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Imagem de desfile do exército brasileiro. Soldados vestem azul e branco e tocam instrumentos.

“Qual independência estamos comemorando?”

A professora Vânia Cristina Da Silva analisa os significados e a historiografia por trás dos símbolos nacionais.

Atuante na linha de pesquisa “Fronteiras, Interculturalidades e Ensino de História” e autora do artigo “Meninas Patriotas: os desfiles cívicos na cidade de João Pessoa (1937-1945)”, a professora de Ensino Básico e da Universidade do Mato Grosso do Sul, Vânia Cristina Da Silva fala sobre a formação do imaginário brasileiro sobre os símbolos cívicos. Sobre a ascensão e a intenção por trás dos desfiles de 7 de setembro ao longo da história e a participação feminina na Independência do Brasil. 

Confira a seguir a entrevista ao Colab, que foi editada para fins de clareza e concisão:

No seu artigo “Meninas Patriotas: os desfiles cívicos na cidade de João Pessoa (1937-1945)” você fala sobre o papel que os desfiles de 7 de setembro tinham de “mostrar” à sociedade paraibana as estudantes que desfilavam. O que significa esse papel? Como ele se relaciona com os outros papéis desenvolvidos pelas mulheres em relação ao processo e à história da Independência do Brasil?

Bom, vou responder essa questão em dois momentos. No primeiro deles, devo dizer que os desfiles de 7 de setembro empreendidos nos governos de Getúlio Vargas, principalmente durante o Estado Novo, eram marcados por grandiosas festividades e por ambientes carregados de simbolismos, que visavam difundir valores e condutas que tencionavam reforçar ideários nacionalistas compreendidos como essenciais naquele momento. Isso porque a identidade brasileira foi decorrente de um processo de construção histórica que, apesar de ter se iniciado após a independência do Brasil, em 1822, ganhou muito impulso na década de 1930, com Vargas.

“A força da nossa força”. Autoria: Exército Brasileiro

No entendimento desse governo, a pátria precisava ser amada, era importante que o povo brasileiro despertasse do “berço esplêndido” no qual dormia e manifestasse sua alegria e entusiasmo pelo fato de pertencerem à nação brasileira. E um dos mecanismos adotados pelo poder instituído foi a adoção de grandes comemorações que elevavam a imagem dos heróis e dos seus grandes feitos.

Aqui, entramos no segundo momento da questão, que se trata da participação feminina nessas comemorações. Naquelas ocasiões, tanto as meninas quanto os meninos tinham suas participações condicionadas a uma mesma função: uma tarefa escolar cívica. Tratava-se de atividades regulares no decorrer do ano letivo, vinculadas às matérias escolares. As meninas eram instruídas desde cedo sobre suas funções como futuras mulheres da sociedade, aprendiam na escola o que deveriam ser, como e com quais finalidades deveriam educar seus filhos. Então, naqueles grandiosos desfiles, lá estavam elas, alinhadas a desfilarem seus corpos disciplinados e patrióticos para a sociedade e, claro, sendo educadas a exaltarem os heróis nacionais, dentre os quais não havia espaço para os feitos femininos, pois, não diferente de outros contextos, as mulheres repetidamente são apagadas da História.

No mesmo artigo, você escreve: “A criação e invenção de cerimônias, novos feriados e a divulgação de heróis e símbolos do poder público, retratam e configuram-se em tradições inventadas pelo Estado, no intuito de tornarem-se, junto a tantas outras, fontes fundadoras da identidade nacional.” Ao reforçar e repercutir essas tradições ainda hoje, no bicentenário da independência, que ideia de identidade nacional o governo pretende ressaltar?

Pensando na atualidade, fica evidente o desejo do governo em se apropriar dos símbolos nacionais como representações próprias da sua gestão. Quem, hoje em dia, que seja efetivamente contrário ao desgoverno atual é capaz de usar uma bandeira do Brasil no carro sem o medo de ser confundido com um eleitor do Bolsonaro? Quem veste uma camisa do Brasil sem receio? Houve um movimento absurdo de apropriação dos símbolos nacionais como reforçadores de uma identidade que está intimamente ligada a esse governo, desde os materiais de campanha, frases de efeito, bem como, as cores verde e amarelo.

Se o processo de independência, amplamente divulgado e fixado como verdade única ao longo de anos de História, foi marcado por ser conservador, promovido por uma elite branca e agrária, com a exclusão das populações negras, indígenas e das mulheres, atualmente, o ritmo segue o mesmo, as cores verde e amarelo são quase que uma exclusividade dos conservadores brasileiros e entre eles não há espaço para as minorias.

No artigo você também fala sobre as tradições nacionais oficiais e não oficiais. Quais símbolos, representações e heróis nacionais você acha que poderiam ser evocados pelos Brasileiros durante este bicentenário e que ainda permanecem silenciados ou ocultos?

A emancipação política brasileira derivou de um extenso processo que em nada foi pacífico, do contrário, foi marcado por diversos conflitos que se sucederam em diferentes regiões do país e que envolveram diferentes grupos. Esses episódios foram escamoteados e prevaleceu uma história oficial branca, colonial e unificadora.

O 7 de setembro, nesse caso, ganhou destaque como mito fundador desse projeto, como bem coloca a historiadora e antropóloga brasileira, Lilia  Schwarcz. No processo histórico que resultou na independência do Brasil, havia uma diversidade social imensa, mas negros, indígenas, mestiços e, também, as mulheres não eram considerados como seres pensantes desse projeto, do contrário, as decisões eram tomadas à revelia desses grupos. Mas eles, apesar de não serem considerados interlocutores, lutaram, reclamavam e tomavam espaços nesse contexto. Por isso, precisamos contestar e recontar de maneira mais plural essa história que é muito colonial, muito branca e muito masculina.

Como o texto referência para essa entrevista aborda a participação feminina nos desfiles de 7 de setembro, indagamos: Onde estão as mulheres desse processo? Podemos começar por Maria Quitéria de Jesus, combatente baiana que lutou bravamente pela independência; Maria Felipa, escravizada liberta que combateu marinheiros portugueses; Joana Angélica de Jesus, superiora do Convento da Lapa, em Salvador, assassinada por soldados portugueses que pelejaram uma invasão do local; a indígena, Catarina Paraguassu; a escritora maranhense, abolicionista, Maria Firmina dos Reis. Essas são algumas dentre as muitas mulheres protagonistas da nossa história e ainda hoje silenciadas/ocultas das lutas das quais participaram. Precisamos ressaltar esses protagonismos!

Imagem da Cadete Maria Quitéria de Jesus via Exército Brasileiro.

Também nesse artigo, você afirma: “Ao mesmo tempo em que as festas fizeram parte de uma cultura própria da escola, elas também contribuíram para a consolidação do sistema político republicano, engendrando um modelo de cidadão a ser formado nas instituições de ensino”. O que há de semelhante e de diferente entre o cidadão que se objetivava formar naquela época e hoje com exaltações típicas do 7 de setembro?

Vou responder, agora, como professora da Educação Básica que sou. Se na Era Vargas, como apresento em meu artigo, o propósito principal era formar um cidadão que fosse capaz de exaltar a nação e seus heróis, hoje, a proposta é debater com os jovens a ideia de uma história crítica.

Em minha experiência profissional com meus alunos, por exemplo, não me interessa que eles apenas decorem hinos, datas e heróis consagrados pela história tradicional, mas que despertem o seu senso crítico e compreendam os meandros que fazem parte da construção histórica do nosso país e os silenciamentos existentes. É perceberem que a independência do Brasil, por exemplo, não foi nem de longe um processo passivo e protagonizado apenas por D. Pedro I no reduto São Paulo e Rio de Janeiro, mas que envolveu diversos protagonistas, que foi resultado de intensas lutas, em diferentes províncias e com a participação de múltiplos grupos sociais, inclusive, aqueles silenciados por séculos pela historiografia.

 Muito além de cultuar o coração do imperador, emprestado de Portugal para o Brasil neste mês do bicentenário, espero que os meus alunos reflitam sobre as independências que ainda precisamos conquistar nesse país marcado pelo racismo, pela desigualdade social e por tantas outras questões que merecem nossa atenção.

Tem mais alguma coisa (sobre o bicentenário da Independência, sobre o artigo “Meninas Patriotas: os desfiles cívicos na cidade de João Pessoa (1937-1945)” ou sobre a sua pesquisa) que você gostaria que soubéssemos?

Na verdade, gostaria de fechar nossa conversa convidando os leitores e leitoras a uma reflexão importante para o momento: qual independência estamos comemorando? Será que devemos nos contentar com a realidade atual: fome, desemprego, crise na saúde, preconceito, violência, desigualdade? Ou será que devemos questionar o que está posto e, a exemplo dos heróis populares que lutaram pelo processo de independência no passado, precisamos buscar um Brasil mais justo, mais igualitário, que respeite as minorias, as comunidades tradicionais e as diferenças?

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Helena Fernandes Tomaz

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