Colab
Mulheres em manifestação de rua a favor do aborto
Foto meramente ilustrativa. Créditos: Rovena Rosa / Agência Brasil

Reino da hipocrisia

Crônica de Stéfanny Manoelita e Gabrielly Ribeiro

Eram três horas da tarde quando duas senhoras chegaram ao bistrô em que eu trabalhava. Eu já as conhecia pois, toda quarta-feira, no mesmo horário, elas tomavam café da tarde lá. Apressei-me a ir atendê-las, visto que sabia como eram impacientes. Anotei seus pedidos, que sempre eram os mais caros, e fui à cozinha para entregar as anotações. Na volta, parei em meu local de sempre, próximo à mesa dela, e foi inevitável não ouvir a conversa.

 – Pois é, Marta, essas feministas querem que seja legalizado o aborto. Veja se tem condições uma coisa dessa?

 – Aaah Irene, o mundo está mesmo perdido! O pastor até falou disso domingo passado, lembra? Isso é um pecado dos grandes, se é! 

Fui buscar os pedidos enquanto as mulheres tagarelavam e comecei a pensar em como havia pessoas que ainda se preocupavam com coisas que não as afetam em nada. Voltei com os pedidos, coloquei-os na mesa e continuei ali por perto. Nesse tempo, elas ainda conversavam sobre o assunto. 

– Então Marta, como eu estava te falando, isso é um disparate! Essas mulheres estão precisando de Deus, isso sim.

 – Concordo totalmente, Irene, essa semana mesmo houve uma manifestação dessas baderneiras lá no centro da cidade! 

Escutei mais um pouco a conversa, enquanto reclamavam e condenavam as feministas. Se soubessem que eu era uma delas, acho que não me deixariam atendê-las sem me dar um sermão totalmente retrógrado e religioso.

 Pensei também em como esse tipo de gente é desinformada, pois a legalização do aborto é um tema de saúde pública, já que muitas mulheres sofrem fazendo abortos clandestinos. Inclusive, muitas mulheres que são violadas e não denunciam por medo, recorrem a esse método. A legalização do aborto reforçaria a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos. Mas, enfiar isso na cabeça daquelas senhoras não seria possível. Continuei então, escutando o diálogo das duas. 

– Pobres bebês, Irene, que não têm a chance de escolher por suas vidas! Essas moças se deitam com qualquer um e depois se acham no direito de se livrarem dos filhos, sem mais, nem menos.

– Pois então, Marta, ainda falam de abuso! Ficam se insinuando com essas roupas justas e decotadas, aí nenhum homem respeita mesmo.

Sem acreditar no que estava ouvindo, fiquei ali, petrificada pelas palavras daquelas senhoras. No mesmo instante, apareceu um garotinho maltrapilho, pedindo algo para comer. Rapidamente, uma delas pegou na mesa algumas torradas, talvez duas já mordidas, e entregou ao menino. Assim que o menino partiu, elas voltaram ao falatório de antes.

– Como é difícil, né? Esses meninos na rua pedindo comida, isso é culpa das mães que não cuidam. Nem sei por que enchem o mundo de filho, já que não têm como criar! Igual àquela sua empregada, né, Marta?

– Nem me lembre, Irene. Aquela ingrata engravidou, já é o terceiro filho. Vou ter que liberar ela para fazer exames e aí tenho que comprar comida pronta.

Finalmente, depois de passar a tarde inteira ouvindo aquela conversa mesquinha e ignorante, meu turno acabou e fui embora para casa. Enquanto o ônibus sacolejava no caminho, refleti sobre aquele dia, sobre como há pessoas que não se atentam aos problemas reais da nossa sociedade e se metem em assuntos que não lhes dizem respeito.

Assim que cheguei em casa, me lembrei da minha melhor amiga da adolescência. Seu nome é Bianca. Foi violentada pelo ex-namorado quando tinha 19 anos. Me lembro de como sofreu com a gravidez indesejada, a vergonha e o julgamento das pessoas, já que não teve coragem de denunciar o crime.

 Por fim, o sofrimento com as complicações da gestação, que terminou em um aborto clandestino que quase custou sua vida. Até hoje não entendo como, ao invés de apoio, ela recebeu olhares de reprovação e sermões sobre como tinha que aceitar o que aconteceu e seguir em frente.

 Não perdi mais nenhum minuto, entrei em meu quarto e terminei meus cartazes em apoio à legalização do aborto, afinal, havia mais “badernas” a serem feitas.

Crônica de Stéfanny Manoelita e Gabrielly Ribeiro. Stéfanny, ou apenas Manu para algumas pessoas, tem 21 anos, é graduanda em Jornalismo pela PUC Minas - Unidade São Gabriel e está no 5° período. Gosta de ler e escrever sobre diversos temas, mas gosta especialmente de crônicas, poesia, literatura clássica brasileira, e assuntos ligados à cultura. Amo a fotografia e a forma como ela pode contar histórias e registrar memórias. Gabrielly, ou Gabi, tem 20 anos e é estudante de jornalismo na PUC Minas. Está no quinto período e ama o curso, assim como ama ler e escrever. Histórias, de todas as formas, a cativam por inteira.

Colab PUC Minas

Colab é o Laboratório de Comunicação Digital da FCA / PUC Minas. Os textos publicados neste perfil são de autoria coletiva ou de convidados externos.

Adicionar comentário