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Racismo, sociabilidade e saúde mental

Precisamos falar sobre racismo e saúde mental

Operando como ideologia de dominação, a exclusão perversa do racismo afeta a socialização e a saúde mental de pessoas negras.

Novembro é mês em que as pessoas se mobilizam para dar visibilidade às causas do movimento negro e à luta contra o racismo, um tipo de exclusão perversa que opera como ideologia de dominação e pressupõe que um grupo racial é superior a outro, excluindo pessoas e privando-as de oportunidades. Mas qual a relação entre racismo e saúde mental?

Eu cresci uma garota tímida e me tornei uma mulher insegura. A escola é um ambiente que nos faz crescer e nos ensina sobre socialização, mas me tornei uma adolescente que achava que guardar seus sonhos, demônios e incertezas era a melhor coisa a se fazer. Eu aprendi que eu era irrelevante porque as pessoas me interpretavam desse jeito. Naquela época, nunca me senti segura para usar minha voz, me perdi em mim mesma e me esqueci da minha personalidade.

Enxergar episódios passados como enturmar no primeiro dia de aula, apresentar um trabalho e outros momentos onde o medo e a introversão tomavam conta de mim me faz perceber que minhas inseguranças sobre sociabilidade vêm do racismo. E eu só enxerguei dessa forma quando me tornei uma mulher insegura. 

Na luta antirracista, saúde emocional é um tema delicado. Para negros e negras, não é fácil ser e viver vulnerável ao racismo. Psicóloga com experiência em educação social, palestrante e ativista da saúde mental, Mariana Luz  conta que, com frequência, não é fácil nem mesmo reconhecer o impacto do racismo na saúde emocional porque “vivemos em um mundo onde as pessoas não podem ser vulneráveis, a vulnerabilidade é vista como algo ruim”. 

Mariana Luz também atua como consultora em diversidade com foco em gênero.
Créditos da foto: Arquivo pessoal.

Racismo e saúde mental: riscos à autoimagem e identidade

Mariana Luz diz que o racismo impacta na autoimagem, ou seja, na forma como a pessoa negra se enxerga, e  também na identidade, a forma como a pessoa negra se enxerga no mundo. Além disso, o racismo provoca problemas no desenvolvimento e nas habilidades de socialização, podendo desencadear dificuldade de aprendizagem.

Luz atua também como consultora em diversidade com foco em questões raciais, promovendo formações de letramento racial, com base em materiais de sua autoria, dentre eles, as obras “Era Uma Vez Negritude” e “Era uma Vez Branquitude”.

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Autoimagem e autoestima da população negra

Do ponto de vista do gênero, mulheres negras comumente não são vistas como ideal de beleza, que se concentra em mulheres com estereótipos europeus. Para a psicóloga Mariana Luz, mulheres negras têm dificuldade de encontrar parceiros porque não são vistas como bonitas, além de terem que lidar com os próprios questionamentos de identidade a autoimagem.

Reysla Gabrielle é auxiliar de agendamento em uma concessionária em Belo Horizonte (MG), e compartilha da mesma percepção: “Eu tenho certeza que já fui rejeitada em relacionamentos por causa da cor. Infelizmente, a sociedade impõe o padrão de mulher bonita que tem que ser ‘loira, olhos claros, cabelo liso, corpão…’. Ainda observo o preconceito por causa da cor.”

Helbert Rangel, estudante de direito na PUC Minas, relata os impactos do racismo na sua identidade e autoimagem. Desde muito pequeno, ele sofre com piadas racistas: “Esse tipo de fala vinha de parentes muito próximos. Meu sonho era ter os olhos azuis e a pele branca”.

Ele também conta que o fato de ser negro traz ansiedades socias relacionadas ao desejo de ascender socialmente e realizar grandes projetos: “O fato de ser negro me faz ter medo de ir à rua e não mais voltar… A construção do racismo faz com que pessoas da minha cor morram todos os dias, faz com que oportunidades não sejam dadas ou ofertadas a nós por puro preconceito.”

Quais são nossas oportunidades no mercado de trabalho?

Já fiquei com medo de não ser contratada por causa da minha cor.

Reysla Gabrielle acredita que a ansiedade social é intensificada nas relações profissionais e no mercado de trabalho.

Conforme informativo sobre Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil desenvolvido pelo IBGE, a população de cor ou raça preta ou parda possui severas desvantagens em relação à branca, no que tange às dimensões contempladas pelos indicadores apresentados – mercado de trabalho, distribuição de rendimento e condições de moradia, educação, violência e representação política.

A psicóloga Mariana Luz explica que o racismo, além de excluir, gera também na população negra uma série de consequências práticas na vida profissional, como questionamentos a respeito de sua capacidade: “o questionamento de que se deve ou não entrar para a política, para o direito, ser engenheiro, ser médico”. 

“Sou a única mulher negra na minha turma”

Ser jornalista sempre esteve dentre meus objetivos profissionais. Escrever sempre foi uma maneira de me expressar, mesmo que para mim mesma. Eu sonhava em trabalhar em redação e achava que não iria me preocupar em me envolver diariamente com muitas pessoas, na rotina de trabalho, até que entrei no curso de Jornalismo.

Eu me sinto atravessada por sentimentos entre amar comunicação e temê-la. Aprendo todos os dias que a experiência de ser subestimada impacta na minha vida acadêmica, além de ser a única mulher negra da minha turma. 

Na vivência de Luísa Paula, estudante de Gestão de Recursos Humanos pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), o racismo reflete na sua sua insegurança de se comunicar publicamente: “Eu não consigo falar em público, já me senti intelectualmente inferior. Eu acho que é um medo de chamar atenção, não sei explicar. Já perdi oportunidades por isso”.

Na turma de Helbert Rangel há, mais ou menos, cinquenta alunos regulares. São três negros, contando com ele. O restante, em sua grande maioria, são brancos. Em dias de prova, em que a turma fica em sua capacidade máxima, esse número passa a ser cinco.

Na sala de aula que Luísa Paula frequenta, os números são parecidos: “Em uma sala com quase 30 alunos, apenas cinco são negros.” Ela é a segunda mulher negra de sua família a ocupar espaço em uma universidade.

O racismo e a saúde mental no círculo de amigos

O colorismo é uma ferramenta discriminatória que analisa a tonalidade da cor de pele de uma pessoa negra, determinando o tratamento dela dentro da sociedade.

Luísa Paula relata que já aconteceu de estar em uma roda de amigos e contar sobre o que  passou e ser desacreditada: “Escutei ‘você não pode falar sofre racismo, você nem é tão negra assim’.” Ela compartilha uma frase de um vídeo que assistiu onde dizia “eu não era negro o suficiente para apontar racismo, mas eu era para sofrer”.

“Posso ter passabilidade e ser mais tolerada, mas não totalmente aceita. Acontece que, depois de ouvir isso de diversas pessoas, acabei me silenciando e me senti sem lugar. Lembrando que eu tenho consciência de que por ser preta de pele mais clara, tenho meu espaço dentro da comunidade, mas não esqueço até onde posso ir para não tomar o lugar de fala dos negros retintos que, infelizmente, são os que mais sofrem”. 

Luísa Paula

Para Helbert Rangel, a discriminação entre amigos geralmente acontece quando ele está em círculos compostos pelos amigos brancos: “Quando isso acontece, eu faço o possível para pontuar que aquilo ali é errado, é preconceituoso e racista, abrindo o espaço para o diálogo.”

A abordagem no Brasil sobre racismo e saúde mental

O Brasil possui pouco preparo para lidar com a saúde mental da população negra. Mariana Luz afirma que existe um aumento crescente de adolescentes entre 15 e 29 anos com tentativa de suicídio – na mesma idade, o índice é menor  para homens brancos.

Uma pesquisa do Ministério da Saúde, publicada em 2018, revelou que jovens negros do sexo masculino e com idades entre 10 e 29 anos são os que encaram o maior risco de morrer por suicídio. 

O racismo entrelaçado à dificuldade de socialização e à saúde mental é tema silenciado, o que implica em um não reconhecimento das pessoas negras sobre suas inseguranças e problemas causados pela discriminação de sua cor.

Para Mariana Luz, é como se o problema do racismo tivesse que ser resolvido pela própria pessoa, como se fosse um problema dela, e que precisa ser trabalhado na terapia quando, na verdade, trata-se de um problema estrutural.

“Muitas vezes não somos ensinados de que existe um processo coletivo quando se fala de desconstrução. Isso é cruel e segue a lógica de que a pessoa negra que faz tudo, ultrapassa todas as barreiras sozinha, que sofre, luta e sobrevive sozinha”.

Luz ainda destaca que é importante e libertador se informar, produzir mais conhecimento, crescer o número de pesquisas sobre o tema e, sobretudo, ouvir pessoas negras que têm pautado o debate da sociedade sobre saúde mental e racismo.

“O preparo para cuidar desse assunto é pouco, mas estamos construindo uma trajetória e esperamos ultrapassar essa bolha que, com frequência, só fala para as mesmas pessoas”, conclui. 

Júlia Dara

Terceiro período de jornalismo, apaixonada por cultura e produção de conteúdo digital.

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