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Os segredos por trás da produção do pão de queijo

Tradição artesanal resiste a processos industriais de produção alimentar e divide a mesa com releituras modernas em Minas Gerais

Há quase 25 anos, Arlindo Divino Macedo, mais conhecido como “Ari”, mantém viva a tradição de produzir polvilho artesanal, ingrediente essencial para o preparo do pão de queijo, símbolo maior da identidade mineira. Em sua pequena fábrica na região de Pedras do Indaiá, ele transforma a mandioca brava em polvilho doce e azedo, um processo que exige técnica e paciência. “Isso aqui começou quando eu tinha uns parentes que faziam polvilho. Resolvi montar minha própria fábrica, e com o tempo fui aperfeiçoando o polvilho. Cada ano ficava melhor”, conta Ari. Mas, hoje, ele enfrenta desafios crescentes: falta de mão de obra, aumento dos custos e a concorrência com produtos industrializados.

A luta de Arlindo Macedo reflete mudanças profundas no campo e nas mesas mineiras. O pão de queijo, presente nos lares de Minas desde o século XVII, carrega mais do que sabor. Ele simboliza a transmissão de memórias e afetos através de gerações. Em muitas famílias, a receita é uma herança cultural, mantida como segredo entre mães e filhas, avós e netos. 

É o caso de Lúcia Policarpo, de 68 anos, que foi criada em  uma propriedade rural em Congonhas. Aposentada, ela afirma que o pão de queijo tradicional é um pedaço de sua história. “Minha família sempre fez o próprio queijo, mas, com o tempo, foi ficando mais difícil. As pessoas que sabiam fazer envelheceram, e faltava mão de obra para continuar o trabalho na roça”, relembra. 

Paulo Lassi, o “Paulinho”, dono da “A Pão de Queijaria”, reforça essa ligação entre o pão de queijo e a identidade mineira ao explicar sua inspiração para abrir o negócio: “A ideia veio da necessidade de resgatar a receita tradicional, que, acredito, ficou um pouco esquecida. Escolhemos pequenos produtores de queijo minas artesanal, parceiros desde 2014, para fazer parte dessa redescoberta. Isso nos permite preservar o sabor autêntico enquanto trazemos inovações, como o uso de recheios contemporâneos”.

No livro A comida como cultura, o historiador da alimentação italiano Massimo Montanari explica que o alimento carrega não apenas sabores, mas também narrativas que exprimem as transformações sociais e culturais de uma comunidade. Em Minas Gerais, o pão de queijo é hoje um símbolo da resistência de uma tradição diante de mudanças impostas pelo tempo e pela urbanização.

Eduardo Girão, jornalista e especialista em queijos, também analisa os impactos da industrialização: “Na minha visão, a tradição está de pé, pois o pão de queijo segue sendo amplamente produzido, consumido e discutido. No entanto, o que entra em pauta são questões de técnica e ingredientes que afetam a qualidade do produto final. Por exemplo, processos industrializados que pioram sua consistência e queijos sem procedência que tornam sua fórmula mais pobre. Esses são os verdadeiros desafios”, afirma.

O polvilho

O Brasil se destaca no cenário agrícola global como o quarto maior produtor de mandioca, um alimento essencial na mesa de milhões de brasileiros e matéria-prima para uma vasta gama de produtos. Apesar de seu importante papel nas culturas alimentares do Brasil, a produção de mandioca enfrenta desafios que podem comprometer sua sustentabilidade no futuro. Entre eles, está a escassez de mão de obra no agronegócio.

Ingrediente utilizado no preparo do pão de queijo, o polvilho possui uma história ligada à cultura e às cozinhas de Minas Gerais. Sua origem remonta ao período colonial, quando os escravizados utilizavam técnicas rudimentares para processar a mandioca, transformando-a em farinha e polvilho.

Arlindo Macedo, produtor artesanal de polvilho na região de Pedras do Indaiá, reflete os desafios enfrentados no setor. Sem produzir desde agosto do ano passado, ele explica que a melhor época para a produção é de maio a agosto, quando a mandioca mantém a qualidade necessária. 

O polvilheiro relata que, após o cunhado deixar o ofício, decidiu montar a própria fábrica: “Ele me ajudou bastante. Foi com ele que aprendi a fazer e a aperfeiçoar a produção. Trabalhamos juntos por cerca de dois anos, depois fiquei sozinho”. Com o tempo, ele foi aprimorando a fabricação e adaptando o processo. “No começo, eu fazia do jeito que meu cunhado me ensinou. Por exemplo, antigamente, não usávamos tanques para bater o polvilho. Depois que implementei isso, a qualidade melhorou bastante”, relata. Mas o início não foi fácil: “Perdi bastante, principalmente no começo. É um processo que exige muita prática e paciência.”

 Com o processo consolidado, Ari explica o passo a passo da produção de polvilho:

Produção artesanal de polvilho explicado por Arlindo Macedo / Produção e edição: Flávia Miranda

Os processos de produção variam entre o polvilho doce e o azedo: “O doce tem que ser seco em até 15 dias, enquanto o azedo precisa de 60 dias para fermentar antes de secar. É um trabalho que exige técnica e paciência”. Já a matéria-prima, a mandioca brava, passa por um demorado processo de colheita e processamento. Ela precisa ser plantada, arrancada, transportada e processada, o que exige muita mão de obra, que, segundo Ari, está cada vez mais difícil de encontrar: “A plantação e a colheita da mandioca são as partes mais difíceis. Para colher, usamos enxadão, porque é um trabalho pesado, e geralmente é feito manualmente”.

A dificuldade de encontrar trabalhadores para atividades agrícolas tradicionais não é recente, mas vem se agravando. Segundo dados da Embrapa, a escassez de mão de obra pode atingir níveis críticos em setores como a pecuária até 2040. No caso de Ari, a escassez de mão de obra e o aumento nos custos inviabilizaram a continuidade da produção. 

Ele relata que, durante a época da colheita, é preciso contar com o trabalho de seis a oito pessoas. Por isso, o custo para colher a mandioca é o maior na produção do polvilho. “Para produzir cinquenta quilos de polvilho, gasto cerca de trezentos e sessenta quilos de mandioca. Normalmente, produzo até oito toneladas por dia”. O quilo do polvilho é vendido a quinze reais, preço que, segundo Ari, não cobre o esforço e os desafios envolvidos no processo.

Essas dificuldades refletem mudanças sociais e econômicas mais amplas. No passado, a produção de polvilho era comum em pequenas propriedades rurais, onde o trabalho era realizado em comunidade, com cada família contribuindo em uma etapa. No entanto, a urbanização e a migração das novas gerações para as cidades fizeram com que muitos polvilheiros abandonassem o ofício. “Hoje é muito difícil conseguir mão de obra. Os mais velhos já pararam de trabalhar, e os mais novos não querem saber desse tipo de serviço”.

Contudo, uma nova tendência começa a despontar no agronegócio: ao mesmo tempo que os jovens rejeitam práticas agrícolas manuais, alguns expressam interesse em carreiras ligadas às inovações tecnológicas no setor.  Cursos técnicos e graduações com foco em agricultura de precisão, tecnologia de alimentos e gestão de recursos naturais têm atraído jovens interessados em fazer parte da transformação tecnológica do agronegócio. Paralelamente, iniciativas públicas e privadas vêm investindo em programas que conectam tecnologia e práticas agrícolas, incentivando os jovens a permanecerem nas áreas rurais.

Nesse contexto, a inteligência artificial (IA) surge como uma ferramenta estratégica para superar a falta de mão de obra e aumentar a eficiência nas propriedades rurais. Soluções de IA estão sendo aplicadas no monitoramento de plantações, no gerenciamento de colheitas e na otimização do uso de recursos, além de tornarem o ambiente agrícola mais atrativo para os jovens. Alexandre Benedetti, diretor geral da Talenses e cofundador do Talenses Grouplistas, destaca que a digitalização no agronegócio não apenas mitiga problemas de mão de obra, mas também eleva a competitividade brasileira no mercado global.

Diante das inovações e dos desafios, Ari relembra com orgulho o auge de sua atividade, quando produzia até oitocentos sacos de cinquenta quilos por mês. “Era só produzir que vendia tudo; ainda tem gente que procura, porque é um produto natural e muito puro”, afirma. Mesmo diante das adversidades que enfrentou ao longo dos anos, Ari valoriza o legado que construiu e mantém a esperança de voltar à ativa: “Se voltar a ter mão de obra, eu volto a produzir. Ainda tem clientela”.

O queijo

Assim como o polvilho, o queijo artesanal é um dos ingredientes da receita tradicional de pão de queijo, contribuindo para seu sabor inconfundível. Produzido em pequenas propriedades rurais, o queijo é o resultado de uma combinação entre tradição, técnica apurada e cuidado minucioso em cada etapa do processo.

A produção começa com o manejo do gado leiteiro, frequentemente realizado por famílias que seguem práticas transmitidas ao longo de gerações. O leite fresco, coletado no próprio dia, é a base para o queijo, que passa por um cuidadoso processo de coalhada e maturação. Dependendo do tipo de queijo desejado, o período de maturação pode variar, permitindo o desenvolvimento de aromas e sabores únicos que refletem o terroir da região – o termo se refere a qualidade do produto de acordo com sua origem, sendo reconhecido por sua singularidade e qualidade.

Além disso, a fabricação artesanal muitas vezes envolve a utilização de utensílios e métodos tradicionais, como o uso de peneiras manuais e prensas de madeira, que conferem ao queijo características específicas, difíceis de reproduzir em larga escala. No entanto, como também ocorre com o polvilho, a produção de queijo fora das grandes indústrias enfrenta desafios. A crescente urbanização e as mudanças nas dinâmicas do campo têm levado à redução do número de produtores, enquanto a competição com queijos industrializados pressiona os preços.   

Os ovos e leite

Assim como o polvilho e o queijo, protagonistas no preparo tradicional do pão de queijo, os ovos e o leite são personagens importantes na receita e também possuem forte ligação com práticas agrícolas tradicionais de Minas Gerais. Frequentemente provenientes de pequenos produtores locais, esses ingredientes refletem um modo de vida rural que prioriza o cuidado com a terra e os animais. Muitos de seus produtores adotam práticas sustentáveis, como o manejo responsável de pastagens e o uso de métodos naturais na alimentação das galinhas e do gado.

Os ovos, por exemplo, são elemento comum em criações realizadas em quintais, onde as galinhas são criadas soltas, preservando não apenas a qualidade do alimento, mas também os saberes transmitidos de geração em geração. O leite, por sua vez, quando produzido de forma artesanal, é extraído por ordenha manual e processado em pequenas propriedades familiares, garantindo um produto fresco e com sabor diferenciado. A produção em pequena escala não apenas valoriza a tradição, mas também fomenta a economia local, criando uma cadeia produtiva que conecta os campos mineiros às mesas das cidades.

Para Eduardo Girão, a qualidade dos ingredientes é fator decisivo na produção do pão de queijo, tanto em receitas artesanais quanto no preparo industrial: “Acredito que podemos ter pães de queijo excelentes tanto no âmbito doméstico/artesanal quanto no âmbito industrializado. Os pontos determinantes são a escolha de bons ingredientes, a proporção adequada entre eles e o domínio técnico para assar corretamente, obtendo um pão de queijo bonito por fora, bem desenvolvido por dentro, com bom aroma e sabor equilibrado”.

Inovações

Enquanto artesãos como Ari e Lúcia lutam para manter viva a tradição do pão de queijo, empreendedores como Paulinho, da Pão de Queijaria, defendem que é possível inovar sem perder a essência. Desde 2014, sua loja em Belo Horizonte oferece versões contemporâneas do pão de queijo, combinando a receita tradicional com recheios criativos, como costelinha de porco e bacon.

“A nossa ideia foi trazer o pão de queijo feito em nossas casas, acompanhado de recheios contemporâneos, para mostrar que era (e ainda é) possível trazer esses dois elementos, que se parecem em oposição. Pudemos associar a tradicional receita mineira do pão de queijo com a inovação (às vezes ousadia) de fazer acompanhar com outros recheios, mas sempre sem perder o foco na culinária mineira.” explica Paulinho, e prossegue “O nosso sanduíche mais consumido nas lojas é recheado com costelinha de porco desfiada, bacon, couve frita e queijo minas derretido, o Chovinista. Costumo dizer que Minas está inteira dentro dele”.

O surgimento do pão de queijo gourmet sintetiza um momento de busca por novas experiências gastronômicas. Em Belo Horizonte, casas especializadas oferecem combinações inusitadas, como pão de queijo recheado com doce de leite ou goiabada. Essas releituras ajudam a expandir a visibilidade do quitute, atraindo novos públicos. Paulinho reforça que o respeito às origens é parte do sucesso: “Sabemos da importância da presença da gordura na massa. Por isso, escolhemos pequenos produtores de queijo minas artesanal, que são nossos parceiros desde o início, para fazer parte dessa redescoberta”.

Empreender nesse ramo, porém, traz muitos desafios: “Todo mineiro sabe (ou sabe quem sabe) fazer pão de queijo. Isso nos traz uma responsabilidade enorme para a produção do nosso produto. É muito comum os clientes dizerem que o nosso pão de queijo faz lembrar aqueles que comiam na casa dos pais ou avós, e isso nos enche de orgulho”, afirma Paulinho.

A história do pão de queijo é a história de Minas Gerais: um relato de criatividade, resistência e identidade cultural. Enquanto Ari e Lúcia representam a luta para preservar as tradições artesanais, Paulinho demonstra como a inovação pode dialogar com o passado para garantir um futuro próspero: “A tendência do mercado de pão de queijo, que já é muito grande em Minas, é se expandir para todo o Brasil e o mundo. Minas está na moda, e sabemos a riqueza da nossa gastronomia, que vai muito além do nosso pão de queijo”.

Ao ser questionado sobre as releituras da receita, seja com novas fórmulas ou ingredientes, como em versões veganas e sem lactose, o especialista em queijos Eduardo Girão observa que a evolução faz parte da história: “Mudanças fazem parte. Novos formatos, tamanhos, formulações. Isso tudo faz parte das dinâmicas gastronômicas. Quando surgiu, seja lá onde e quando, o pão de queijo certamente não era igual ao de hoje. O próprio conceito de tradição pressupõe mudança, uma vez que estamos a falar de práticas que atravessam o tempo, mantidas por pessoas diferentes em épocas e contextos diferentes”.

Caderno de receitas

Maria Catarina Delfino, mais conhecida como Dona Kate, é o coração e a alma de sua família. Aos 76 anos, sua história é o reflexo de uma vida marcada por simplicidade, resiliência e muito amor, expressos em um lugar especial: a cozinha. Avó de uma das autoras desta reportagem, ela é a inspiração de um caderno de receitas que vai muito além de ingredientes e modos de preparo.

Nascida e criada na zona rural de Lagoa da Prata, ela viveu uma infância marcada pela dureza da vida no campo. Crescer na roça significava acordar cedo e assumir tarefas que exigiam força e determinação, mesmo na infância. Ela cuidava dos irmãos e, desde cedo, aprendeu a cozinhar grandes quantidades de comida. 

Aos 15 anos, casou-se e começou uma nova jornada, em que a responsabilidade e o trabalho árduo, em casa e na criação dos filhos, continuaram a moldar seu caminho. 

Ao longo dos anos, cozinhar deixou de ser apenas uma necessidade e tornou-se parte de sua identidade. Apesar da simplicidade dos ingredientes, suas refeições sempre tiveram o poder de reunir e acolher. As receitas de Dona Kate passaram a ser o centro das comemorações familiares, um símbolo de união que atravessa gerações.

Hoje, sua comida é considerada um patrimônio afetivo da família. Não há celebração que não inclua ao menos um dos pratos que ela ensinou. É por meio da comida que ela mostra à família as boas coisas da vida, mesmo em meio a adversidades Sua cozinha tornou-se um lugar de memória e de pertencimento para todos que a conhecem. Um exemplo de que o amor pode ser transmitido pelas coisas mais cotidianas, como um prato de comida.

Tradicional pão de queijo da roça 

Receita do tradicional pão de queijo da dona Kate / Produção: Flávia Miranda e Maria Cecília Almeida / Locução: Maria Cecília Almeida

Ingredientes:

  • 2 xícara (chá) de queijo meia cura ralado
  • 4 xícara (chá) de polvilho doce 
  • 1 xícara (chá) de gordura (manteiga de porco) 
  • 1 e meia xícara (chá) de leite 
  • 1/2 xícara (chá) de água 
  • 1 colher (chá) de sal
  • 3 ovos 

Modo de preparo:

  • Pré-aqueça o forno a 180ºC.
  • Aqueça o leite e a manteiga em uma panela pequena até ferver.
  • Despeje a mistura fervente sobre o polvilho e mexa até formar uma massa.
  • Adicione o queijo ralado e incorpore bem. Acrescente o ovo e misture novamente.
  • Acerte o sal, se necessário.
  • Molde os pães (usando as mãos levemente untadas com óleo) e leve ao forno médio até que estejam dourados.

Dica: Certifique-se de pré-aquecer o forno. Em um forno frio, os pãezinhos podem perder a forma e ficar com a casca macia. Não hesite em assar até que fiquem bem dourados – o pão de queijo deve ser mais dourado do que amarelo.

Para mais receitas, acesse o Instagram: @saboresgerais

Reportagem desenvolvida por Flávia Miranda, Luísa Policarpo e Maria Cecília Almeida para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.

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