Nos últimos anos, a expressão Educação Positiva tem ganhado destaque nas mídias e na sociedade. Entretanto, sua popularização trouxe desinformações e exageros acerca do tema. Filosofia utilizada ou vivida na educação parental, a proposta é estruturada em cinco pilares: apego seguro, desenho original do ser humano, ciência do desenvolvimento humano, inteligência emocional e estudos sociais. A abordagem visa romper com modelos tradicionais e autoritários de criação e educação, desafiando pais e educadores a revisitarem suas próprias vivências.
Nas mídias sociais, a filosofia se propagou amplamente, com apoio de influenciadores e mentores de parentalidade, como as criadoras de conteúdo Sammy Anjos e Fabiana Sobrinho. O termo tem sido usado até mesmo em vídeos humorísticos, que reforçam confusões sobre seu real significado. Entre maio e junho de 2024, viralizaram no TikTok vídeos de mulheres tratando seus maridos com os princípios da educação positiva, o que pode ter contribuído para o aumento das buscas no Google sobre o termo, no período.
Entretanto, conforme defende Juliana Cordeiro de Melo Franco, médica especialista em Educação Positiva e Trauma, a Educação Positiva é muito mais do que se propaga de forma simplificada; ela se fundamenta em pilares sólidos e tem como base estudiosos comprometidos com o desenvolvimento humano. “A gente diz que a infância é o chão que a gente pisa por toda a vida. Então, é muito importante que o olhar esteja centrado na criança”, afirma Juliana Franco. Em 2019, a médica e a educadora Lívia Praeiro fundaram a Escola da Educação Positiva no Brasil. As profissionais estruturaram juntas os fundamentos da filosofia, com a missão de difundir a filosofia no Brasil e formar educadoras parentais que pudessem disseminá-la.
Para Juliana Franco, o objetivo central é oferecer segurança e acolhimento desde os primeiros momentos da vida, atendendo às necessidades básicas das crianças e permitindo que se desenvolvam de forma saudável em todas as áreas – emocional, física e social.
Os cinco pilares da Educação Positiva
1) Apego Seguro
Inspirada na teoria do psicólogo e psiquiatra John Bowlby, a Educação Positiva defende que a criança precisa de uma conexão emocional estável com seus cuidadores para desenvolver confiança e segurança. Esse pilar é considerado essencial para garantir que o desenvolvimento ocorra de maneira equilibrada, visando a proteção como indispensável para o crescimento de uma criança.
A Teoria do Apego Seguro explica que as crianças estão programadas por natureza para buscar proximidade com seus cuidadores quando estão assustadas ou angustiadas. Nossa referência de apego é gabarito para nossos relacionamentos”, explica Flávia Pereira, professora e educadora parental.
2) Ciência do Desenvolvimento Humano
Esse pilar engloba conhecimentos de neurociências e ciências do trauma, ajudando a entender como o ambiente e as experiências impactam o desenvolvimento infantil. A Teoria Polivagal, por exemplo, investiga como o sistema nervoso reage ao estresse e como a corregulação emocional, oferecida pelos adultos, é vital. Lívia Praeiro, Educadora Parental em Educação Positiva, reforça a importância da preservação do cérebro infantil e de seu desenvolvimento em bem-estar. Ela destaca a importância de ambientes seguros para evitar traumas que reverberam na vida adulta. Para a educadora, um cérebro constantemente exposto ao estresse não amadurece plenamente, o que pode impactar negativamente a capacidade de autorregulação e a estabilidade emocional ao longo da vida.
3) Inteligência Emocional
A Educação Positiva ressalta que os adultos precisam desenvolver a capacidade de regular suas próprias emoções para o cuidado de uma criança. “Um adulto desregulado não consegue apoiar emocionalmente uma criança”, destaca Juliana Franco. Essa abordagem vai além das habilidades socioemocionais tradicionais, incentivando um mergulho nas próprias vivências para curar feridas emocionais não tratadas. Segundo Flávia Pereira, a inteligência emocional é adquirida ao longo da vida e depende de uma relação saudável e contínua entre cuidador e criança.
O desenvolvimento emocional do adulto é essencial para garantir que ele possa oferecer um ambiente seguro, ajudando a criança a entender e lidar com suas emoções”, explica Flávia Pereira.
4) Desenho Original do Ser Humano
Esse pilar se baseia na definição de que cada ser humano nasce com potencial inato e características únicas, que precisam ser respeitadas e acolhidas. A psicóloga e educadora parental Clarissa Bicalho Haddad utiliza uma metáfora para explicar a ideia: “Assim como cada planta tem necessidades específicas, cada criança precisa ser acompanhada de forma única, para florescer conforme seu próprio potencial”. O conceito de desenho original reforça que educar não é moldar a criança segundo as expectativas do adulto, mas dar espaço para que ela se desenvolva de acordo com suas próprias necessidades e ritmos. Ela enfatiza que compreender essas singularidades é essencial para romper com a lógica autoritária da educação tradicional e construir relações mais empáticas e respeitosas.
5) Estudos Sociais
A Educação Positiva convida pais e educadores a refletirem sobre como fatores sociais – como racismo, machismo e desigualdade – afetam a criação dos filhos. “Para os adultos, isso significa examinar e compreender como as próprias atitudes e crenças podem influenciar negativamente as crianças e perpetuar sistemas de opressão”, ressalta Flávia Pereira. Esse pilar destaca a importância de entender que a parentalidade é amplamente impactada pelas dinâmicas sociais. Dessa forma, os adultos são encorajados a reconhecerem seus próprios preconceitos e limitações para promoverem um ambiente familiar mais acolhedor.
Rompendo com modelos autoritários
A Educação Positiva se contrapõe aos métodos tradicionais de educação e disciplina, muitas vezes baseados no autoritarismo. Entretanto, a filosofia não se baseia na permissividade, mas, sim, propõe um equilíbrio entre firmeza e empatia. Para Juliana Franco, a criança só aprende respeito, sendo respeitada. Ela defende que o respeito é aprendido, não inato. “A criança, por ser mimética, vai aprender como é ser respeitada e respeitar com a sua figura de segurança, o adulto de quem ela depende para se desenvolver. Mas, para ensinar isso, o adulto precisa ressignificar o que é respeito para ele, do contrário, voltará para sua referência automática da infância”, complementa Flávia Pereira.
“Esse respeito nasce justamente por conhecermos a quantidade de potencial que esse ser já traz dentro de si e o tamanho da dependência dele, que necessita que esse adulto cuide, se aproxime, e não que simplesmente queira oprimir aquele ser e fazer com que ele se torne o que eu espero dele”, complementa Clarissa Haddad. Para ela, o papel dos pais e educadores não é impor o que querem que a criança seja, mas dar espaço para que ela descubra quem realmente é.
A Educação Positiva reconhece a criança como um ser essencialmente socioemocional, buscando desenvolver sua capacidade de autorregulação desde cedo. “A criança que tem suas emoções reguladas, que é protegida e respeitada no seu sentir, ela se torna um adulto competente para se autorregular e para regular o outro ao lado dele”, pontua Livia Praeiro. A filosofia ensina que as emoções não devem ser reprimidas, mas compreendidas e integradas, tanto pela criança, quanto pelo adulto que a acompanha. O desenvolvimento emocional equilibrado, segundo as educadoras, é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo.
Críticas e Desafios
Considerando sua crescente popularização, a Educação Positiva enfrenta resistência, especialmente pela confusão frequente entre a abordagem e a permissividade. Muitos acreditam que a filosofia se resume a permitir que a criança faça o que quiser, sem estabelecer limites. No entanto, como destaca Flávia Pereira, “não se trata de deixar a criança fazer o que quer, mas de estabelecer limites de forma empática e responsável”. Segundo as educadoras, a compreensão superficial pode distorcer o propósito da filosofia e comprometer tanto sua prática, quanto sua disseminação. Além disso, para algumas pessoas, a abordagem gera culpa em mães e cuidadores, que podem se sentir pressionados a serem perfeitos. Clarissa Haddad define que a ideia não é que os pais se sintam culpados, mas que transformem a sensação em autorresponsabilidade.
Nas mídias sociais, a Educação Positiva ganhou visibilidade e se tornou mais acessível ao público geral. “Por um lado, isso é positivo, porque democratiza a informação. Não é mais difícil você saber sobre isso. Por outro lado, há a questão de que as pessoas têm buscado cada vez mais consumir uma informação de forma rápida e, muitas vezes, essa superficialidade não é de fato o que é a Educação Positiva”, analisa Juliana Franco. O formato rápido e dinâmico das mídias sociais muitas vezes não permite uma compreensão profunda das bases da filosofia, fator que pode gerar frustrações e críticas por parte de quem tenta aplicá-la de maneira superficial.
Uma Filosofia em construção
Para as educadoras, a Educação Positiva é uma prática que deve ser vivenciada, e não apenas aplicada de forma mecânica. Para Lívia Praeiro, não se trata de uma técnica ou método, mas de uma filosofia, que exige uma mudança de perspectiva. A transformação começa com a autoeducação dos adultos, que precisam revisitar suas próprias experiências para construir novas formas de se relacionar com as crianças. Mais do que uma abordagem educacional, a Educação Positiva pode ser considerada uma revolução nas relações humanas, tendo como base a empatia, o respeito e a dignidade.
A nossa missão sempre foi trazer a perspectiva da criança, sobre todas as situações. O adulto conta uma história que ele viveu na infância, que é apenas uma história contada. Agora, o que a criança que ele foi um dia sentiu de verdade, é o que a gente traz. Com os estudos, a gente traz a perspectiva da criança, não a história contada. Então, quando a gente se depara com a verdade, começa o processo de cura”, defende Juliana Franco.
Os desafios e a prática da Educação Positiva no cotidiano
Adotar a Educação Positiva pode trazer desafios significativos para pais e cuidadores que estão acostumados com métodos tradicionais. Bruna Garrossino, educadora parental especialista em infância e adolescência, considera que uma das maiores dificuldades seja quebrar padrões automáticos de comportamento, reflexos de vivências passadas. “O maior desafio é sair do padrão do reagir e reproduzir exatamente o que eu tive, porque mesmo com todo o conhecimento e desejo de não repetir o que recebi, é fácil seguir no impulso e voltar ao que foi gravado em mim”, conta.
As críticas externas, especialmente de pessoas que não compreendem a abordagem, se fazem presente na vida de pais e educadores que utilizam o método. “Quando decidimos acompanhar e acolher a intensidade emocional de uma criança sem punir, é comum recebermos olhares críticos e julgadores, porque a sociedade ainda acredita que a criança precisa ser corrigida a todo momento”, reflete Bruna Garrossino. A capacidade de sustentar a filosofia em meio a julgamentos exige uma autonomia dos pais sobre as próprias escolhas.
Bruna ressalta, também, a dificuldade de estabelecer limites sem recorrer a punições. Para ela, o segredo está na construção de “margens” claras, que permitam diálogo e compreensão por parte da criança. “Não se trata de impor um limite, mas de construir margens explicando e justificando os porquês, de forma empática e clara”, complementa. Ela exemplifica o processo ao explicar como lidou com o uso excessivo de telas por seu filho. “Quando mudei nossa relação com a TV, deixei claro que meu limite era não permitir o uso prolongado porque entendi o quanto fazia mal para ele. Construímos juntos uma margem saudável, sem autoritarismo, mas com segurança”. Segundo a educadora parental, equilibrar as necessidades da criança e as demandas da rotina é uma tarefa complexa, que exige a compreensão de que as crianças são mais dependentes dos adultos. “Eu preciso entender que meu filho pode participar do meu autocuidado, e muitas vezes, ao cuidar dele, também cuido de mim”, explica Bruna.
Esse processo exige vulnerabilidade e conexão, mas também proporciona um crescimento profundo, tanto para as crianças quanto para os adultos”, conta Bruna Garrossino.
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