Local foi sede do DOPS e do DOI-CODI, órgãos de repressão aos opositores do regime
Avenida Afonso Pena, 2351. Em uma das principais vias de Belo Horizonte, um prédio de traços arquitetônicos modernistas se destaca na paisagem urbana. Sua história, porém, vai na contramão de qualquer espírito de vanguarda. Durante a Ditadura Militar, esse era o endereço do DOPS, Departamento de Ordem Política e Social, cenário de tortura, prisões arbitrárias e violações dos direitos humanos.
A criação dos DOPS no Brasil é anterior ao golpe de 1964. O órgão existia desde a década de 1920 e era uma espécie de polícia política, um braço forte do Estado para reprimir cidadãos considerados “subversores da ordem”:
Estava fundamentalmente à disposição dos governos quando estes decidissem vigiar e/ou aprisionar certos indivíduos, combater determinados comportamentos e estigmatizar grupos inteiros, tidos sempre como “nocivos” e perigosos para a ordem pública e a segurança nacional”
Dossiê de tombamento do edifício, 2013
Em Minas Gerais, a sede do departamento foi inaugurada em 1958, com projeto do arquiteto Hélio Ferreira Pinto. A construção em um ponto estratégico, na região central da capital mineira, fazia parte de um projeto político do governo estadual, que via a necessidade de equipar a Polícia Civil para combater o que se entendia por “ameaça comunista”. No regulamento do DOPS, destaca-se entre suas competências a “direção dos serviços de prevenção e repressão dos delitos de natureza político-social” (Art. 2, 1956)
Quando os militares tomaram o poder, a atuação se intensificou.
Durante a Ditadura Militar esse prédio funcionou como uma espécie de quartel-general. Não era somente um local onde os presos políticos eram levados, mas também um centro de informação, operacional. É claro que você tinha em Belo Horizonte outros prédios, por exemplo, ligados ao Exército Brasileiro, mas o DOPS era que fazia investigações, perseguia, fichava, prendia, torturava. Tudo isso, e na maioria das vezes, na surdina, sem nenhuma ordem judicial. Sem que, inclusive, as pessoas soubessem por que elas estavam sendo perseguidas”
Robson Sávio, coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais
Tortura e vigilância
Em 1970, no governo do general Emílio Médici, foi criado um novo órgão: o DOI-CODI, composto por representantes das três Forças Armadas e das polícias Civil e Militar. Seu objetivo era centralizar e organizar a repressão aos adversários do regime, devido ao aumento da resistência popular. O Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) era responsável por coordenar e planejar as medidas repressivas. Já o Destacamento de Operações de Informações (DOI) era o braço operacional, ou seja, encarregado de colocar as ações em prática.
Em Belo Horizonte, o DOI-CODI começou a atuar em 1971, no 3° andar do prédio do DOPS, na Afonso Pena. Este, por sua vez, continuou atuando de forma independente na investigação, prisão e interrogatório, muitas vezes por meio de sessões de tortura. Ambos organismos faziam parte do Sistema Nacional de Segurança Interna. Em depoimento ao Colab, três presos políticos relembraram os horrores que viveram no local.
Sálvio e Ana Lúcia Penna
Eu era um jovem cheio de esperança na transformação. Com muitas certezas, que depois descobri que eram mais esperanças do que certezas. Recém casado, com um filho de cinco dias de nascido”
É assim que Sálvio Penna (80) descreve quem ele era aos 28 anos, quando foi preso pela Ditadura Militar. No dia 7 de dezembro de 1971, Sálvio saiu para trabalhar na companhia siderúrgica Belgo-Mineira, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Ao chegar na portaria, percebeu uma movimentação diferente. Agentes do DOPS, órgão de repressão do governo, o aguardavam. Aproveitando a distração dos policiais, que interrogavam o porteiro, resolveu voltar para casa.
Sálvio e sua esposa, Ana Lúcia, eram militantes de um partido clandestino, a Ação Popular (AP). Ele, trabalhador siderúrgico, era ligado ao movimento operário. Ana, estudante de História, atuava na organização com as mulheres do bairro. Era o governo do general Médici, período conhecido como os “anos de chumbo” da Ditadura (1968-74). “A Ação Popular tinha passado por uma perseguição implacável em 1968, com muitas prisões em Belo Horizonte e Contagem, e, dois anos depois, estava totalmente reestruturada. Até que a repressão prendeu cerca de 250 pessoas, entre movimento operário, movimento estudantil e os que eles chamavam de “classe média”, conta.
O casal já sabia que estava sendo vigiado, pois um companheiro de partido foi preso e acabou citando seus nomes. A orientação de segurança da AP era para que eles fugissem. Porém, o primeiro filho dos dois, Rodrigo, havia nascido há apenas cinco dias, em um parto a fórceps. “A Ana estava com 33 pontos na vagina, internos e externos. Eu é quem estava cuidando dela, a médica passou as recomendações, ela estava na cama, não podia levantar. Eu jamais fugiria com ela nessa situação”.
No dia de sua prisão, porém, Sálvio não teve outra escolha e decidiu sair da fábrica para fugir imediatamente com a mulher e o filho. Ao chegar, percebeu que era tarde demais: viaturas na rua anunciavam que a residência já estava ocupada. Às 7h ele foi preso. Já Ana Lúcia foi levada no fim da tarde. “No local não tinha telefone e as viaturas não tinham rádio, então os policiais ficaram sem saber o que fazer com um recém-nascido e uma mãe naquele estado. De início, ela negociou e eles deixariam o bebê ficar com os vizinhos. Mas depois chegaram ordens para levá-lo também, pois perceberam que poderiam usá-lo para chantageá-la. Então os dois foram levados para o Hospital Militar”, relembra Sálvio.
Sálvio foi diretamente para a sede do DOPS, na Avenida Afonso Pena, onde passaria os próximos quatro meses, até ser transferido para a Penitenciária de Linhares (Juiz de Fora), em março de 1972. As sessões de tortura começaram desde o primeiro dia e, segundo ele, aconteciam de domingo a domingo. Entre as práticas usadas, as principais eram o pau de arara e os choques elétricos. “É um cavalete onde você fica pendurado, pelos joelhos, de cabeça para baixo. Ali te batiam, te davam choques, jogavam água e refrigerante no seu nariz, queimavam seu corpo com cigarro”.
O aposentado conta que a repressão também usava rapazes do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) para fazer esse trabalho. “Eram novos, quase meninos, tomando água com açúcar de tão nervosos, para conseguir fazer aquilo”. Segundo ele, o major Pedro Ivo, um dos torturadores mais citados em depoimentos, andava sempre com livros de romances clássicos brasileiros. “Na hora da tortura ele colocava na sua frente obras de Jorge Amado, Machado de Assis”.
Os métodos também eram psicológicos. “Usaram meu filho e a minha mulher para me torturar psicologicamente. No terceiro dia de prisão, me mostraram o atestado de óbito da Ana. O torturador me mostrou e falou: ‘Sua mulher tá morta, ela morreu de flebite’. Olha, eu tava em um centro de tortura, ela tinha sido presa com 33 pontos. Eu tive certeza que ela morreu. Só fui descobrir que ela não tinha morrido depois uns 20 ou 30 dias, quando um carcereiro um pouco mais humano cochichou: ‘Sua mulher não morreu, não. Outro dia, inclusive, eu vi ela aqui, ela veio para ser torturada”, conta.
Para Sálvio, as violações que aconteciam ali eram omitidas da sociedade civil. “Eu posso quase afirmar que era uma coisa velada. A repressão que o país sofria era muito intensa na ditadura Médici. Foi uma ditadura sangrenta, muita gente foi torturada, desapareceu ou foi assassinada. Não era fácil”. Ele explica que por mais que a imprensa soubesse da existência do DOI-CODI, o que acontecia dentro do prédio era secreto. Além disso, existiam dificuldades para denunciar as violações na época: “Nós não conseguíamos fazer denúncia de tortura dentro do Brasil. Algumas pessoas faziam denúncias no exterior. Às vezes mandávamos cartas através de pessoas como o Dom Paulo Evaristo, que levavam para países da Europa”, conta.
É uma ilusão e uma ingenuidade achar que a tortura foi só uma consequência de um grupo de homens e mulheres maus que passaram a torturar os presos. Tortura era uma coisa pensada, dirigida. Pensada para nos atingir na política e na ideologia. E principalmente para nos destruir. Foi pensada nessa linha: destruir as pessoas para que elas passassem a achar que nem eram mais gente. Não é só uma questão de não acreditar mais naquelas coisas que eles acreditavam, mas passar a acreditar que não eram mais pessoas, gente. E, paralelamente a isso, levantar informações: endereços, nomes, locais de arquivos, documentos. Também tentavam falas de arrependimento. Alguns companheiros – poucos, ainda bem – foram para a imprensa dizer que não existia tortura, que aquilo tudo era mentira, que estavam arrependidos”.
Ana Lúcia Penna passou cerca de dois meses em um quarto-cela no Hospital Militar antes de ser transferida para a prisão, no 12° Batalhão de Infantaria. Durante esse período, foi levada diversas vezes ao DOI-CODI. Sua situação delicada de saúde não impediu que ela fosse torturada no mesmo prédio em que o marido estava, sem que ele soubesse.
“Ela era submetida a pancadarias, desfilava nua, colocavam vários agentes no corredor e tiravam a roupa dela. Eles ficavam rindo do sexo dela raspado, dos pontos. E era torturada no hospital, também. Porque o seio dela, nessa situação, secou, ela não teve leite. Então todo dia de manhã uma enfermeira deixava uma garrafa de leite, que a gente não sabia se era fervido ou não, e era aquilo que ela tinha para alimentar o nosso filho o dia inteiro. 40 dias depois o bebê foi entregue para os avós maternos, muito doente, claro”, conta Sálvio.
De acordo com ele, Ana era examinada por um médico, o Dr. Jean Paul Seeburger , citado por outros presos políticos na Comissão da Verdade. “O médico, Jean Paul, também trabalhava na Belgo-Mineira, ou seja, era meu companheiro de trabalho. Virou agente da Polícia Militar e serviu no DOPS e DOI-CODI. Era ele que avaliava se ela aguentaria mais tortura”.
Sálvio destaca a importância dos jovens conhecerem a história do Brasil:
A democracia é um bem muito caro, que a gente tem que preservar e não pode abrir mão. Eu continuo acreditando que a democracia é possível. Temos que ser radicalmente contra a Ditadura e o autoritarismo. Meu conselho para os jovens é não desacreditar, aproveitar a juventude, mas também estudar. Saber como foi o nosso passado porque a democracia é uma consequência. É uma luta dessas pessoas que morreram, que foram presas, torturadas
Maria Dalce Ricas
Eu não matei, não roubei, não danifiquei patrimônio público ou privado. Eu apenas me julgava no direito de me manifestar contra o que acontecia no país. E isso me custou quatorze meses de prisão”.
Em 1971, Maria Dalce Ricas (75) era estudante de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Vinda do interior para a capital para estudar, Dalce conta que sempre teve ideais de justiça e igualdade social. Suas aspirações fizeram com que ela logo se inserisse no movimento estudantil, atuando no cargo de vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Apesar de não ter envolvimento com nenhuma organização ou partido, Dalce foi presa no dia 1° de maio daquele ano. Era o feriado do dia do trabalho e ela estava na Avenida Paraná, no centro da cidade. A ideia era espalhar panfletos contra o regime, usando um artefato caseiro que se assemelha a um lança confetes. “Era um canudo de papelão. Nós colocávamos os panfletos enrolados dentro e na base uma rodela de papel. Aí tinha um pó que reagia, gerando uma corrente de ar. Tinha um efeito lento, demorava um pouco para explodir. Era uma coisa pequena, é claro. Com aquilo os panfletos voavam. E, teoricamente, as pessoas iriam pegar”, explica.
O plano, porém, deu errado. “Entrei em uma farmácia e fui fazer o negócio dentro do banheiro. Não deu outra, explodiu na minha mão”. Apesar de não ter se machucado ou quebrado nada, o barulho foi o suficiente para chamar a atenção dos policiais. O colega de faculdade que a acompanhava fugiu e nunca mais foi visto por ela. Dalce foi presa em flagrante acusada de terrorismo e filiação a partido político clandestino.
A estudante foi levada para o Serviço de Informação da Polícia Militar, na Praça da Liberdade e de lá, encaminhada para o DOPS, na Avenida Afonso Pena. “Hoje, olhando para trás, eu fico pensando que realmente era muita ingenuidade nossa acreditar que conseguiríamos enfrentar uma ditadura armada até os dentes”.
Nas escadas do prédio já começaram as agressões. O tenente Marcelo Paixão de Araújo, que, em 1998, deu uma entrevista para a revista VEJA assumindo ter sido torturador, foi um de seus algozes. “O Marcelo era um homem alto, enorme. Eu tenho 1,58. Logo que eu cheguei ele me deu um soco no estômago. Depois começou a me xingar, me chamar de drogada. Eu nunca usei drogas na minha vida”, conta.
Durante aquela noite, Dalce foi interrogada e torturada. Seminua em uma sala cheia de homens, levou choques elétricos nas mãos, nas pernas e na cabeça. Segundo ela, suas companheiras de cela foram submetidas a situações piores, com choques na vagina e nos seios. “Na madrugada eu já tinha tomado tanto choque na perna direita que não conseguia mais levantar. O Dr. Jean Paul veio me examinar e falou que não era para darem mais choques na perna.”
Quando a penduraram no pau de arara, enfaixaram suas mãos e pernas para não deixar marcas. Além das violações físicas, a tortura foi psicológica: “Pegaram um revólver, colocaram na minha cabeça e apertaram o gatilho. Foram apertando até girar o tambor todo. E rindo, claro. Não tinha bala. Racionalmente eu sabia mas, emocionalmente, não tem como controlar. Foi um terror”
A partir desse dia, ela não foi mais agredida fisicamente, apenas de forma verbal, fato que atribui à sua condição na época. “Eu era peixe pequeno. Era só estudante. As pessoas que eles sabiam que tinham mais envolvimento eles torturavam mais, pegavam pesado, queriam tirar informações”.
Dalce também se recorda dos horrores que viu. Em um dos dias que passou presa, foi levada para uma sala onde um homem estava sendo torturado. O colocaram na frente dela, ensanguentado, para ver se ela o reconhecia. Em outra ocasião, uma moça foi levada para a tortura e agente da repressão avisou: “Quem não quiser ouvir gritos que tampe os ouvidos”.
Tive uma colega de prisão chamada Jussara, não me lembro o sobrenome. Ela apanhou tanto e levou tanto “telefone” (dois tapas com força e simultâneos nos ouvidos, com as mãos em concha) que perdeu a audição. A sorte é que ela era de uma família rica do Espírito Santo. Eles conseguiram tirar ela de lá e mandar direto para o aeroporto, para se exilar na França”.
Além do que passou na cadeia, Dalce sofreu consequências em sua vida pessoal. Assim que foi presa, ela foi uma das estudantes expulsas da UFMG, por meio do Decreto-Lei Federal 477. Anos depois, recebeu a retratação e foi convidada de volta à universidade, onde se formou em Ciências Econômicas. No início, ela tinha vergonha da situação, por ter sido presa política. Mas depois percebeu que era admirada pelos colegas exatamente por isso. “Nos viam com respeito por termos enfrentado o regime. Tinha até um certo endeusamento”.
Em relação à instituição, também se recorda com carinho de um professor do curso de Direito: Ariosvaldo de Campos Pires. No auge da repressão, ele arriscava a própria pele, enfrentando os policiais que tentavam invadir o prédio da faculdade e levar os estudantes.
Sobre as consequências da tortura, a ambientalista conta que, após ser solta, passou um ano tendo pesadelos com a prisão todos os dias. Hoje, enxerga o período como uma fase dura que passou na vida. “Eu consegui superar, mas muitos, não. Muita gente enlouqueceu, não conseguiu se reintegrar no mercado de trabalho. Aquilo destruiu a vida de várias pessoas”.
As gerações que sucederam ao golpe militar no Brasil não têm ideia do que é viver em uma Ditadura. O que é ter medo de falar, medo do vizinho que pode te denunciar por qualquer motivo torpe, medo de ser presas. É uma absoluta falta de liberdade. Não havia limites para a repressão na Ditadura Militar. É importante não esquecer o que aconteceu, para que as pessoas possam pensar antes de acreditar em falsos discursos. Uma ditadura, seja de qualquer natureza, pressupõe autoritarismo, tortura, morte e violência.”
Emely Salazar
É o prédio da tortura. Minha lembrança é só de tortura”
Emely Salazar (85) tinha 31 anos quando foi presa, no dia 9 de maio de 1970. Cursando o último ano do curso de psicologia da Universidade Católica de Minas Gerais (hoje, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas), ela era vice-presidente do DCE e ligada ao movimento estudantil. Além disso, fazia parte da Ação Católica Brasileira, organização que ajudava perseguidos políticos. Recolhia doações em dinheiro e chegou a oferecer refúgio em sua casa, na casa de amigos e parentes.
“Eu fui presa porque denunciava tortura. Escrevia, fazia panfletos, distribuía, mandava para o Rio, para São Paulo. Era uma campanha que a gente fazia. Também escondi pessoas. Tudo que eu podia eu fazia”, conta. Em função dessas relações, durante os interrogatórios, seu nome foi citado por presos de várias organizações e partidos. Logo ela também entrou na mira da repressão.
Emely foi presa em casa, na rua da Bahia. “Eles chegaram lá (os agentes do DOPS) com um conhecido. Eu não percebi nada. Achei que tivesse acontecido alguma coisa, custei a perceber que eram eles. Até que falaram: a senhora vai nos acompanhar até a delegacia”. Como não era militante, em um primeiro momento ela imaginou que tudo não passava de um mal entendido. “Minha mãe começou a chorar e eu disse: ‘Calma! Eu vou lá, explico tudo e volto’. E fiquei dois anos explicando”.
Durante os dois meses que passou no prédio do DOPS, antes de ser transferida para a penitenciária, foi torturada várias vezes. “Eles não queriam que eu falasse nada. Vinham com uma história pronta, me batiam e queriam que eu confirmasse”. Ela afirma que passou por choques elétricos, foi pendurada no pau de arara e sofreu espancamentos. “Um dia eu levei tanta palmatória que não podia pegar nada com a mão, minhas mãos ficaram uma bola. Eu não consegui ficar em pé no chão. Tive de ser carregada no colo”, contou, em seu depoimento à Comissão da Verdade.
Quando viu o médico do departamento no prédio, o reconheceu e sentiu um alívio. Ele era professor da faculdade de Medicina da UFMG, local onde ela trabalhava como secretária de ensino. “Na hora que eu vi o doutor Jean Paul eu pensei: ‘Graças a Deus tem alguém da Medicina aqui’. E depois fui descobrir que o cara era auxiliar de tortura. Ele examinou só para falar: ela aguenta mais, pode bater”.
Para Emely, um dos momentos mais marcantes de sua prisão foi o dia em que foi escondida dentro do armário, embaixo da escada do DOPS. Na ocasião, uma equipe de advogados iria visitar o prédio para apurar denúncias de tortura. “Eu estava muito machucada de tortura, com o olho todo roxo. Então me amarraram e me colocaram no armário. Fiquei horas ali, sem ter ideia do que estava acontecendo. Se soubesse, teria gritado”, conta.
Anos mais tarde, ela encontrou um de seus torturadores em uma festa de casamento. O reconheceu imediatamente. “De início ele não estava me reconhecendo, mas quando eu falei meu nome ele lembrou na hora. E eu disse: ‘é, quem bate esquece, quem apanha, não”. Emely conta que os dois tiveram uma conversa amena por alguns instantes, até o militar perguntar como ela estava: “Falei para ele: ‘estou bem. Minha vida é um livro aberto, não tenho nada a esconder de ninguém’. Ele respondeu: ‘eu também não’. E eu falei: ‘ah é? Sua mulher e seus filhos sabem que você era um torturador?’ Ele deu as costas e saiu andando”.
Faz parte da minha história. Eu lido bem com essas coisas, não tenho problemas em falar sobre tortura, prisão. Tenho colegas que ficaram traumatizados, não querem nem tocar no assunto, o que eu compreendo. Mas eu falo. O povo precisa conhecer nossa história”
Situação atual
A criação de um Memorial dos Direitos Humanos no prédio do DOPS foi aprovada pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais por meio da LEI nº 13.448, de 10/01/2000: “Art. 6º – Fica declarado patrimônio histórico estadual o acervo do Memorial, que se instalará em Belo Horizonte, no prédio ocupado pelo extinto DOPS”
Porém, em função de disputas políticas em torno do prédio, em 2005 houve uma alteração na lei, suprimindo o decreto inicial de que o memorial deveria ser instalado especificamente nesse local:
Parágrafo único. O Memorial de Direitos Humanos tem sede em Belo Horizonte”
(Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Lei nº 15.458, de 12/1/2005.)
A Polícia Civil continuou ocupando o espaço até 2018, com a Delegacia do Narcotráfico (DENARC). Entre a saída da polícia e a entrega para a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDESE-MG), o prédio ficou vazio e sofreu depredações. Nos últimos três anos, todos recursos foram destinados a obras de salvaguarda, visto que o edifício estava muito deteriorado.
De acordo com a SEDESE, ocorreu uma parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, envolvendo uma equipe interdisciplinar de mais de trinta pesquisadores, especialistas em em Museologia, Arqueologia, História e Direito. Os estudos feitos por eles são para a criação do projeto museológico. A próxima etapa é o projeto executivo, que envolve trâmites burocráticos e legais. Quando esta for aprovada, será possível estipular orçamento e prazos para que o Memorial seja finalmente instalado.
Confira imagens atualizadas do prédio:
Qualquer intervenção na edificação deve ser precedida por estudos, pois ela é tombada nos âmbitos municipal e estadual pelo seu valor imaterial e histórico. A pesquisadora Debora Raiza, mestre em História pela UFMG, escreveu sua dissertação sobre o tema e explica a importância do tombamento. “Como o prédio é um patrimônio, não pode ser demolido e nem sofrer grandes mudanças. Uma das diretrizes, por exemplo, garante que as guaritas não sejam retiradas, porque elas demonstram que existia vigilância ali. Outro espaço, da piscina e a sauna, onde supostamente ocorreram torturas de “esquenta e esfria” e sessões de afogamento, também não pode ser alterado. Tudo isso é fundamental para a preservação do espaço”
A historiadora destaca que a Comissão da Verdade identificou 24 lugares de tortura em Minas Gerais, mas o prédio do DOPS é um dos mais referenciados. “Embora não fosse uma regra, a sede do Dops/MG costumava ser o primeiro lugar do sistema repressivo pelo qual os presos políticos eram encaminhados. Muitas pessoas passaram por ali, então aquele lugar se transformou, de fato, em um território de memória, do qual eles se apropriam com muita veemência. Tem um monumento na porta com os nomes dos 54 mortos e desaparecidos no estado. Os familiares costumam depositar velas e flores lá”, afirma.
Em relação à transformação em Memorial dos Direitos Humanos, Raiza aponta que a demora para a concretização do projeto se deu por razões simbólicas:
“É importante pensar que no Brasil existe o que o professor Rodrigo Patto chama de “cultura político-conciliatória”, ou seja, a gente não tem coragem de enfrentar alguns conflitos”. Ela explica que existe uma questão sensível para que o Memorial seja instalado, visto que a ideia é de um antigo prédio da polícia, no centro da cidade, evidenciando problemas sérios do passado. “Vai ser um lugar que vai escancarar a tortura aqui, no meio da Afonso Pena. O Memorial foi criado em 2000, por lei, e até hoje não foi instituído. Na minha dissertação, eu chamei isso de “lógica da protelação” que o Estado utiliza. Existe uma relação de difícil definição do que vai ser aquele espaço, com os familiares das pessoas desaparecidas, com os ex-presos políticos”.
Robson Sávio, doutor em Ciências Sociais e coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais, afirma que o prédio do Dops pode significar, no presente, um símbolo da resistência ao governo ditatorial. “É importante mostrar para as pessoas não só o que foi aquele local, mas também o que significa esse período tão nebuloso da nossa história. É um local estratégico em termos de memória do passado, para que esse passado não possa se repetir”.
Para Sálvio Penna, que foi preso e torturado no local entre 1971 e 72, a criação do museu é uma esperança.
O prédio do Dops representa a memória que a gente precisa guardar. Eu falo sempre que posso. Infelizmente, poucos sabem o que aconteceu, então eu conto essa história, esses momentos, porque as pessoas precisam saber. Eu acho que ainda existe pouca coisa escrita sobre o golpe e os tempos de Ditadura. Eu não perdi a esperança de que nós vamos lutar e transformar esse lugar em um museu. É importante demais, no centro da cidade, no coração de Belo Horizonte, termos um lugar restaurado, intacto, como ele recebeu as pessoas para serem torturadas. E é isso que eu vejo lá, não consigo passar por ali sem ter essa coisa mexendo no meu coração: nós ainda vamos ter nossa memória depositada aqui”
Essa reportagem é uma homenagem a Ana Lúcia Penna, falecida em 2016, e em memória de todos os brasileiros torturados, mortos e desaparecidos durante a Ditadura Militar. Nunca esqueceremos.
A rotina de trabalho sob o regime 6×1 — seis dias trabalhados para um de descanso — é uma realidade para milhões de trabalhadores brasileiros. Embora a escala tenha sido criada para atender às necessidades...
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