O futebol brasileiro é reconhecido no mundo pela paixão das arquibancadas e pela qualidade técnica de seus jogadores. Mas há um adversário que insiste em complicar o espetáculo: o calendário. Com muitos campeonatos sobrepostos, viagens exaustivas e pouco tempo de descanso, a organização da temporada no Brasil é alvo de críticas há décadas.
Visando otimizar o calendário e beneficiar os clubes, a CBF anunciou em 1º de outubro as mudanças que serão implementadas em 2026. Presidente da entidade máxima do futebol brasileiro, Samir Xaud afirmou que “O processo de elaboração do novo calendário foi amplamente debatido. A CBF ouviu clubes, federações, representantes do mercado e contou com a colaboração de diversas áreas internas”. Além disso, Xaud disse que 2026 será um ano de transição e que essas mudanças são o primeiro passo para as melhorias que ele planeja para o futebol no país.
O Brasil é um dos poucos países que mantém os campeonatos estaduais como prioridade no início da temporada. Embora carreguem histórias centenárias, rivalidades locais e enorme valor cultural, os estaduais alongam o calendário e, muitas vezes, ocupam espaço que poderia ser destinado ao descanso ou à preparação dos atletas. O Atlético Mineiro, por exemplo, disputou 73 jogos em 2024. Com os 19 do Brasileirão, os 10 da Copa do Brasil, os 12 do campeonato mineiro e os 13 da Libertadores, o clube chegou na final de todas as competições que disputou, tendo jogado praticamente todos os jogos que um time braileiro pode jogar em uma temporada.
Gustavo Scarpa, camisa 10 do Atlético, entrou em campo 65 vezes. O atleta atuou mais vezes do que a grande maioria dos times europeus. No mesmo período, por exemplo, Barcelona e Manchester City não passaram dos 60 jogos.

Calendário é o principal adversário
A sobrecarga afeta a competitividade dos clubes brasileiros fora do país. Times que chegam às fases decisivas da Copa Libertadores ou Sul-Americana frequentemente sofrem com viagens longas e pouco tempo de recuperação. Outro exemplo recente foi o do Palmeiras em 2023, que enfrentou uma sequência de nove jogos em 28 dias, incluindo Libertadores, Brasileirão e Copa do Brasil. Em coletiva, o treinador Abel Ferreira externou seu pensamento: para ele, “a verdadeira final não é em campo, mas contra o calendário”.
Em entrevistas recentes, o técnico Fernando Diniz, na época treinador do Fluminense, reclamou em coletiva após derrota contra o The Strongest, e classificou a rotina como “desumana”, enquanto atletas como Gabigol e Hulk já destacaram a dificuldade de conciliar treinos de alto nível com a maratona de jogos. Para os clubes, o dilema é duplo: de um lado, há a pressão das federações estaduais e da televisão para manter os campeonatos; de outro, a necessidade de priorizar competições nacionais e internacionais mais rentáveis.
Ex-treinador da Seleção brasileira e de grandes times do futebol nacional, Tite falou sobre suas dificuldades com o calendário do futebol brasileiro em 2023, enquanto treinava o Flamengo: “Foram 76 jogos. Você sabe quantos jogos com intervalo de dois dias essa equipe jogou? Trinta e cinco jogos. Falando como professor de educação física, é impossível. Tem que ter um calendário melhor. Não é só para o Flamengo. É para o São Paulo, é para o Fluminense…” Ainda na entrevista após o jogo contra o São Paulo pela 38ª rodada do Brasileirão, finalizou: “O técnico ganha muito, mas teve dia que eu não dormi. Foram três jogos em seis dias”.

Maratona de jogos é pauta internacional
Contestações ao calendário são frequentes ao redor do mundo, mas é no Brasil que os números justificam a reclamação. O técnico Enzo Maresca, comandante do Chelsea, da Inglaterra, virou pauta ao declarar em entrevista coletiva que sua equipe teria chegado ao Mundial mais cansada do que os clubes da América do Sul, por conta da quantidade de jogos: “Nós jogamos 63 partidas. As equipes europeias chegam nesta competição de maneira diferente das equipes brasileiras e sul-americanas pela quantidade de partidas que temos jogado. Mas a gana que temos de ganhar é a mesma que vocês têm. Só que são condições diferentes”.
Maresca ainda encerrou a fala questionando um repórter brasileiro: “Nós chegamos aqui depois de jogar 60 partidas, e vocês depois de terem jogado quantas?” O repórter prontamente respondeu que o Fluminense havia jogado mais, deixando o italiano sem palavras: “70 no mesmo período. São mais partidas.” Em 2024, 20 clubes brasileiros estiveram entre os 21 que mais disputaram partidas oficiais, dado que escancara os problemas e justifica o cansaço e os altos números de lesões musculares no Brasil.

Lesões musculares virando rotina
Um estudo da revista PPC apontou que aproximadamente 45% das lesões sofridas por atletas no futebol brasileiro são musculares. Um levantamento do site NetVasco mostra que os clubes da Série A do campeonato Brasileiro sofreram com 721 baixas de atletas ao longo do ano. Com um cálculo simples, é possível concluir que aproximadamente 326 jogadores ficaram fora dos gramados por lesões musculares em 2024. O número não é exato, mas mostra que o calendário do futebol no país expõe seus atletas a um risco de lesão devido ao ritmo frenético de partidas a cada 3 ou 4 dias.
A título de comparação, algumas das principais ligas europeias apresentam, em média, entre 50 e 100 casos de lesões musculares a menos do que o Brasileirão na última temporada. Um estudo do jornal Plos mostra que a La Liga registrou 270 casos de lesão muscular na temporada, enquanto a Série A da Itália, segundo investigação da National Library of Medicine, dos EUA, registrou 209 casos. Os números inflacionados de lesões musculares no Brasil escancaram os problemas no calendário, que estressa os músculos, leva os jogadores à exaustão e provoca essas lesões.
Recentemente, o caso do meia espanhol Pedri, do Barcelona, se tornou referência quando se trata da necessidade do descanso para atletas de alto nível. Na temporada 2020-21, o jovem de apenas 18 anos surgiu no futebol como um fenômeno. Pela sua habilidade e capacidade física, o meia tornou-se titular no seu clube e foi convocado para todos os jogos da seleção principal da Espanha e da Seleção Olímpica. As frequentes convocações no período sem jogos do Barcelona fizeram com que o jogador disputasse 73 partidas durante 12 meses ininterruptos, sem descanso nenhum.
Como consequência disso, Pedri passou anos sem ter uma sequência longa de jogos. Com a fadiga acumulada precoce, perda de pré-temporadas inteiras e risco aumentado de recaídas, os médicos do Barça e especialistas em fisiologia do esporte passaram a citar o caso de Pedri como exemplo de “burnout físico” em jovens atletas de elite. As frequentes lesões de quadríceps, isquiotibiais e psoas passaram a ser rotina para o jogador, que passou a ter uma gestão de minutos muito mais rígida pelo Barcelona e pela seleção nos anos seguintes e virou referência em debates sobre o excesso de calendário no futebol moderno. Na temporada 2024-25, o jogador atuou em 72 dos 73 jogos do Barcelona, mas acabou se lesionando novamente no começo da temporada 2025-26.
Tentativas de mudança
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) já apresentou, anteriormente, propostas de ajustes, como a redução do número de datas dos estaduais e maior alinhamento ao calendário europeu. No entanto, a resistência das federações estaduais e dos interesses comerciais ainda emperra reformas profundas. Em 2017, a criação do “Ranking Nacional de Federações” buscou dar mais equilíbrio, mas pouco mudou na prática.
Especialistas em gestão esportiva defendem que uma redução gradual dos estaduais seria caminho inevitável. Bruno Bedo, professor e estudioso do futebol, afirma que “o futebol brasileiro precisa escolher entre preservar tradições e sobreviver ao ritmo moderno”.
O novo calendário
Visando otimizar o calendário e beneficiar os clubes, a CBF anunciou em 1º de outubro as mudanças que serão implementadas em 2026. Reformular o calendário do futebol brasileiro era um dos principais compromissos da gestão do presidente Samir Xaud. As mudanças foram elaboradas pela entidade máxima do futebol no Brasil em parceria com clubes, federações e representantes do mercado, e serão implementadas a partir de 2026.

Segundo o presidente, elas serão apenas um primeiro passo para mudanças mais significativas que planeja para profissionalizar o futebol no país e valorizar o produto. Elas são válidas para o período de 2026 a 2029, nomeado pela CBF como um período de transição. Com mandato até 2029, Samir Xaud promete trazer ainda mais melhorias em um próximo mandato, entre 2029 e 2032.
Em 2024, 20 clubes brasileiros estiveram entre os 21 times que disputaram mais partidas no mundo. Sete deles disputaram mais de 70 partidas, cenário que sobrecarrega os jogadores desses clubes. Em busca de reduzir o desgaste e aumentar a qualidade do produto, a CBF publicou em seu site as mudanças no calendário de suas competições para o ano que vem:

Explicando as mudanças
As mudanças no calendário da CBF pretendem tornar o calendário mais equilibrado e valorizar ainda mais a competição. A entidade acredita que a alteração aumenta o apelo comercial do torneio. O objetivo é fazer com que os clubes de elite do Brasil joguem menos partidas, enquanto os clubes da base da pirâmide terão mais datas. Clubes da Série D jogarão mais partidas e o número de clubes com divisão aumentará também.
Alvos de polêmicas e discussões, os estaduais terão redução de 16 para 11 datas, visando liberar datas para campeonatos mais importantes. O Brasileirão, que em 2025 começou em março, passará a ter sua primeira rodada em janeiro, com encerramento em dezembro. O alargamento dessa competição aumentará os intervalos entre os jogos, permitindo mais tempo de descanso para os jogadores e aumento na qualidade do produto. Na Copa do Brasil, os clubes da Série A estreiam na quinta fase, e jogarão essa e as próximas fases em formato de mata-mata com jogos de ida e volta até a final, que será em jogo único.

A criação da Copa Sul-Sudeste em um formato parecido com o da Copa do Nordeste e da Copa Verde busca ampliar o calendário para clubes da base da pirâmide nacional. Disputadas em 10 datas, as competições serão apenas para os clubes que não disputarem competições internacionais, ou seja, não terá a participação da maioria dos clubes da primeira divisão.
Outras mudanças
Com quatro datas-FIFA, incluindo a pausa de 1 de junho a 20 de julho para a Copa do Mundo, as mudanças no calendário já poderão ser sentidas em 2026 e 2027, mas por conta da Copa do Mundo masculina e feminina nesses 2 anos respectivamente, terão efeito maior somente a partir de 2028.
Outro ponto importante no calendário do futebol nacional em 2026 é o período de inscrição de novos jogadores. Na próxima temporada, os clubes poderão se reforçar, inicialmente, entre 5 de janeiro e 3 de março. Uma segunda janela de transferências será aberta entre os dias 20 de julho e 11 de setembro. Fora desses períodos, não será possível registrar jogadores no Boletim Informativo (BID) da CBF.
Em nota, o Atlético disse que “entende que o modelo proposto distribui de forma inteligente as datas do calendário e representa um avanço significativo, contribuindo para uma melhor organização das competições e, consequentemente, para a ampliação do nível técnico das disputas”. Em coletiva, o treinador do Cruzeiro Leonardo Jardim elogiou as mudanças, mas alertou para o curto espaço de tempo entre as finais da Copa do Brasil 2025 e o início dos estaduais em 2026: “Eu acho que o futebol no Brasil está se adaptando ao que é a realidade em todos os campeonatos do mundo, que é ter um campeonato de Série A que seja ao longo do ano.”
As mudanças são válidas para o ciclo de 2026-2029 do futebol brasileiro, até quando durar o mandato do presidente Samir Xaud. No entanto, como foi dito pelo próprio presidente, elas são apenas o primeiro passo de muitas outras mudanças que buscarão otimizar o calendário e beneficiar clubes, patrocinadores e torcedores, além de valorizar o produto.




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