Relatos de imigrantes que residem no Brasil evidenciam obstáculos enfrentados durante adaptação, muitas vezes sem a família
Entre 2011 e 2021, conforme dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), 297.712 mil pessoas solicitaram refúgio ao Brasil. Ao chegarem ao país, enfrentam os desafios da interiorização, xenofobia e adaptação à cultura brasileira. Muitos chegam ao país depois de se separarem da família e lutam para trazer os entes queridos mais para perto. Relatos de imigrantes que residem no Brasil evidenciam esses obstáculos enfrentados nesta reportagem sobre como convivem em uma nova cultura sem a base familiar.
São comuns os relatos de imigrantes sendo hostilizados ao chegarem em um novo país. Além do preconceito enfrentado, há sofrimento pela dificuldade de adaptação, muitas vezes forçada, e pela falta da família. Em conversas com alguns imigrantes, é possível enxergar o Brasil por outros olhos e reconhecer os impasses enfrentados. Há aqueles cujo maior desejo é voltar para casa e preferem não se inserir totalmente à cultura brasileira, pois entendem o momento como uma situação temporária. Mas há também quem tenha sido bem recebido e considere o apoio encontrado no Brasil um diferencial, especialmente pelo “calor humano” dos brasileiros.
Emily – Venezuela
“É uma aventura, mas cheguei”
disse Emily
Emily de Jesus Rodriguez Paradas, 27 anos, vivia em Barquisimeto, capital do estado de Lara, na Venezuela. Há cinco anos, Emily deixou seu país em busca de melhores condições de vida. Ela relata que, por mais que trabalhasse muito, não conseguia se manter. Uma das principais dificuldades era a precariedade dos hospitais, que não conseguiam cuidar das pessoas, por falta de itens básicos, como curativos e gaze. Além disso, as longas filas nos supermercados e a escassez de produtos nas prateleiras afligiam ainda mais a venezuelana.
A primeira pessoa a vir para o Brasil foi sua irmã, junto com o namorado. Em seguida, Emily migrou para o Brasil e enfrentou sozinha uma longa viagem. “É uma aventura, mas cheguei. Depois, minha irmã e eu ficamos uns dois anos, aí veio minha outra irmã, meus sobrinhos e logo minha mãe. E recentemente chegaram minha cunhada e meus dois sobrinhos”, conta.
Sobre as dificuldades nas terras brasileiras, Emily confessa que a principal delas foi o idioma, pois ela chegou sem saber a língua portuguesa. Apesar disso, ela se dedicou e aprendeu sozinha o idioma, com a ajuda de músicas que escutava no rádio. Hoje, ela diz que procura ajudar seus familiares a falar o português e também ensina algumas palavras do espanhol que aqui no Brasil não tem bom significado.
Emily diz que ainda mantém algumas tradições venezuelanas, como o preparo de Hallaca no natal, prato típico do país. Embora seja difícil de ser feito devido a dificuldade em achar a folha de bananeira – um dos principais ingredientes – , o prato não fica de fora da ceia natalina. Além disso, Emily sempre conta a história do Menino Jesus para os sobrinhos, e os presentes que ele deixa para as crianças nas manhãs de natal. Portanto, mesmo estando em outro país, ela preserva a cultura entre família.
Em seu processo de imigração, Emilly morou em Roraima e depois seguiu para Belo Horizonte, onde vive há um ano e meio. Quando perguntada sobre o preconceito, ela disse que sofrer xenofobia principalmente em Roraima, onde teve dificuldades em alugar uma casa, pois os locatários se recusavam a fazer negócios com estrangeiros. No trabalho, ela relata a hostilidade dos clientes em um supermercado em que trabalhava como caixa. Segundo a imigrante, ainda hoje ela nota olhares de julgamento quando os brasileiros escutam seu sotaque, mas afirma que em Belo Horizonte não sofre mais tantos ataques.
Victor Hugo – Chile
O Brasil foi como um passaporte para a liberdade”
disse, Victor Hugo.
Com apenas 17 anos, Victor Hugo Carmona Castro deixou o Chile por motivos políticos. Victor Hugo relata que, entre 1973 e 1977, a família sofreu com o regime ditatorial da época. O pai, mesmo tendo um bom emprego, técnico eletricista em uma subestação, foi o primeiro a deixar o país em 1976. Em seguida, no dia 9 de setembro de 1977, Victor pegou um avião para encontrar o pai no Brasil e concluir seus estudos para começar a trabalhar.
Quando chegou ao país, Victor morou em Guarapari (ES) com o pai. No entanto, relata que a vontade era ter ido para a Venezuela, pois naquela época teria mais oportunidades de emprego e mais facilidade em se adaptar, uma vez que o país também tem o espanhol como idioma. “Eu era doido por trabalho, lá é um país latino-americano que você falava espanhol. Era um país que era muito rico naquele tempo, nos anos 70 e 80 era o sonho de consumo de qualquer imigrante”.
Por ter trabalhado em muitos estados, o chileno afirma que conhece o Brasil “de ponta a ponta”, e não tem nada a reclamar sobre xenofobia, pois sempre foi muito bem tratado e fez muitas amizades. Além disso, acabou aprendendo o português com a prática, não estudou de fato a língua, mas o cotidiano o ajudou a superar as barreiras linguísticas de um idioma que confessa ser muito difícil.
Sobre as diferenças culturais dos dois países, Victor percebeu uma diferença nas vestimentas e nos cortes de cabelo dos anos 70 e 80, disse que no Chile se usavam cortes de cabelo longos com tranças e penteados, enquanto no Brasil isso não era comum. Já nos eventos, relata que os aniversários no Chile são comemorados com festas de longa duração. E no final do ano, o natal e ano novo são comemorados com toda a comunidade, já aqui no Brasil, as festas são mais para familiares.
Irama – Bolívia
“Nunca me senti estrangeira aqui”
disse, Irama.
Irama Vidal, de 44 anos, define a vinda ao Brasil como destino. Ela conheceu o marido enquanto morava na Bolívia, pois ele havia se mudado para estudar. Se casaram, tiveram filhos e então mudaram-se para o Brasil. “A partir do momento que casei com ele, sabia que teria que acompanhá-lo. A gente também pensou no melhor para a família e, no momento, tinham mais oportunidades de trabalho no Brasil.”
Mesmo com a vinda planejada, Irama relata que aprendeu a língua portuguesa devido ao dia a dia. Além de ter contado com a ajuda do marido, ela admite que por ser professora de espanhol, o português ainda não é perfeito.
Sobre as diferenças culturais ela diz que não sentiu tanta diferença pois durante os feriados em que acontecem as festas típicas, como Carnaval, ela sempre passava no Brasil com a família do marido, por isso acabou se acostumando. “Normalmente as datas que poderíamos comemorar de forma diferente, passávamos aqui no Brasil, então meio que se perde a cultura um pouco sim”, relata. Ao contrário da cultura que já era conhecida por ela, as comidas foram algo que sentiu diferença, mas se habituou facilmente pois o marido gostava de fazer comidas típicas brasileiras enquanto morava na Bolívia.
Irama teve que deixar a família para trás, e costumava visitá-los pelo menos uma vez ao ano. Porém, diminuiu a frequência das visitas e hoje mantém o contato por telefonemas e mensagens.
Felizmente, Irama informou que nunca sofreu nenhum tipo de discriminação por ser estrangeira, nem mesmo os filhos, e relata que foram muito bem recebidos, “ a gente teve muita sorte”. Também disse que perguntavam a ela, de forma amiga, o porquê dela viver no Brasil, e ela respondia rindo que gosta muito daqui e não entende porque deixaria o país. “Todos me perguntavam, eu achava engraçado, ‘o que você veio fazer aqui?’ Eu falo que aqui é tão bom […]. Eu sempre tive sorte”.
Atualmente, Irama vive em uma pequena cidade em Minas Gerais chamada São Domingos do Prata, admite que gosta da cidade mas que tem dificuldades quando precisa fazer algum documento para os filhos. Por serem considerados brasileiros nascidos no exterior, a documentação é brasileira e boliviana e toda vez que precisam retirar um novo documento, têm de se deslocar até a capital do estado, que fica a mais de 140 km de distância.
Por ter vida estabelecida no Brasil, o acolhimento do povo brasileiro e o fato dos filhos estudarem aqui, Irama não pretende voltar a viver na Bolívia. Por mais que sinta saudades e já tenha pensado em retornar ao país natal, hoje em dia, após o falecimento do marido, ela não se vê deixando os filhos para trás. “Engraçado porque agora eu poderia retornar, mas vou ficar aqui por enquanto. E vamos ver o que vou fazer ainda, mas… sim, tinha planos de voltar. Agora, sozinha já não sei. Como os meninos tão aqui […] não me vejo indo embora e deixando eles aqui, né, agora estou aqui e pretendo ficar.”
Felly – Congo
“Não tenho direitos ou liberdade de expressão”
disse, Felly.
A crise na República Democrática do Congo, crescente desde 1996, com conflitos entre comunidades, milícias e forças armadas, somada à fome, provocam a fuga massiva para outros países. Quando uma conflagração explode, as famílias precisam fugir com o pouco que têm, caminham muitos quilômetros até achar um local seguro. Felly Zihal conta que sua motivação para a busca de refúgio foi a insegurança política e a discriminaçao étnica. Felly deixou o Congo em 2010, sozinho. Hoje, com 31 anos, trabalha como voluntário na área de assistência social, administração e gestão no Brasil.
Felly Zihal e voluntarios distribuem alimento para crianças de uma tribo em Madagascar./ Facebook Fraternidade Sem Fronteiras.
Segundo Felly, o mais impactante é ser considerado estrangeiro, por não poder assinar contrato com uma empresa ou até mesmo ter o gozo de direitos que outros têm, apenas por ser refugiado. Ele conta que, dentre as dificuldades que enfrenta está a falta de direitos ou liberdade de expressão e, principalmente, abusos de seus direitos sociais.
A tradição que mantém até hoje é praticar o que a família o ensinou: compartilhar com os demais; o que não sabe ou não tem, pode saber por meio de semelhantes. Mesmo uma tradição tão simples é dificultada pela situação de, como coloca Felly, “limitado de direitos”.
A importância das organizações acolhedoras
Apesar de não obtermos contato direto com nenhum refugiado ucraniano, o Pastor Bráulio Moura, da Igreja Batista Central de Belo Horizonte, relata algumas histórias. Cerca de 300 ucranianos chegaram ao Brasil através da Global Kingdom Partnership Networking (GKPN), associação de igrejas do mundo inteiro. Bráulio conta que o governo brasileiro foi de extrema assistência para os refugiados, pois todos possuem agora CPF e carteira de identidade, regularizando-os para conseguirem um emprego digno mesmo com a dificuldade de comunicação. A igreja ainda arca com o aluguel da moradia onde eles vivem e dá suporte alimentar em Belo Horizonte. O fluxo de pessoas vindas da Ucrânia foi diminuindo ao longo do ano passado e já se encerrou nesse ano de 2022.
Os refugiados, fugindo do conflito entre Rússia e Ucrânia, diferentemente de outros casos já expostos na reportagem, não são migrantes comuns, pois não desejam permanecer no país para onde migram, e sim voltar o mais rápido possível ao seu lar. Assim, não se preocuparam em aprender a língua nativa, que é uma das maiores barreiras para inclusão nessa nova comunidade. Bráulio conta que a igreja chegou a disponibilizar aulas de português para todos que chegavam e destacou que todo esse apoio é crucial para que essas pessoas tenham uma vida digna novamente.
Bráulio relembra alguns relatos chocantes sobre como foi a vinda dessas pessoas (maioria formada por camponeses interioranos). Uma dessas histórias é sobre duas irmãs, de 20 e 24 anos, que saíram às pressas do país. O pai as levou até a fronteira da Polônia, pois os russos avançaram até uma área extremamente próxima de onde moravam e estavam destruindo o que estivesse na frente. As filhas conseguem fazer contatos rápidos e ocasionais com o pai por meio da internet, porém a incerteza frente à segurança dele mexe muito com o sentimento de ambas.
Em outro caso, o marido de 42 anos não pode vir ao Brasil, pois mesmo mostrando um atestado médico comprovando comorbidade, ele foi barrado – segundo as autoridades Ucranianas, ele estava apto a servir o exército e foi obrigado a permanecer no país. Por isso, a esposa de 39 anos e dois filhos pequenos estão aflitos e ansiosos com o momento de poder voltar para o país com segurança.
Apenas uma família veio completa, e só conseguiram sair da Ucrânia por conta dos três filhos pequenos. As experiências narradas pelo pastor servem para elucidar ainda mais a situação comovente desses refugiados e apontam para a importância de todo país consolidar instituições competentes que auxiliem e garantam a cidadania para essas pessoas.
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur)
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) foi criado em 1950, para ajudar milhões de europeus que fugiram ou perderam as casas devido à Segunda Guerra Mundial. Até os dias atuais, a organização trabalha para proteger e ajudar refugiados ao redor do mundo.
As últimas décadas foram marcadas por níveis altíssimos de deslocamentos forçados. Das 67 milhões de pessoas que deixaram seus locais de origem devido aos conflitos, perseguições e violações dos direitos humanos, 22 milhões cruzaram uma fronteira internacional e foram considerados refugiados. A Acnur, por meio de parcerias com centenas de organizações não governamentais, oferece assistência e proteção para os refugiados. Ela se mantém viva por meio de contribuições voluntárias, além de doações arrecadadas junto ao setor privado e a doadores individuais.
A maioria dos refugiados não podem voltar para casa, então, precisam ser reassentados, ou seja, transferidos para o país que decidiu acolhê-lo, com o status de residência permanente. O reassentamento é a única solução duradoura que envolve a realocação de pessoas refugiadas de um país de asilo para um terceiro país. Segundo a Acnur, a Turquia é o país que mais reassenta refugiados no mundo.
Conteúdo produzido por Beatriz Castro, Gabriela Paiva, Kevin Soares, Marcel Navarro, Maria Eduarda Lisboa, Mateus Monteiro, Sara de Jesus na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard. A edição foi realizada por Ana Flávia Pisani, Isabela Cunha, Julia Dara, Pedro Alves e Sérgio Pêgo na disciplina Edição em Jornalismo, sob a supervisão da professora e jornalista Maiara Orlandini.
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