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“É um motivo de orgulho imensurável ver o que o Marte Um tem se tornado com o público”.

foto de Gabriel Martins, homem negro com cabelo afro em frente a uma favela

Gabriel Martins/Foto de Divulgação

Marte Um, filme do cineasta Gabriel Martins alcançou, em poucas semanas de exibição, um sucesso raro para filmes nacionais. Produzido em Contagem (onde o diretor cresceu), região metropolitana de Belo Horizonte (MG), o longa já foi exibido em diversas cidades do Brasil, premiado no Festival de cinema de Gramado e no Outfest em Los Angeles, entre outros. O longa foi o escolhido pela Academia Brasileira de Cinema como indicação do país para a categoria de “Melhor Filme Estrangeiro” no Oscar de 2023, que acontecerá em 12 de março. 

A obra acompanha uma família negra periférica de Contagem, enquanto cada um enfrenta dilemas próprios: a busca por liberdade, a suposta obrigação de cumprir as expectativas familiares, as dificuldades financeiras e os sonhos frustrados. 

O filme foi produzido com recursos de um edital federal de incentivo à cultura, lançado em 2016. Com baixo orçamento, se escolhido pelo Oscar para participar da cerimônia, será o primeiro filme brasileiro na categoria em 25 anos e apenas o quarto diretor preto da história a concorrer pela estatueta de melhor filme estrangeiro. 

Confira a seguir, a entrevista de Gabriel Martins ao Colab, que foi editada para fins de clareza e concisão: 

Você disse em outras entrevistas que o filme surge a partir da sua própria história, de coisas que você precisava dizer sobre a sua jornada. Como essa ideia surgiu e amadureceu até chegar às telas?

A ideia surgiu dentro de uma percepção política e social minha do que foi aquele entorno da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. E junto a isso, essa promessa do futebol, o futebol encapsulando esse desejo que cabe dentro do personagem do Deivinho. Mas, ao mesmo tempo, eu pensando em como poderia ser feita uma narrativa mais expansiva sobre a ideia de um garoto negro periférico, e como isso poderia também refletir o Brasil, como a gente quer pensar o país para o futuro, como a gente ainda está atrelado a várias coisas do passado e como a gente ainda pode tentar se libertar disso. 

Eu acho que esse lugar pessoal entra muito também em uma reflexão constante que eu tenho sobre mim mesmo: sobre como me libertar de certos vícios que podem me tolher criativamente, como me tornar uma pessoa melhor, mais interessante, mais leve. Marte Um surge desse encontro.  

Cena de Marte Um/Embaúba Filmes

Qual foi a diferença do processo de produção de Marte Um, que você assinou sozinho, para os outros projetos da Filmes de Plástico?

Na prática, eu não acho que houve uma diferença tão grande do processo de produção dos outros filmes, porque o núcleo era o mesmo, até parte das pessoas da equipe eram próximas de outros projetos. Então, o processo de produção se dá menos pela característica de ser um diretor ou dois diretores, mas mais pelo que o roteiro pede. 

Mesmo assim, Marte Um não teve uma experiência radical de produção, tão diferente do que os outros projetos tiveram, não. Eu acho que, obviamente, nós estávamos mais maduros, já tendo apanhado com outros projetos, estávamos muito mais atentos ao orçamento, à execução, mas, na prática, uma lógica de produção, de harmonia entre a equipe, que tem muito a ver com o que o “No coração do Mundo”  foi e com o que o “Temporada” foi. 

Assisti Marte Um há algumas semanas e uma das coisas que mais gostei, foi o fato de os atores serem mineiros, terem sotaque, e de o filme se passar em BH, perto de lugares conhecidos. Qual é o papel da regionalidade nesse filme? 

Acho que a questão da regionalidade é uma ideia de construção da identidade possível. Não acho que é nada além de um natural, porque viemos daqui e a história se passa aqui. Se eu fizesse a história no interior de Pernambuco, os personagens teriam o sotaque local. Se eu fizesse o filme na Bahia, no Acre, no sul do Brasil [também]. 

Eu acho que a regionalidade é parte da cultura que o filme quis expor. Essa cultura é da periferia de Minas, da região metropolitana de Belo Horizonte, é uma cultura desse lugar onde essa história se passa. Obviamente, junto a isso, a gente também está reivindicando uma atenção a essa região, porque, historicamente, no cinema, a gente não tem tantos registros dela, mas, na prática, é algo muito natural de como a gente deseja se expressar. 

E por falar em Minas Gerais nas telas, tenho notado uma expansão da cultura belo-horizontina para as outras regiões do país. Temos visto, especialmente na música, muito sucesso dos nossos cantores e festivais. Você acha que essa visibilidade também tem atingido o cinema mineiro? 

Eu acho que a visibilidade que a gente tem visto na música está começando a chegar no cinema. Acho que o cinema, talvez, seja de uma bolha mais fechada do que a música: na música a gente tem artistas como o Djonga e outros mineiros dessa geração, acho que eles conseguem furar a bolha um pouquinho mais fácil. Não que o caminho deles seja fácil, mas eu acho que a música, naturalmente, corre mais rápido do que um filme. O acesso a uma música é muito mais fácil do que o acesso a um longa-metragem.

É um processo mais difícil para que um cinema consiga furar a bolha, com todo o processo de distribuição que a gente tem. Então, eu acho que o cinema ainda está ficando para trás, mas, pouco a pouco, filmes como Marte Um e outros projetos, como Arábia, Baronesa e outros filmes feitos aqui vão ajudando o cinema a caminhar em outros passos. Eu sinto que, aos poucos, essa coisa toda está conseguindo caminhar um pouco mais junto. 

Divulgação Marte Um/Embaúba Filmes

No Brasil, é raro ver produções locais estrelarem em cinemas de shopping e repercutirem em outras regiões do país. Como você vê a receptividade do público em relação ao filme? Os resultados da bilheteria foram como o esperado?

Bom, a receptividade do público tem sido incrível. Na verdade, tem sido mais do que o esperado e os resultados de bilheteria até o momento, que o filme passou de 25 mil espectadores [no momento da publicação da entrevista, o filme já dobrou de bilheteria, alcançando a marca dos 50 mil espectadores], é maior do que o esperado. Obviamente, eu tinha um desejo – e desejo é diferente de expectativa – de que Marte Um consiga fazer muito mais do que já tem agora. 

A expectativa, diante de uma realidade de cinema de pandemia, dos preços do cinema, de como talvez as pessoas perderam, um pouco, o hábito de ir ao cinema para ver cinema brasileiro – é uma luta e a gente já entra perdendo – eu não tinha uma expectativa tão grande assim de público e o filme superou! Ele tem atingido, ele tem aumentado, ele tem chegado cada vez mais nas pessoas, e isso tem sido um motivo enorme de orgulho para a gente. É um motivo de orgulho imensurável ver o que o Marte Um tem se tornado com o público.

É também as pessoas pegando o filme pela mão, que é uma coisa única. 

Gabriel Martins
Cena de Marte Um/Embaúba Filmes

Marte Um foi selecionado pela Academia Brasileira de Cinema para ser indicado ao Oscar. Como foi o processo para chegar a essa indicação? Como você se sente em relação a isso? 

Começou com poder se inscrever, e o timing do filme, a maneira como ele foi lançado, a presença em Gramado. Tudo contribuiu muito, porque o filme já estava em cartaz e fazendo muito barulho, eu acho que isso ajudou. A repercussão do público também ajudou.

Obviamente, ele teve uma trajetória no mercado americano, desde Sundance, em janeiro deste ano. Acho que foi uma decisão conjunta que fez com que Marte Um fosse uma escolha lógica, mesmo. A gente teve uma repercussão, a gente está construindo um caminho forte dentro dos Estados Unidos.

Eu me sinto muito honrado de estar nessa posição, eu acho que o filme também tem um diálogo possível com essa narrativa do Oscar, com esse caminho. Então eu acho que não é um sonho totalmente distante de se pensar. Estamos trabalhando duro para chegar o mais longe possível.  

Poster de divulgação Marte Um

E você poderia indicar outro filme para quem gostou de Marte Um? 

Tenho várias indicações para quem gostou do Marte Um. Para falar de filme brasileiro, tenho dois filmes a indicar, que eu tenho a obrigação de indicar, porque eles fizeram parte do mesmo edital do Marte Um, que é o Longa Afirmativo. Esses filmes são: Um dia com Jerusa”, da Viviane Ferreira, que está na Netflix, e “Cabeça de Nêgo”, [do Déo Cardoso] que está no Globoplay. São dois filmes que ganharam o edital junto com Marte Um, então eu estou caminhando junto com esses filmes desde lá de trás. Marte Um foi o último a ser lançado e é uma honra estar com esses filmes que falam de cinema negro. Então indico, para que as pessoas corram atrás e vejam que tem cinema negro sendo feito no Brasil. 

Para finalizar: como seria um dia de gravação ideal para você? 

É um dia em que as pessoas estão leves no set, que a gente pode, por um momento, não se preocupar tanto com todas as adversidades que podem acometer o filme e que a gente possa se concentrar em viver momentos bonitos enquanto elenco, enquanto equipe. Para mim, esse é um dia ideal, um dia em que todo mundo esteja muito disposto a fazer o filme, com muito coração aberto para o que a gente vai fazer naquele dia, com muita paciência uns com os outros. Isso para mim é um dia ideal! 

Entrevista conduzida pelas repórteres Helena Tomaz e Isadora Pimenta 
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