Do primeiro filme de língua estrangeira a ganhar um Oscar por melhor filme, em fevereiro deste ano com “Parasita” de Bong Joon-ho, ao primeiro grupo de k-pop a ser indicado em uma das principais categorias musicais do Grammy de 2021, o BTS. Não há mais dúvidas que a cultura sul-coreana, ou melhor, a Hallyu, ou “onda coreana”, chegou para ficar no ocidente. Seja pela música, filmes, seriados ou literatura, a arte do país asiático é cada vez mais apreciada ao redor do globo e no Brasil não seria diferente.
Por aqui, a curiosidade pela cultura sul-coreana provocou um aumento na busca de aulas do idioma, bem como procura por produtos exportados da Coreia do Sul, principalmente alimentícios e de cuidados para pele – a indústria de beleza do país é uma das mais populares do mundo, movimento conhecido como K-beauty.
Foi percebendo esse interesse que Dinah Kim teve a ideia de inaugurar a loja online Made in Korea Minas. Há três anos, a comerciante decidiu largar a veterinária para se dedicar totalmente ao negócio, que tem a surpreendido com o crescimento acelerado.
Brasileira, filha de coreanos, Dinah Kim cresceu em contato com a cultura e apaixonada pelos costumes do povo oriental. Para ela o entusiasmo dos brasileiros pelos hábitos coreanos é maravilhoso, mas conta que já sofreu preconceito e escutava perguntas inconvenientes de pessoas que confundiam a cultura coreana com a chinesa ou japonesa.
“Uma das perguntas que mais faziam para mim, que eu não gostava de ouvir, era ‘você gosta de barata, você come rato, grilo?’ e eu falo ‘não gente, isso é da cultura chinesa, não tem nada a ver com a gente’. Então, o bom é que o pessoal que chega para mim como cliente, que consome a cultura coreana através do K-pop, K-drama, eles já sabem que é totalmente diferente”.
Fenômenos da cultura sul-coreana
Segundo Dinah, o que auxiliou nesse crescimento súbito da Hallyu foi o sucesso do grupo BTS. Os produtos personalizados com os integrantes esgotam rapidamente: “Tudo que é relacionado ao BTS tem um boom de vendas”. Ela também observa que o ganhador do Oscar, Parasita, contribuiu para aumentar essa curiosidade. “O filme alcançou muita gente que não iria alcançar só com os K-dramas ou só com a música”.
De acordo com Dinah, o público, em sua maioria, são meninas de 10 a 35 anos, mas, basicamente, crianças e adolescentes. O mesmo acontece com a Oma Kimchi, especializada em comida coreana em Belo Horizonte. Vivi, filha da dona do restaurante virtual, aponta que o interesse das mulheres pelos dramas coreanos as fazem ter curiosidade em experimentar as comidas, e dessa forma, as vendas têm aumentado a cada dia.
Além do Kimchi, um dos condimentos mais típicos da culinária coreana, a Oma vende “mandu, buchimgae, tonkatsu e o jjajang”. Os K-dramas sempre retratam como o momento da refeição é também uma importante demonstração de afeto entre as pessoas. Vivi identifica que “os coreanos têm mais respeito pelo alimento e pelas pessoas que estão comendo junto. Acredito que isso tem relação com a história do país, que sofreu muito na época da guerra e, por isso, valorizam mais o alimento do prato”.
Por dentro da Hallyu
Laura Alvares e Ana Paula Cejas são adolescentes, estudantes e ambas se encantaram pela cultura coreana recentemente. O que mais as atrai são as produções cinematográficas, que foram essenciais para a expansão da Hallyu nas últimas décadas.
Segundo Ana Paula, assim como grande parte dos ocidentais, antes de a conhecer mais a fundo, ela possuía preconceito com a onda coreana: “Eu sinto que com o primeiro contato as pessoas pensam, e eu incluída, que a cultura coreana é somente música e dramas. Mas, como qualquer outra cultura, ela possui diferentes aspectos: uma literatura riquíssima, moda muito influente, culinária diversa, tecnologia de ponta, um mercado de beleza diverso, entre outros”.
Por meio dessa busca para entender mais de uma cultura tão distinta da qual foi criada, Ana Paula descobriu valores e princípios os quais admira e se espelha; como o respeito aos mais velhos e relações interpessoais que não são baseadas no lado sexual.
“Para mim, como uma jovem cristã, a principal diferença que eu posso pontuar é o respeito. As relações coreanas se pautam muito no respeito ao que o outro sente, e respeito pelo espaço pessoal do outro. Tanto em relações amorosas como amizades”, afirma.
Para Laura Alvares, uma questão que tem feito os indivíduos consumirem a cultura coreana é terem descoberto algo diferente da norte-americana, uma vez que essa determina moda, cinema, literatura e música em grande parte do mundo. Valores fortemente influenciados pela cultura da tradição é o que, para Laura, mais atrai os fãs da onda coreana no Brasil.
Segundo ela, o quanto os coreanos prezam pela formalidade e hierarquia fica evidente em falas e atitudes, visto que a entonação ao falar e a forma de usar ironia são, para ela, um dos pontos mais diferentes das culturas ocidentais e que fica claro o quanto o idioma é influenciado pelos hábitos hierárquicos: “uma pessoa só conversa informalmente com outra se elas forem amigas ou se lhe for concedido permissão”.
Ana Paula também entende que a Hallyu tem crescido por ser voltada ao consumo de produtos que prezam pelo leve, puro e tranquilo. A estudante argentina procurava músicas e produções midiáticas que não fossem focadas em sexo, luxúria e consumo, e para ela muitos brasileiros têm o mesmo interesse. Além disso, ela tem se empenhado em aprender receitas e o idioma coreano, que ainda entende pouco, mas pretende aprimorar cada vez mais.
Do português ao coreano
Além do consumo de produtos coreanos, a Hallyu também despertou um grande interesse do público pela cultura, incluindo a língua nativa. Seja pelo consumo de K-dramas, pelo interesse em bandas de K-pop ou pela Coreia estar se tornando um destino de viagem muito desejado entre os brasileiros, a busca por aulas de coreano vem aumentando cada vez mais.
A língua coreana possui um alfabeto próprio, que é conhecido como Hangul. Independente de ser preciso aprender não só um novo alfabeto mas também pronúncias e palavras completamente diferentes do português, isso não impede os brasileiros de buscarem por aulas.
A estudante e professora Clarice Lee, de 22 anos, tem cinco anos de experiência como professora de coreano e conta que a grande maioria — cerca de 80% — de seus alunos são mulheres universitárias, apesar de já ter tido alunos entre 12 a 55 anos.
A mineira, que tem descendência coreana, é familiarizada com a língua desde criança por causa de seus pais, e começou a dar aulas em 2015 em Belo Horizonte. Agora, mesmo que não ensine com tanta frequência por falta de tempo, Clarice conta que a procura por aulas ainda é bastante frequente.
Do oriente ao ocidente
Apesar das conquistas recentes na cena cultural norte-americana, a Hallyu se estende por décadas. O termo foi cunhado há 20 anos na China, onde os programas coreanos já estavam conquistando o grande público.
Virgine Borges, historiadora, pedagoga e pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e editora de conteúdo do BrasilKorea, entende que a adesão dos países vizinhos à onda coreana, principalmente China e Japão, se deu pela “similaridade cultural, baseada no confucionismo”, filosofia que valoriza as bases familiares e hierárquicas da sociedade.
Já no Brasil, Virgine observa que em meados da década de 2000, o interesse pela cultura pop japonesa influenciou a abertura e conhecimento dos brasileiros para a onda coreana. “Eu me lembro que em 2006, muitas rádios nikkeis brasileiras transmitiam (em suas programações) músicas que estavam fazendo no Japão e muitas dessas músicas eram coreanas. Como exemplo, a cantora sul- coreana BoA com a canção “Every Heart” – um dos temas do anime InuYasha e o grupo K.I.S.S. com a canção ‘Because I’m a Girl’”, explica.
Para a professora Clarice, que sempre teve contato com a cultura coreana, a expansão da Hallyu no Brasil também começou devagar e com o passar dos anos tomou uma proporção inimaginável. “Eu sinto que a Hallyu no Brasil teve fases diferentes. Nos meados de 2009 e 2010, grupos como Girls Generation e Super Junior faziam um pouco de sucesso aqui, mas isso era considerado uma ‘coisa de nerd’. Acho que as pessoas discriminavam ainda mais esse tipo de consumo nessa época”, conta Clarice.
Ambas identificam que o marco da Hallyu no Brasil, e no mundo, foi o fenômeno musical Gangnam Style, do cantor e produtor PSY. “Claro, antes desse ‘boom’ já existiam muitos fãs dessa onda, porém foi com o PSY que as pessoas passaram a notar a música pop coreana”, observa Virgine. “Hoje em dia você pode até não saber do que se trata K-pop, mas há grandes chances de você reconhecer alguma música do BTS ou do BLACKPINK, por exemplo”, diz Clarice. E, a passagem do interesse musical para os seriados pode ser atribuída, principalmente, à inclusão dos K-dramas na plataforma da Netflix.”O Rei: Monarca Eterno” foi o drama coreano mais assistido na plataforma, no primeiro semestre de 2020.
É bastante nítida a influência da Hallyu não só na cultura como na economia, tanto da Coreia quanto do Brasil. Clarice explica que “a Coreia é um país pequeno, e apesar de não ter muitos recursos naturais próprios, ela teve um crescimento econômico muito rápido. Então, eu acho que a Hallyu veio da forma que veio para servir de instrumento de sobrevivência para o país”.
Virgine analisa que apesar do sucesso avassalador, a Hallyu pode aumentar ainda mais e alcançar novos marcos no Brasil. “Nós ainda não assistimos os K-dramas sendo transmitidos nas grandes emissoras de televisão do Brasil, diferentemente de outros países da América do Sul. Então, acho que ainda falta espaços para ocupar e penso que enquanto existir esses espaços, a onda ainda não atingiu seu ápice”.
Cultura sul-coreana: nossos entrevistados recomendam
Literatura:
- “Nossas horas felizes” de Gong Ji-young
Cinema
- “Invasão Zumbi” e “Invasão Zumbi 2: península”, dirigido por Yeon Sang-ho
- “O Hospedeiro”, dirigido por Bong Joon-ho
Música
- Quarteto: Kard
- CL: 5 STAR
- BTS: Blue and Grey
K-drama
- You’re Beautiful
- Itaewon Class
- Hyori’s Bed & Breakfast
Reportagem produzida por Letícia Mattos, Pamella Tomich e Rebeca de Castro para a disciplina Jornalismo Cultural no semestre 2020/2.
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