Mineira de Belo Horizonte, Clarissa Campolina é diretora, roteirista, montadora, curadora e professora de cinema. Ao lado de outras duas cineastas mineiras, Marília Rocha e Luana Melgaço, Clarissa fundou, em 2005, a Anavilhana, produtora que tem “o desejo de articular pesquisa, formação, produção e criação audiovisual”. Em 2011, “Girimunho”, seu primeiro longa-metragem como diretora, que tem como personagem principal uma senhora do interior do estado, estreou no Festival de Veneza. Na terceira entrevista da série “Cinema Mineiro”, do Colab, Clarissa fala sobre criação, arte e narrativas do cinema de Minas Gerais e do Brasil.
A entrevista foi editada para fins de clareza e concisão.
Girimunho, seu primeiro longa como diretora, se passa no interior de Minas Gerais, que habita o imaginário das pessoas quando pensam no estado. Já Marte Um, grande sucesso atual, é um cinema mineiro urbano. Pensando na recepção dessas obras e na imagem que Minas tem no restante do Brasil, o que você quis captar ou realçar no seu filme? É possível fugir do estereótipo sobre o interior de Minas Gerais?
O filme veio em 2009, uma época da minha vida que tinha um projeto chamado “Cinema no rio”, que percorria o rio São Francisco. Fui convidada a participar desse projeto junto com o Helvécio [Marins Jr.], que dirige o Girimunho comigo. A gente filmava as cidades do interior e exibia pequenos vídeos antes da exibição de um longa-metragem. Já tinha uns seis anos que o Brasil estava produzindo mais longas, e o projeto vinha com esse desejo de mostrar o Brasil para os brasileiros fora dos centros urbanos, onde não se chegava e onde não tinha cinema. Nesse convívio e nesse encontro com o interior, a gente começou a perceber coisas diferentes.
Quando a gente chegou em São Romão do Guimarães, imediatamente passamos por lugares do “Grande Sertão Veredas”, acompanhando o rio São Francisco de Ibirapora até a Foz. Então, para mim, que era mais jovem, foi um encontro com um Brasil que eu não conhecia de fato. Acho que tem mais a ver com isso do que um desejo de representação de Minas ou do cinema mineiro.
Quando você é realizador ou realizadora, o primeiro impulso não é o que o filme vai fazer, como que ele vai representar o mundo, é como que você está motivada ou atraída por certas questões. No final, todos esses filmes compõem o cinema mineiro e o cinema brasileiro. Claro que você tem que ter isso em mente no momento que você resolve fazer [um filme], você não está apenas suprindo um desejo, uma satisfação pessoal, você tem que ter em mente que aquele trabalho vai representar esse país, esse estado, você tem que estar comprometido com isso.
Você pode fazer a direção de um filme idealizado por uma produtora que a ideia já existe e você se identifique, queira fazer e tal, mas, nesse caso, acho que teve a ver com um certo encantamento, um encantamento de uma forma de vida que a gente percebia na Bastú [personagem do filme], uma habilidade de contar história e de fabular de um jeito que era muito próprio e que, de alguma forma, tinha a ver com aquela geografia, com aquele espaço, com a falta de luz, com esse rio que ela não sabe exatamente onde vai dar. Então, tínhamos a possibilidade de imaginar muitas coisas. Nesse imaginar, ela era uma exímia contadora de histórias.
Em 2011, Girimunho estreou no Festival de Veneza. Desde então, você produziu sete curtas e está trabalhando em dois longas. O que você acha que mudou no cinema feito aqui nesses 11 anos?
A gente fala, aqui na Anavilhana, que, como a gente começou em 2005, tem quase 20 anos que a gente se dedica ao fazer cinema. Nossas produções cresceram junto com as políticas públicas do governo nacional, que foram influenciando os governos estadual e municipal. De repente, a Ancine começou a ter um papel mais determinante no financiamento dos projetos e a gente viu uma necessidade: se a gente quisesse fazer longa, principalmente, a gente teria que ter uma empresa, um CNPJ, e formalizar isso.
Junto com isso, aconteceu outra coisa, particularmente em Belo Horizonte: quando eu me formei na UFMG, a gente só tinha cinema de animação, eu entrei em 1997. Em Belo Horizonte, não existia curso de Cinema em universidade pública , se eu quisesse fazer Cinema eu tinha que ir para a UFRJ, para a USP ou para a UFF. Com as políticas públicas, também começaram a surgir cursos de Cinema nas Universidades. Isso foi alterando todo o escopo do cinema brasileiro. Essa educação, junto com a entrada dessas disciplinas e das Faculdades de Cinema nas universidades públicas, além de outras políticas públicas como o FIES e o Prouni, fizeram com que várias pessoas entrassem nas universidades, e isso vai alterando também quem está fazendo cinema. É um trabalho um tanto privilegiado. Eu acho que tudo isso vai alterando os atores que produzem e isso altera o cinema: a gente tem nesses 20 anos uma alteração e uma possibilidade de identificar o cinema mineiro como vários cinemas, isso é muito importante, faz com que a gente enriqueça o cinema mineiro.
Muitas das suas obras retratam histórias de diários ou momentos introspectivos dos personagens. Por que você optou por retratar essa faceta da vivência humana?
Acho que me atrai muito construir personagens que podem ser bons e maus, ser bons mas cometer erros. Me interessa, de alguma forma, esse lugar e eu acho que é muito delicado, pelo menos o jeito que eu olho pro mundo: eu sei que ele é cheio de lacunas, eu vejo o mundo a partir dos meus olhos e a forma que eu vejo tem a ver com quem eu sou, uma mulher branca, de classe média. Então, eu tenho meu lugar, eu vejo o mundo a partir desse lugar, mas ele não é totalitário. O mistério me instiga, eu sou movida por ele e pela vontade de descobrir outras coisas. Para descobrir você não tem que saber tudo.
Atualmente, você está trabalhando em dois longas: Canção ao longe e A Fera na Selva. Você pode nos contar um pouco sobre essas obras?
Canção ao longe já terminou e estreou no festival do Rio, vai ser exibido agora em um festival em Marrakech e no Festival de Brasília. Fera na selva ainda estou montando. Tem uma coisa que talvez você tenha identificado nos trabalhos como introspectivo, mas eu acho que todos os meus trabalhos têm uma transformação, algo em transformação, em movimento, às vezes mais ligados a esse cinema diário, cinema ensaísta e, às vezes, ligado ao cinema da paisagem, mas cada um com características particulares. De alguma forma, os filmes buscam sempre um lugar para se estar e um jeito de se transformar.
Lá no Girimunho, a Bastú começa em luto e é o acompanhar da transformação dela, dessa passagem. No Canção,é a busca de uma jovem mulher que procura o lugar dela no mundo. Começou motivado pela questão da família, o que que é a família. Eu estava grávida na época em que eu comecei a escrever, e fiquei me questionando: eu sou hétero, tenho meu companheiro, a gente está junto até hoje, já estavamos juntos há um tempo e eu engravidei. Aí eu falei: ‘cara, eu estou nesse modelo porque é um modelo ou por que eu quero?’. Na época, estava tendo aquelas enquetes no Senado sobre o que é família, é composto por um homem e uma mulher? Pode ser composto por duas mulheres? Tinham várias perguntas e eu tinha certeza que família não é só isso que eu estava construindo, existiam outras possibilidades. Eu tenho uma amiga que os pais são separados e ela se relaciona com o pai por cartas, ele mora em um país da América Latina e eles não tinham se visto desde quando ele deixou o Brasil, quando ela tinha sete anos. Aí, a partir desse desejo que eu tinha da história dessa minha amiga, eu comecei a desenvolver um argumento e um desejo de olhar um pouco para essas estruturas. Eu acho que o filme fala um pouco de raça, de classe, de gênero, a partir de um drama familiar.
Fera na selva também fala sobre transformação. Outro dia, o filho de uma amiga minha , que tem 15 anos, chamado Ian, viu o Canção ao longe e, no final , quando a menina está atrás de uma casa para morar, todos esses sentimentos vão entrando dentro dessa narrativa que é muito simples: ela está atrás de uma casa para morar. Aí esse menino de 15 anos falou para mim: “se você está até hoje falando de encontrar o seu lugar, é porque você não conseguiu fazer o filme que fale de fato disso”. E o Ian foi para o Girimunho, ele tinha três anos, ele é filho do fotógrafo, morou com a gente em São Romão por um tempo. Então, assim, ele diz que se desde o Girimunho eu estou fazendo esse rolê é porque ou isso é muito importante para mim ou porque eu ainda não disse tudo que tinha para dizer. Talvez seja isso mesmo, eu acho que é esse estado de estar confortável em um lugar e saber que você pertence a algum lugar, talvez eu não encontre ele. Então, o Fera na Selva é [sobre] uma personagem que chama Dora e ela teve a casa queimada, a mãe morreu quando ela era nova ela morava com a avó e a avó morreu também e ela sai como uma andarilha em busca de uma terra que a mãe falou que tem. Então, o filme acompanha esse perambular dessa personagem atrás de uma terra que ela acha que é dela.
Você poderia indicar outro filme para quem quer conhecer mais sobre o cinema mineiro?
Eu vou indicar o Kevin que está em cartaz. Eu montei, a Anavilhana, que é minha produtora, é co-produtora, e a Joanna Oliveira é diretora, roteirista e atriz. É um filme muito sensível sobre uma amizade entre duas mulheres e muitas coisas acontecem. Elas conversam sobre muitas questões que são muito delicadas e muito fortes para nós, mulheres, principalmente, mas é um filme que todo mundo deve ver, homens, mulheres, até para entender e trazer uma empatia para alguma questões que são femininas.
Para finalizar: como seria um dia de gravação ideal para você?
Um dia com uma equipe companheira, que a gente possa fazer as cenas com calma. Para mim, o ideal é um dia de filmagem que tem apenas uma cena para ser feita, que a gente se dedique, que a gente tenha tempo para conversar, ensaiar, se for o caso. Se o filme não requer um ensaio, que a gente converse, olhe, viva o espaço. Com uma equipe que consiga de fato se comunicar, porque eu acho que a falta de comunicação no set, falta de entendimento das questões dos outros, das dificuldades entre cada departamento, impede que a gente consiga compreender as questões do outro departamento. Muitas vezes, a gente fica sem saber ou impaciente. Acho que uma boa comunicação, um sentimento de empatia, união e tempo são os quatro elementos que fariam um set ideal. Além de abertura para o que está acontecendo na hora, acho que o tempo também traz essa tranquilidade da abertura, de não ter que fritar uma cena, conseguir observar faz com que você seja mais aberto.