Indústria do empreendedorismo de palco ignora problemas coletivos e frustrações no meio
Só em 2020, de acordo com o Mapa de Empresas do Portal do Empreendedor, o Brasil registrou cerca de 2,6 milhões de novos MEIs (Microempreendedores Individuais). Ao mesmo tempo, o IBGE afirma que o país manteve sua posição de nonagésimo mais desigual do mundo. Entre esses fenômenos, alguns CEOs, donos de startups e coaches insistem em falsas promessas e prosperidade instantânea.
Ignorando aspectos socioeconômicos e neurológicos, essas máximas dão enredo ao empreendedorismo de palco, termo usado para descrever palestras, seminários e conteúdos de autoajuda que utilizam técnicas quase puramente emocionais para motivar os ouvintes. Muitas vezes, essas estratégias se baseiam em clichês como “quem acredita, alcança”.
Criador do termo “empreendedorismo de palco”, Ícaro de Carvalho é um comunicador, estrategista digital e empreendedor. Ele fundou a empresa O Novo Mercado, uma escola online de marketing digital. Crítico das receitas infalíveis e discursos prontos, o empresário acredita no compartilhamento de conceitos e estatísticas validados pelo empreendedorismo na prática.
Quem empreende?
Com o boom do empreendedorismo, muitas pessoas passaram de funcionários a empreendedores, inclusive, entregadores de aplicativos. Pelo menos é o que afirmam CEOs das empresas que gerenciam esses apps.
Mas Tirza Drumond, ex-entregadora de aplicativos e ex-candidata a vereadora em Porto Alegre pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), afirma que esse discurso não olha para as classes mais vulneráveis da sociedade, além de gerar falsa expectativa no trabalhador.
Tirza, que trabalhou para a Rappi e para o iFood, explica que questões como classe e renda influenciam até mesmo na nutrição de alguns moradores de regiões periféricas: “Muitas pessoas do Brasil hoje não têm acesso a uma alimentação variada. O que ocorre é a culpabilização e responsabilização do indivíduo sobre todas as questões da vida. Ignorando que, na verdade, existe uma estrutura [renda] que separa oportunidades e separa indivíduos uns dos outros. Mas é justamente essa a intenção, né? Que os indivíduos ignorem que eles estão inseridos num contexto muito mais amplo” – expõe.
Créditos: Bruno Duluoz
Adriano Campos e José Soeiro, de Portugal, doutores em sociologia pela Universidade de Coimbra Faculdade de Economia, também seguem esse raciocínio. Em obra de co-autoria, “A falácia do empreendedorismo”, eles analisam a indústria do empreendedorismo de palco à luz do coletivo. No livro assinado pelos portugueses, eles defendem que é preciso desconfiar dessas respostas simplistas ou individualistas para problemas que são comunitários – como o desemprego e a miséria.
Flexibilidade é mito
Ser um trabalhador autônomo pode ser muito atraente para algumas pessoas: horários flexíveis, sem vínculo empregatício, ser seu “próprio patrão.” É isso que os aplicativos de delivery tentam vender aos funcionários quando os chamam de “entregadores parceiros”.
A ex-entregadora Tirza afirma que quando começou a trabalhar para os apps, já não tinha esse pensamento. Entretanto, observou uma quebra de expectativa com alguns colegas de trabalho. Ela afirma que muitos dos funcionários que entravam na área acreditavam que teriam uma flexibilidade muito maior.
Mas tu não tem flexibilidade, porque não existe flexibilidade nas contas, no que tu tem que pagar no final do mês, não existe flexibilidade no que tu tem que comer ou nas pessoas que tu tem que alimentar na tua casa. Então, tu tem uma meta pra cumprir, e quem coloca essa meta são as suas contas, o tanto de dinheiro que tu precisa pra sobreviver. E como os valores que tu recebe por corrida são baixíssimos, tu tem que trabalhar muitas horas! Mais de 16 horas por dia. Quem entrava com essa ideia de que era empreendedor, logo quebrava, alega.
Tirza Drumond
Para entender mais sobre as condições de trabalho nesses aplicativos, assista:
Saúde mental é obstáculo
Além das questões de renda, o bem-estar psicológico merece um olhar atento. Sabendo disso e dos problemas que envolvem o psicológico dos brasileiros, a autora e coach Aline Cavalcante adota uma linha diferente do que estamos acostumados em seu trabalho. Coach profissional pela Abracoaching, formada em Treinamento e Desenvolvimento pela Harvard Business Review e graduanda em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ela confessa acreditar cada vez mais na importância de se ter um conhecimento na área para tratar do comportamento humano – como psicologia ou psiquiatria.
Às vezes, chega uma demanda que parece ser diferente do que realmente é. A princípio, assumo que o coachee tem um problema de planejamento de carreira, mas depois entendo que na verdade, não é por falta de tentativa, de ferramenta ou de instrução. Mas um processo depressivo, ou algum outro obstáculo relacionado à saúde mental. E meu papel como coach não é trabalhar isso.
Aline Cavalcante
Ao longo da entrevista, a pernambucana lamenta o fato de muitos profissionais deixarem de lado a reflexão crítica pelo próprio desespero financeiro, fazendo intervenções que prejudicam o processo do cliente. Em vez disso, Aline destaca que a postura correta é o encaminhamento a um profissional de saúde mental.
O equilíbrio entre motivação e técnica
Devido a sua experiência na área, Aline declara que palestras motivacionais são as mais assistidas pelo público. Ela acredita que esses seminários são interessantes, mas para fins específicos. “Se você tem uma equipe que está desmotivada, ela é importante para dar um gás inicial, mas depois disso, tem que haver um plano de ação. Caso contrário, vai ser somente um ‘fogo de palha’. Vai instigar as pessoas, mas não vai ter propósito.”
Apesar de também acreditar na importância das competências do ser, como a autoestima, o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP) também defende a necessidade de outras atribuições nos empreendedores. Sendo uma delas, o saber cognitivo, que engloba o conhecimento científico, técnico, tecnológico e geral.
A coach compara a situação à política do pão e vinho. Nesse caso, o pão é o conceito e o vinho é a motivação. “Se for só pão, a pessoa vai engolir seco! Vai ser duro. E se for só vinho, a pessoa vai sair embriagada, sem entender muita coisa. Mas o equilíbrio dos dois cria um efeito interessante, a pessoa sai consciente e satisfeita”, conta Aline.
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