de drogas como crime e, embora tenha introduzido penalidades para a posse e o tráfico de substâncias, não estabelecia diferenciação entre usuários e traficantes. Em vez disso, tratava todos como criminosos, resultando em um aumento significativo no encarceramento, especialmente de usuários, sem oferecer alternativas de tratamento ou recuperação.

A imagem retrata a estátua da Justiça, localizada em frente ao edifício do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. A estátua, feita de pedra, representa uma figura feminina com os olhos vendados, simbolizando imparcialidade, e segurando uma espada, que representa a lei.
Estátua da deusa grega Têmis, símbolo da justiça, esculpida pelo artista mineiro Alfredo Ceschiatti, em frente ao STF / Imagem: Divulgação STF

Em resposta às críticas e à demanda por uma abordagem humanitária, a Lei 11.343, sancionada em 2006, alterou a maneira como o Brasil lida com usuários e traficantes, buscando a descriminalização do uso de entorpecentes e a separação entre usuários e traficantes, além de priorizar a saúde e a recuperação. Contudo, a implementação deixou lacunas, especialmente pela falta de uma definição clara sobre o que configura o porte para uso pessoal, resultando em ambiguidades na aplicação da lei.

Em 2015, a Corte analisou o impacto da legislação, ressaltando que a intenção da lei de 006 era evitar a criminalização do usuário. “Nenhum usuário de nenhuma droga pode ser criminalizado”, afirmou o ministro Dias Toffoli, sublinhando que a Lei de Drogas de 2006 tinha como objetivo descriminalizar o uso de entorpecentes, em contraste com a abordagem punitiva das legislações anteriores. Segundo ele, a lei pretendia oferecer alternativas de recuperação, promovendo políticas de saúde pública em vez de punições criminais.

Outro ponto central do debate foi a proposta de fixação de uma quantidade limite, como 40 gramas de cannabis sativa, para diferenciar usuários de traficantes, medida que já se mostrou eficaz em países como Bélgica, Portugal, Uruguai e Portugal. Conforme o ministro Alexandre de Moraes, a regulamentação objetiva evitar o encarceramento desproporcional de pessoas que não se encaixam no perfil de traficante, mas que, na prática, acabam penalizadas pela falta de critérios objetivos. Moraes também trouxe à tona um estudo que revelou que, entre 2003 e 2017, 72% das prisões por tráfico eram de jovens negros analfabetos, enquanto brancos com mais de 30 anos e curso superior enfrentavam menos penalidades. 

A decisão do STF também destacou a necessidade de políticas públicas baseadas em evidências, redirecionando recursos do sistema penitenciário para programas socioeducativos. Segundo dados de Toffoli, manter um preso custa cerca de três mil reais mensais, enquanto um programa educacional custa apenas seiscentos reais. Ao final da sessão, os ministros recomendaram que o Congresso Nacional estabeleça critérios claros para a diferenciação entre usuários e traficantes. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, esclareceu que a mudança não libera o uso em locais públicos, mas acaba com a punição criminal ao usuário.

Visão da segurança pública

A regulamentação do STF sobre a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal até 40 gramas ou seis plantas fêmeas gerou uma série de reflexões dentro da polícia. Profissionais da segurança pública, como os sargentos Paulo Henrique e Samuel Paz e o investigador Delmo Castanheira, compartilham suas visões sobre o impacto dessa regulamentação, revelando desafios e limitações do trabalho policial.

A imagem mostra a frente de uma viatura da Polícia Militar, com destaque para o farol e a grade do veículo.
Viatura à disposição para possível apreensão / Imagem: Domminic Arcanjo

Para os sargentos, a regulamentação traz mudanças mínimas para o sistema carcerário, já que usuários de pequenas quantidades de drogas não estavam sujeitos a penas de prisão desde a Lei nº 11.343/06. Segundo o sargento Paulo Henrique, a superlotação nas cadeias é majoritariamente composta por traficantes e criminosos envolvidos em atividades de maior escala. “A decisão do STF foca mais na distinção entre usuário e traficante, mas não altera o foco da segurança pública, que é prender o traficante”, explica ele.

O investigador Castanheira concorda e acrescenta que a legislação atual exige cautela nas abordagens, pois, mesmo que um indivíduo seja flagrado repetidas vezes com quantidades legais de maconha, ele não pode ser tratado como traficante. “Mesmo em diferentes situações, porque ela não está… qual que é a lei que ela está infringindo? Nenhuma”, afirma. Na visão de Castanheira, o trabalho policial é limitado pela margem de porte permitida, o que pode dificultar a prevenção em áreas de alta circulação de drogas.

Ambos os sargentos e o investigador apontam que a nova regulamentação não soluciona o problema de como distinguir usuários de traficantes em abordagens cotidianas. O sargento Samuel Paz destaca que a diferenciação já era desafiadora antes da decisão, pois dependia de provas adicionais, como dinheiro em espécie, balanças de precisão e outros indícios de comércio. “A prisão em flagrante por tráfico ainda depende dos sinais de envolvimento, como balanças e grandes quantias de dinheiro”, ressalta.

Castanheira, por sua vez, levanta a dificuldade de identificar traficantes apenas pelo porte de drogas e indica que a abordagem precisa considerar também o ambiente e o comportamento do suspeito. “Se a pessoa estiver com dinheiro, a questão é que o dinheiro pode ser conduzido pela origem, mas não está relacionado diretamente à droga.” Ele ainda observa que, em situações em que cada pessoa carrega a quantidade permitida, mesmo que o total ultrapasse o limite, a polícia não pode imputar tráfico sem provas diretas.

Outro ponto de convergência é a complexidade de atuar dentro dos novos limites sem riscos de acusações de abuso de autoridade. Os sargentos expressam preocupação de que a nova margem permitida exponha os policiais a alegações de excesso nas abordagens. Castanheira concorda, mencionando que o trabalho policial exige cautela constante: “Estamos expostos, mas não podemos deixar de fazer o nosso trabalho por causa de drogas”.

Na visão do investigador, o impacto da decisão pode ser perceptível na segurança pública, especialmente ao se observar um provável aumento no consumo, o que, segundo ele, tornará o trabalho policial “cada vez mais difícil.” Samuel Paz, entretanto, pondera que a descriminalização por si só pode ter efeitos moderados no longo prazo, mas enfatiza a importância de abordar o problema das drogas com um equilíbrio entre saúde pública e repressão.

Ao discutir papel das Forças Armadas e da Polícia Militar, Castanheira e os sargentos concordam que o papel da segurança pública não mudou substancialmente: cabe às forças de segurança manter a ordem e coibir o tráfico. Contudo, ambos enfatizam que um apoio legislativo mais sólido às forças policiais será essencial para adequar a regulamentação aos desafios práticos nas ruas.

Olhar da medicina, por Dr. Nicholas Soyombo

Um médico usando um jaleco branco com seu nome bordado, acompanhado da palavra "Médico". Ele também veste uma gravata preta e óculos, transmitindo uma imagem de profissionalismo e seriedade.
Dr. Nicholas Soyombo, médico, destaca os riscos à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas em ambientes não regulamentados / Imagem: Arquivo pessoal

Para entender melhor as implicações dessa regulamentação na saúde, o projeto Prosa em off conversou com o Dr. Nicholas Soyombo,  médico formado pela UFMG, que compartilhou suas reflexões sobre o assunto.

Soyombo acredita que o uso recreativo de substâncias psicoativas, como a maconha, pode ser aceitável se regulamentado pelo Estado. Ele ressalta que a falta de controle sobre a procedência das substâncias é um dos maiores riscos. Assim, o ideal é que o uso de substâncias psicoativas seja feito de forma segura e regulamentada, evitando que as pessoas recorram a produtos de origem duvidosa. Além disso, ele enfatiza que o debate sobre o porte não deve se limitar a questões legais, mas também considerar o contexto social e a percepção de risco entre usuários e traficantes.

Outro ponto destacado pelo médico foi a questão da pureza das substâncias. Embora o consumo de maconha pura não seja isento de riscos, a preocupação aumenta quando são introduzidas substâncias adulterantes. Segundo ele, a compra de drogas no mercado ilegal expõe os usuários a perigos desconhecidos, o que torna difícil garantir a pureza da maconha fora de um mercado regulamentado. Dr. Soyombo adverte que, ao se deparar com substâncias adulteradas, os riscos à saúde podem aumentar drasticamente, levando a consequências graves.

Além disso, Dr. Nicholas Soyombo comenta sobre a possibilidade de a regulamentação facilitar pesquisas sobre o uso de cannabis. Ele acredita que, com substâncias regulamentadas, como o cigarro, é possível realizar estudos retrospectivos que ajudam a entender os impactos à saúde. Nesse sentido, a descriminalização pode criar um ambiente onde os pacientes se sintam mais à vontade para discutir seu uso de drogas, sem medo de represálias. Essa abertura, portanto, pode permitir diagnósticos mais precisos e tratamentos mais eficazes, contribuindo para um melhor entendimento das relações entre uso de substâncias e saúde.

Outro aspecto importante abordado pelo médico foi a diferenciação entre o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), o componente que causa a sensação popularmente conhecida de “estar chapado”. Ele explica que, enquanto o CBD possui propriedades terapêuticas, o THC é associado a efeitos recreativos. Destaca também que o canabidiol tem mostrado potencial no tratamento de condições como epilepsia. No entanto, o desafio reside em entender como esses receptores funcionam e como podemos aproveitar esses efeitos de maneira segura.

O médico aponta que a decisão do STF representa um avanço significativo, mas a implementação eficaz da regulamentação depende da atuação de profissionais de saúde e agentes de segurança. Nesse contexto, Dr. Nicholas Soyombo enfatiza que a prática cotidiana pode diferir muito da teoria. A regulamentação precisa ser clara para evitar discriminações e garantir que o foco esteja na saúde pública, e não na criminalização.

Reflexos sociais e psicológicos da descriminalização

A imagem mostra um estúdio com uma pessoa em primeiro plano, vestindo uma camiseta verde e utilizando um microfone enquanto opera equipamentos de som e um computador. Na frente dela, há uma mesa com monitores que exibem softwares de edição, além de uma mesa de som e outros dispositivos técnicos. Ao fundo, separados por um vidro, estão duas pessoas usando microfones, aparentemente participando de uma gravação ou transmissão ao vivo. O ambiente é acústico, com paredes revestidas para isolamento sonoro, criando uma atmosfera profissional.
Em entrevista, Alexsandro Nascimento analisa os impactos sociais e comportamentais / Imagem: Natália Araújo

No contexto da regulamentação do porte de drogas, o sociólogo e psicólogo Alexsandro Nascimento traz uma perspectiva enriquecedora sobre os impactos sociais e comportamentais da descriminalização.

Nascimento critica a desconexão entre a sociedade e o legislativo: “a gente reclama muito do Congresso Nacional, mas somos nós que os elegemos.” Essa observação nos faz refletir sobre a responsabilidade coletiva na formação de políticas que impactam a vida das pessoas, especialmente aquelas em situações vulneráveis. Além disso, em depoimento sobre um caso de enquadramento acontecido com seu aluno, o policial diz a vítima: “sinto muito se você está no meu script”, destacando como muitos usuários são rotulados e criminalizados sem considerar suas circunstâncias individuais. 

Ele ainda ressalta a hipocrisia no discurso sobre drogas, dizendo: “na verdade, a gente consome muito mais drogas do que essas que chamam a atenção do Congresso Nacional.” Provocando uma reflexão sobre como a percepção social do uso de drogas varia conforme a classe social e a cor da pele. E destaca a dura realidade enfrentada por uma parcela significativa da juventude brasileira: “nós temos uma juventude, preferencialmente preta e pobre, que é presa todos os dias, estando com zero gramas no bolso.” Essa afirmação contundente revela as desigualdades raciais e sociais que permeiam o sistema de justiça e convida os espectadores a se aprofundarem nesse tema.

Assista ao vídeo visão por um sociólogo para entender como essas realidades se entrelaçam e quais soluções podem ser discutidas para criar uma sociedade mais justa.

A regulamentação do uso de drogas no Brasil avança com propostas que buscam uma abordagem mais clara e humanitária. O descontingenciamento do Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD) é essencial para financiar campanhas de esclarecimento sobre os riscos do consumo de drogas, promovendo a educação e a conscientização.

A proposta de categorizar o porte de drogas como uma infração administrativa, sem implicações penais, representa uma mudança significativa na forma como o Estado lida com usuários. Além disso, a maioria dos ministros do Supremo apoia a fixação de um quantitativo de 40 gramas de cannabis sativa como referência, que deve prevalecer até que o Congresso Nacional estabeleça regulamentações definitivas. Essa abordagem permite avaliar as circunstâncias individuais, tratando casos com menos de 40 gramas como tráfico em determinadas situações e considerando quantidades superiores sem necessariamente implicar em tráfico.

Confira o histórico da proibição de drogas no Brasil

Infográfico apresentando dados sobre o histórico da proibição de drogas no Brasil, antes da lei de 2006.
Infográfico que fala sobre o histórico da proibição de drogas no Brasil, depois da lei de 2006.
Reportagem de Karol Martins, Lara Isabelle e Natália Araújo para a disciplina Apuração, Redação e Entrevista do curso de Jornalismo do campus São Gabriel da PUC Minas, sob a supervisão do professor Vinícius Borges.

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