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Empreendedorismo: pessoas trans enfrentam desafios além da esfera empresarial

Para empreender, pessoas trans enfrentam falta de acesso à educação, estigmas no mercado de trabalho tradicional e estatísticas de violência

“Ser uma mulher trans dona de um salão, uma pessoa que morava na rua, e conseguir esbravejar, correr atrás, lutar e conquistar aquilo que quer de fato, sem precisar passar pelo padrão imposto pela sociedade, não é algo muito fácil, mas é possível”, afirma, com veemência, Leonora Rosa. Sem acesso à formação, lutando contra estigmas no mercado de trabalho tradicional e estatísticas de violência, a trajetória da empreendedora mineira de 34 anos espelha as dificuldades que pessoas trans enfrentam para abrir o próprio negócio. Para encarar esses desafios e aqueles ligados à esfera empresarial, iniciativas de organizações independentes e empresas fazem a diferença.

Dona do Leo Rosa Studio, localizado na Região Oeste de BH, Leonora trabalha com cabelos desde os 14 anos, quando morava em Santa Bárbara, na Região Central de Minas. Apesar da vocação para a área da beleza, quando jovem, ela decidiu seguir outro caminho porque o trabalho de cabeleireira não tinha bom retorno financeiro na cidade natal. Buscando mais, Leo, como é chamada por amigos e clientes, veio para a capital mineira em 2016.

Em BH, a ideia de Leonora era procurar um emprego na função técnica de saúde e segurança do trabalho, área em que atuava. No entanto, enfrentou dificuldades para ser contratada por ainda não ter adotado o nome social. “Quando eu ia nas entrevista, eles liam meu currículo e esperavam chegar ali um rapaz, que teve aquelas funções que estão descritas, só que chegava uma mulher. Era muito complicado para mim. Já vinham os julgamentos com os olhares”, relembra a cabeleireira.

No âmbito do empreendedorismo, pessoas trans e travestis podem usar o nome social ao se formalizarem como Microempreendedores Individuais (MEI), assim como alterá-lo, caso já sejam cadastradas. Esse direito foi garantido pelo Decreto Nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Para acessá-lo, é preciso que o nome social do futuro microempreendedor já esteja registrado na Receita Federal no Cadastro de Pessoa Física (CPF).

De volta aos salões

Na cidade grande, Leo conta que viveu na rua por dois dias até ir para a casa de uma amiga. A empreendedora também conta que enfrentou obstáculos por ser negra. Como não conseguiu vagas na área que queria, em meados de 2017, Leo voltou a trabalhar com beleza.

Crédito: Laura Scardua

Antes de empreender, a cabeleireira trabalhou por cerca de um ano como empregada de um salão, cuja dona mudou de cidade e arrendou o negócio para Leonora e outra sócia. Enquanto administrava o espaço cedido, a perspectiva de abrir o próprio negócio despertou nela sonhos para o futuro. “Eu pagava um valor alto [do arrendamento], em um espaço que não valia tanto, uma mobília que não valia tanto. A matéria prima já era minha, eu mesma que tinha que comprar e a mão de obra era minha, baseada nos meus conhecimentos”, relembra.

Os planos de Leonora saíram do papel cerca de um ano depois que ela assumiu o arrendamento. Não ter formação na área de administração e finanças não foi um impedimento para a cabeleireira, mas tornou a jornada mais desafiadora. “Eu tive experiência na vida mesmo, de não deixar faltar, de priorizar mais a matéria-prima e a infraestrutura e depois o benefício próprio. A minha infância não foi muito fácil, a minha adolescência e juventude também não, então eu acredito que foram experiências da vida mesmo. Eu não estudei para isso. Ainda pretendo estudar para melhorar nessa parte de gestão”, conta Leo.

Naquela época, trabalhar em um salão era a segunda alternativa para Leo. Hoje, dona do próprio negócio desde 2021, o espaço de beleza representa o fruto de muito trabalho e o cenário de grandes sonhos. Quando conta sua jornada, Leonora diz que não vê necessidade de se dizer mulher trans, mas o faz porque entende a relevância.

“É importante no mundo que a gente vive hoje, que eu, mulher empreendedora, fale que sou uma mulher trans para mostrar para a sociedade e para ser inserida”

Com planos de estudar e se especializar na área empresarial para expandir o negócio, Leo não deixa as inseguranças a paralisarem. “Diante de tudo que eu já passei na minha vida, eu posso falar que hoje eu não tenho medo de nada”, afirma, com veemência.

Coragem

O medo também não paralisou Brenno Matheus Costa Batista, de 28 anos, homem trans e dono da própria gráfica de produtos personalizados na capital mineira. Aos 19 anos, ele saiu do Pará com a vontade de abrir a própria empresa. À época, o pai, com quem ele morava, já tinha uma gráfica, mas Brenno não se contentou. Ele tinha o sonho de abrir o próprio negócio.

Do estado nortista, ele foi para Goiânia, onde começou do zero, trabalhando para outras pessoas e fazendo planos para comprar as próprias máquinas. Brenno enfrentou diversos obstáculos, entre eles, a pandemia, quando precisou entregar o ponto de comércio que tinha acabado de arrumar. Enfrentou também um problema de saúde, que o fez vir para Belo Horizonte, onde a irmã mora.

Na capital mineira, trabalhou por um tempo como ferragista e, há cerca de um ano, conseguiu comprar o material necessário para abrir a própria empresa de personalizados. Até então, Brenno atuava apenas com vendas online, e seu espaço de produção era na casa da irmã. Desde o dia 11 de maio de 2025, no entanto, o paraense se prepara para inaugurar o ponto físico do Ateliê 2B Personalizados na Pampulha.

Um dos medos que teve antes de abrir a própria loja em espaço físico foi de não ser respeitado por ser uma pessoa trans. “No início, quando vamos fazer a parte da transição, a gente fica com receio de clientes não quererem fechar serviço pelo fato de eu ser um homem trans, de cliente chegar e maltratar a gente”, conta Brenno.

No entanto, isso não o fez desistir de realizar seu sonho. “O medo todo tempo você vai ter. Você vai ter medo de arriscar e não dar certo, mas na minha história, eu já caí várias vezes e levantei várias vezes”, afirma.

Formação profissional

Assim como Leonora, o paraense não teve formação na área de gestão de empresas ou mesmo de design para fazer os produtos personalizados. Brenno conta que foi adquirindo experiência ao trabalhar ou sozinho pela internet, como fez no Pará. A falta de profissionalização na área empresarial também não o impediu. Atualmente, ele reconhece que tem dificuldade, mas recebe ajuda da irmã e do cunhado, que é formado em Administração.

A não formação de pessoas trans no ensino superior não é um caso isolado, como o de Leonora ou Brenno, mas a realidade no Brasil. Apesar da presença da comunidade na área da educação ser pouco contemplada por pesquisas e dados, diversas organizações voltadas para pessoas trans discutem sobre esse tema. Entre elas, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que atesta a dificuldade que a comunidade trans/travesti tem no acesso à educação, inclusive a nível básico, o que muitas vezes impede que cheguem às universidades.

Em 2024, a Associação publicou uma nota técnica sobre Políticas de Ações Afirmativas para Pessoas Trans e Travestis na educação superior. O documento estima que menos de 0,3% da comunidade está inserida nesse nível de ensino. “Esse cenário reflete a falta de políticas educacionais inclusivas e de acolhimento nas universidades brasileiras, que frequentemente se mostram ambientes hostis e excludentes”, afirma a Antra.

Dados levantados pela Rede Trans Brasil demonstraram que de 1.122 mulheres trans/travestis entrevistadas, 63,9% não tinham ensino médio completo e 34,7% não chegaram a sequer concluir o ensino fundamental. Os números foram apresentados no Dossiê: Registro nacional de mortes de pessoas trans no Brasil em 2024: da expectativa de morte a um olhar para a presença viva de estudantes trans na educação básica brasileira, lançado neste ano. O documento é de autoria de Sayonara Naider Bonfim Nogueira e Tathiane Aquino Araújo.

Nos palcos

Evellyn Loren, de 39 anos, é uma mulher trans e empreendedora. De noite, promove eventos culturais com artistas LGBTQIAPN+ nos palcos e baladas da capital mineira. Na cena artística há 20 anos, ela é responsável por criar e organizar espetáculos como o Drag Glamour Minas Gerais e o Miss Trans BH.

Além de produtora, Evellyn tem a persona Drag Color, que ela descreve como “mais exagerada, colorida, que leva alegria para as pessoas.” De dia, vende salada de frutas na área hospitalar para complementar a renda. Antes, tinha um bar que misturava comes e bebes com entretenimento.

Crédito: arquivo pessoal

Na hora de procurar um espaço para sediar os espetáculos, especialmente os que têm mulheres trans como protagonistas, Evellyn conta que enfrenta preconceitos, até mesmo de espaços voltados para a comunidade LGBTQIAPN+. “A imagem da mulher trans é sempre julgada pela prostituição, pela vulgaridade. Isso atrapalha muito a gente. A sociedade às vezes não enxerga uma mulher trans como trabalhadora, à frente de um balcão de uma padaria, de um supermercado, é sempre na prostituição. Falam que as mulheres trans não trabalham, mas elas não têm oportunidade”, afirma Evellyn Loren.

Ela destaca ainda que quando essa parcela da comunidade consegue um emprego formal, elas são designadas para cargos em que fiquem escondidas do público, nunca à frente. Ao promover eventos protagonizados por pessoas trans, Evellyn faz justamente o contrário: dá oportunidade para que pessoas da comunidade fiquem sob os holofotes do palco, e não atrás das coxias, como a sociedade impõem a elas.

Contra as estatísticas

Quando sua idade é questionada, Evellyn responde: “Faço 40 agora em junho” — e já adiciona: “A gente sabe que completar uma idade como essa no nosso país é raro porque a maioria das pessoas trans acabam tendo suas vidas tiradas”.

Para pessoas dessa comunidade, muitas vezes o que as impede de adentrar o mercado de trabalho é que elas têm a vida ceifada antes. De acordo com o Trans Murder Monitoring lançado no ano passado, 106 pessoas trans foram assassinadas no Brasil entre 1º de outubro de 2023 e 30 de setembro de 2024. Esse dado indica que dos homicídios a nível mundial — 350 ao todo — 30% foram no Brasil, o país que mais matou pessoas trans.

“A longevidade é um tema urgente que precisa ser debatido entre a comunidade trans, pois a expectativa de vida da população trans ainda é subrepresentada nas estatísticas oficiais e, portanto, não podemos afirmar que a expectativa de vida uma pessoa trans na nossa região é de 35 anos, ao contrário do que é amplamente divulgado”, atesta a Rede Trans Brasil no dossiê publicado neste ano.

Apoio e incentivo

Diante dos inúmeros desafios a serem enfrentados pelas pessoas trans, há iniciativas de organizações independentes e empresas para ajudar na trajetória educativa e profissional dessa comunidade. Entre elas, está o EducaTRANSforma, projeto que oferece capacitação gratuita na área de tecnologia, gestão e inovação para pessoas trans.

Fundado por Noah Scheffel, a iniciativa oferece 7 trilhas de aprendizagem, cada uma com um enfoque específico, como marketing e ciência de dados. A pessoa interessada deve escolher qual caminho seguir. O ensino dura 6 meses e é realizado online. Durante o processo, os alunos recebem mentoria e suporte.

Além disso, o EducaTRANSforma atua como uma ponte entre os alunos e empresas parceiras, de modo a incentivar a contratação. O projeto também oferece o serviço de consultoria para negócios, que visa garantir que o espaço empresarial seja capacitado para questões ligadas à diversidade e inclusão de grupos minoritários.


Com foco na empregabilidade, há também a iniciativa TransEmpregos, que tem banco de vagas e currículos para fazer a conexão entre pessoas trans do Brasil e empresas. O projeto existe desde 2013 e opera de maneira gratuita. Atualmente, conta com 2.559 negócios parceiros. Em 2024, a TransEmpregos teve 25.915 usuários, 1.817 oportunidades postadas e 1.062 profissionais empregados. Além disso, o projeto tem parcerias com outras iniciativas para oferecer cursos de formação às pessoas trans.

Laura Scardua

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