Ao longo do segundo semestre de 2022, lançamos uma série de entrevistas com cinco cineastas mineiros. Investigamos suas inspirações, motivações, desafios e suas conexões com Minas Gerais. Falamos com Gabriel Martins, Marcos Pimentel, Clarissa Campolina, Joana Oliveira e, para concluir a série, Helvécio Ratton.
Consagrado em todo o Brasil, Helvécio Ratton produz filmes desde os anos 1970, atingindo diversos públicos e contando histórias que marcaram gerações, como O menino maluquinho ou O batismo de sangue. A entrevista, feita de forma remota em uma tarde chuvosa de quarta-feira, foi leve e aconchegante. Contei a ele, que cresceu na região do Serro, sobre o costume da minha família – que vem da mesma região – de fazer queijo em casa. No meio da entrevista, Helvécio pede uma pausa, pois os pães que estava assando enquanto conversávamos estavam prontos: “assamos pãezinhos!”, ele me conta, alegremente.
A entrevista foi editada para fins de concisão e clareza.
Acredito que a cultura e a história de Minas Gerais aparecem diversas vezes na sua obra, seja de forma explícita, como no documentário O mineiro e o queijo e em Em nome da razão ou de forma mais sutil, como em O menino maluquinho, que é uma história daqui e gravada aqui. Essa influência foi intencional ou espontânea? Como as suas raízes influenciam os seus filmes?
Eu, na verdade, descobri Minas Gerais fora de Minas. Quando eu morava aqui, antes de 1970, tive uma rejeição muito grande à “mineiridade”, me enchia um pouco o saco, eu achava que tinha uma coisa muito solene, e isso me incomodava. Fiquei fora de Minas, ainda no Brasil, durante um tempo e depois eu fui para o exterior e achava muito bom que as pessoas não percebessem que eu era mineiro. Eu estava com um sotaque meio diluído e achava ótimo quando perguntavam “você é paulista?”. Depois isso começou a me cansar, achava bom que os baianos fossem baianos, que os gaúchos fossem gaúchos e foi uma época em que, estando fora, começou a “bater” a cultura mineira em mim. Quando eu voltei, eu fui ler com mais intensidade Drummond, Guimarães Rosa, os nosso ícones da literatura. Eu fui começando a sentir que, por mais que eu tentasse rejeitar, aquela cultura já era parte de mim. Ela era parte do meu DNA.
Quando eu voltei para o Brasil, em 1974, depois de ficar quase cinco anos fora, eu mergulhei de novo nessa cultura. Por razões políticas da época, eu fiquei muito concentrado em Minas, porque era a Ditadura Militar, eu tinha processos, não podia sair de Minas Gerais. Eu mergulhei muito em Minas, tanto que o meu primeiro filme feito aqui foi o Em nome da razão, que, além de denunciar como os doentes mentais eram tratados pela rede pública, o absurdo que era o Hospital Colônia de Barbacena – junto a outros hospitais do Brasil – foi uma forma de falar, também, da ditadura. Falar dos porões da loucura foi uma forma de falar dos porões da ditadura, também. De uma forma eufemística.
A partir daí, eu sinto que fui, de novo, me integrando muito na cultura mineira. Logo em seguida eu escrevi Dança dos Bonecos, que foi o primeiro longa que eu fiz aqui em Minas e é um longa tremendamente mineiro, no sentido de que está ali a nossa paisagem. Foi uma história que eu escrevi muito impregnado de um cenário, escrevi a história pensando em Biribiri. Conheci a cidade na época e pensei “nossa, eu tenho que escrever uma história para essa cidadezinha aqui!”. Minas passou a me estimular muito, a me excitar muito em fazer coisas mineiras. Não foi algo muito planejado, foi algo que foi acontecendo naturalmente.
Você define O mineiro e o queijo como um documentário “político e poético”. O que mais há de político e poético em Minas Gerais que você gostaria que fosse documentado (por você ou por outros cineastas)?
São tantas coisas! No caso d’O mineiro e o queijo, foi engraçado porque as pessoas sempre tinham um certo preconceito, uma certa resistência para falar do nosso pão de queijo, do nosso queijo, como se a gente não quisesse meter as mãos na nossa cultura.
Eu me lembro de, criança, com os meus pais, ir visitar fazendas, provar queijinhos, aquela coisa toda. Lá em casa o queijo sempre fez parte da mesa. Quando eu vi o queijo sendo tombado como patrimônio histórico, primeiro pelo estado, pelo IEPHA, e depois nacionalmente, pelo IPHAN, eu comecei a ler sobre o tombamento e descobri uma contradição muito grande, que é o fato de o queijo ser tombado, mas, ao mesmo tempo, não poder circular no país. É uma loucura. A gente come queijo em Minas Gerais há mais de 300 anos e esse queijo era proibido de ser consumido no Rio, em São Paulo. Ao mesmo tempo, esse queijo era contrabandeado em grande escala e sempre foi consumido fora de Minas Gerais.
Tentando entender essa contradição e por que contradições como essa acontecem no sistema capitalista – porque o sistema capitalista faz esse tipo de coisa? Com uma mão ele premia e com a outra ele proíbe? – Aí você começa a ver o jogo do capitalismo. Por que os laticínios não queriam que esse queijo concorresse com eles? Você tem um queijo que, mal ou bem, é uma produção muito significativa, tem 30 mil famílias vivendo dessa produção. A produção de queijo em Minas é muito grande, basta ir ao Mercado Central para ver, e lá é apenas uma vitrine desses queijos. Esse tipo de contradição sempre me interessou muito, perceber como o capitalismo lida com essas diferenças, como ele lida com certos produtos, como ele impede, e como o artesanal, do pequeno produtor, sempre foi jogado para fora desse mercado. É algo que a gente continua assistindo até hoje.
Quando a gente fala de produção de alimentos, a gente fala de uma produção dominada pelos grandes negócios, em que a produção do pequeno produtor, que foi muito estimulada nos governos Lula e Dilma, mas sempre foi muito reprimida. Você sempre teve a dominação desse grande negócio da alimentação. O queijo é uma parte disso, a forma desse queijo artesanal estar sobrevivendo até hoje – e o filme ajudou nisso.
Entra aí uma reflexão: a gente sabe que o cinema não muda o mundo, mas o cinema faz pensar. Faz as pessoas imaginarem que pode ser de uma outra forma, e isso foi algo que aconteceu, porque, no fundo, o que O mineiro e o queijo e Em nome da razão fizeram foi expor aquilo que estava acontecendo de uma forma direta.
Eu gosto muito de documentários, acho que o documentário cumpre um papel muito bacana e há muita coisa a ser filmada. Pode ser filmado de uma forma mais poética, mais bruta, mais rústica, mais refinada. Depende muito do objeto a que você está dirigindo o seu foco. Em nome da razão, inclusive, foi um documentário que eu não quis refinar muito. Ele é em preto e branco, tem uma dureza, ele tem grão, tem um som muito áspero, que era produzido lá dentro, que vinha do hospício. Tem muitas graduações de documentário e cada um tem que encontrar a sua forma, o seu estilo
Você é pioneiro entre os cineastas mineiros. Nos últimos tempos, temos visto novos nomes chegarem ao cinema daqui. Como avalia essa nova cena do cinema mineiro?
Eu acho muito interessante! Acho muito bacana a gente ver, em especial, essa turma que está surgindo lá em Contagem, da Filmes de Plástico. Eu, obviamente, já conhecia há mais tempo e acho os filmes deles muito interessantes, porque é um olhar diferente. A formação deles é de uma origem social diferente da nossa, eles são de uma periferia de uma grande cidade, o acesso [ao cinema] sempre foi mais complicado para eles do que para nós.
Belo Horizonte, no cinema mundial, já é uma periferia. O Brasil já é um país periférico e, dentro do Brasil, era impensável que surgisse uma geração talentosa como essa que surgiu lá em Contagem. A gente não poderia prever que ia surgir um grupo tão interessante de pessoas como aqueles. Sempre gostei muito daqueles filmes, sempre vi como uma novidade interessante, uma forma de oxigenar o nosso cinema. Um cinema que nascia sem muitas tradições.
Há em Minas uma tradição muito grande de cinema, que vem desde Humberto Mauro e as gerações que passaram depois. Antes da minha geração, praticamente todos saíam fora, iam para o Rio de Janeiro, principalmente. Tem, também, uma geração muito talentosa, de Joaquim Pedro de Andrade, que fez Macunaíma e outros filmes, e muitos outros, que foram fazer cinema fora. Então, a gente tinha uma tradição muito grande de pessoas que se interessavam por cinema aqui e iam para fora. Talvez eu tenha sido o primeiro diretor que continuou aqui e continuou fazendo cinema aqui.
Na época, a gente montou um grupo, tinha uma associação de classe, e nós montamos uma empresa, chamava-se Grupo Novo de Cinema, que nos permitiu fazer esses filmes. A verdade é que, aqui em Minas, a gente tinha um movimento ligado a uma certa tradição que já existia e, de repente, o surgimento da Filmes de Plástico e de outras vem quebrar essa linha de uma forma muito interessante. O pessoal da Teia, que tem outra ótica, também acho muito interessante, com um olhar mais poético para o cinema.
Embora eu faça documentários, o que mais me dá prazer é a ficção. Eu gosto de escrever meus roteiros, meus diálogos, gosto de inventar histórias. Se eu não tivesse feito cinema, eu estaria escrevendo, teria escrito esses anos todos, não tenho a menor dúvida! Gosto de escrever, gosto de criar e acho que com essa turma, da Anavilhana, da Teia, tem um olhar diferente sobre o cinema e a Filmes de Plástico é uma grande novidade! Eu assisti Marte Um em uma sessão linda lá no Belas Artes e escrevi para o Gabriel Martins que eu tinha visto uma sessão que me emocionou muito, porque Marte Um coloca o povo na tela e na plateia. Eu tinha visto uma sessão em que a plateia respirava junto com o filme e interagia junto com os personagens. Isso era extremamente bacana! Isso oxigena o cinema como um todo! Fico muito contente de ver novos olhares no nosso cinema, acho que vão enriquecer esse cinema produzido aqui e levar para novos caminhos!
Se puder falar: você está trabalhando em novos projetos? Poderia contar um pouco sobre eles?
Estamos com um filme que está pronto para ser lançado há dois anos, chama-se O lodo. É baseado em um conto do Murilo Rubião, que é um escritor mineiro conhecido como “o mestre do absurdo”. Esse filme ficou pronto em 2020, a pandemia o acertou em cheio! Íamos lançar no final de 2020, chegamos a ter uma sessão presencial, em Tiradentes, depois ele foi para festivais de forma on-line, o que foi muito frustrante para nós. É claro que a gente assiste filmes por streaming, mas o fato de você ter uma sala de cinema cheia é uma coisa insubstituível, não tem nada que se compare a você ver as reações das pessoas.
O filme ficou engavetado, ficamos, inclusive, esperando recursos para o lançamento que a gente tinha ganhado em um edital de 2019. Os recursos só foram sair dois anos depois, então vamos lançar ele em março de 2023! Talvez seja o meu filme mais belo-horizontino, mais do que mineiro. Murilo Rubião é um escritor que nasceu no sul de Minas e passou a sua fase mais importante e mais rica em Belo Horizonte. Ele criou, também, o suplemento literário, que foi muito importante na formação de novos escritores, novos poetas em Minas Gerais.
Eu sou formado em psicologia, embora nunca tenha exercido, e fiquei feliz demais quando descobri esse conto. É o conto de um cara que, para curar uma depressão, procura um psicanalista, e a partir daí, a vida dele se torna um inferno, o passado volta, o psiquiatra começa a segui-lo em sonhos terríveis.
É um filme super interessante e muito diferente de todos os que eu já fiz, em que Belo Horizonte é praticamente um personagem e eu filmei só com atores daqui. É um conto extremamente belo-horizontino e com um cenário extremamente belo-horizontino. É um filme que tem uma ligação grande comigo e com a cidade com a qual eu mais me identifico, onde eu passei grande parte da minha vida. Eu sei olhá-la com olhares diferentes e esse filme tem olhares bem interessantes.
Você poderia indicar outro filme para quem gosta dos seus filmes e quer conhecer mais sobre o cinema mineiro?
Eu sempre tenho dificuldade de escolher algum filme meu, acho que os filmes têm seus momentos. Recentemente eu andei escrevendo algumas coisas sobre a época da Ditadura Militar, até publiquei um texto na Revista Piauí, e senti que o meu filme O batismo de sangue havia se tornado um filme muito importante nesse período da história do Brasil, em que carecia que a gente relembrasse o que aconteceu naqueles anos de chumbo. Parecia que, ou a gente não tinha memória, ao ver tanta gente pedindo Ditadura Militar diante das portas dos quartéis – eu tenho ojeriza de pensar em como pode ter gente que vai para os quartéis em defesa da liberdade.
Fico vendo os meus filmes que atravessam o tempo, O menino maluquinho é um deles, fico surpreso como as gerações vão se sucedendo e de novo abraçando o filme. Antes eu recebia mensagens dos garotos, hoje já recebo mensagens dos pais dos garotos. Outro dia, em uma feira em Belo Horizonte, uma senhora falou comigo sobre ele e todo dia eu tenho algum aceno em relação a O menino maluquinho.
Outro filme que permanece é o Em nome da razão, que continua sendo visto de uma forma impressionante, não tem semana em que eu não receba um pedido para usar imagens do filme em outro trabalho.
Eu gosto muito que os filmes estejam vivos, que as pessoas estejam se interessando por eles e que, de alguma forma, façam parte da vida delas. Seja pelo lado de uma história gostosa, de uma denúncia, de uma reflexão, acho muito bacana! Penso que as pessoas devem se interessar pelo cinema brasileiro, é muito importante conhecer o cinema que é feito em Minas Gerais, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul, em São Paulo, onde for. Uma forma de a gente tentar entender esse nosso país é vendo os nossos filmes.
Para finalizar: como seria um dia de gravação ideal para você?
Filmagem. A gente gosta de falar “filmagem” porque, apesar de a gente estar gravando, atualmente, com câmeras de vídeo, temos uma escola que veio do cinema. Eu me formei filmando.
Eu costumo planejar muito bem os meus dias de filmagem. Não gosto de chegar no set com dúvidas, não. É claro que alguma coisa eu resolvo no set, quando estiver ensaiando com os atores, com certeza alguma coisa nova vai surgir. Me sinto muito bem quando essas coisas logo surgem e me surpreendem. Nada melhor do que um dia em que eu consiga fazer tudo o que eu planejei e ainda com alguns plus, descobrir alguma coisa nova, viver alguma coisa que o ator me traz. Cinema é uma coisa extremamente coletiva. Quando eu chego no set e recebo algo de volta da equipe eu me sinto super bem!