A fogueira ainda queima. As bruxas ainda são caçadas e não têm caminho de fuga. A queimada é inevitável quando se é mulher. Seja por usar uma saia curta demais, levantar a voz ou no simples ato de dizer “não”, a mulher vive em perigo constante.
O movimento que se iniciou no século XV, na Europa, com o pretexto de que mulheres “que sabiam demais” estavam envolvidas com magia e, por isso, tornavam-se uma ameaça para a sociedade ainda vigora, só que em outros moldes.
A caça às bruxas não surgiu por acaso e não continuou por menos que isso. Foi e ainda é uma mobilização focada em controlar todos os aspectos de ser mulher e as lutas contra a cultura patriarcal.
Silvia Federici, historiadora italiana, pesquisadora feminista e autora de “Mulheres e a Caça às Bruxas” e “Calibã e a Bruxa”, entre outros livros, defende em sua obra que: “É necessário entender de onde vem a violência, quais são suas raízes e quais são os processos sociais, políticos e econômicos que a sustentam para entender que mudança social é necessária.”
Os primórdios da caça às bruxas
Com a onda crescente do antropocentrismo (homem como centro do universo) no século XV, o teocentrismo (Deus como o centro do universo) foi entrando em decadência, o que não agradou os líderes religiosos que mantinham a Europa sob controle até então.
Esse distanciamento entre a religião católica e os fiéis também significou que a arte, a ciência e a filosofia não giravam mais em torno da igreja e dos fundamentos implementados por ela. Com a instabilidade proclamada, a Igreja Católica deu início ao processo que visava levá-la novamente ao topo do poder.
Foram instaurados então, os Tribunais de Inquisição, formados pelas judicaturas da Igreja Católica, que perseguiam, julgavam e puniam pessoas acusadas de se desviar das normas de conduta da época.
Além disso, no final do século XV, os cercamentos começaram a surgir na Europa, principalmente na Inglaterra. De acordo com Silvia Federici em seu livro “Mulheres e a caça às bruxas”, lançado em 2019, esse fenômeno, juntamente com os processos de Inquisição, foram responsáveis por fazer as primeiras vítimas do capitalismo: as mulheres.
“Os cercamentos foram um fenômeno inglês pelo qual a classe proprietária de terras e membros abastados da classe camponesa cercaram terras comuns, colocando fim aos direitos consuetudinários e desalojando a população de agricultores e colonos que delas dependiam para sobreviver. […] As mulheres mais velhas foram as mais afetadas por esses acontecimentos, pois a combinação de alta dos preços e perda de direitos consuetudinários as deixou sem ter de onde tirar o sustento, ainda mais se fossem viúvas ou não tivessem filhos e filhas com capacidade ou disposição para ajudá-las.” (p. 61)
Trecho retirado do livro “Mulheres e a caça às bruxas” (2019)
O período da Inquisição
Os Tribunais de Inquisição defendiam veementemente que aqueles que não seguissem os dogmas impostos pela Igreja Católica fossem punidos de forma violenta. O objetivo era tanto fazer exemplo das vítimas à população que ousasse desrespeitar as normas, quanto “se livrar” das chamadas bruxas.
De acordo com Myriam Bahia Lopes, autora, historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Inquisição foi um processo que surgiu com os novos moldes do capitalismo, especificamente no período em que havia grande investimento de países como Espanha, Portugal e Inglaterra na expansão e influência sobre novos território, em função do Imperialismo e Colonialismo.
“A Inquisição vai surgir em um momento específico do capitalismo, em que você tem certa coordenação ali na Península Ibérica para fazer esse movimento de conquista em nível planetário. Vai existir uma mudança de escala de deslocamento muito grande com todo o processo da conquista da América e pro Oriente também”
A pesquisadora explica, ainda, que isso implicava em toda uma mobilização de poder, assim como uma redefinição de papéis e reafirmação de autoridade. “Então, o “mal” tem origem em uma pessoa que estaria fora desse grupo. A bruxa vai corporificar esse movimento de jogar a violência em mulheres”, afirma.
Além disso, os Tribunais de Inquisição também serviram para punir toda e qualquer pessoa que não seguisse o catolicismo. Outros alvos comuns eram os judeus e os cristãos-novos, como eram chamados os recém-convertidos ao Catolicismo, acusados de continuarem praticando o Judaísmo secretamente.
O papel das mulheres
Mas porque as mulheres foram os alvos mais prejudicados de regimes como a Inquisição e o Cercamento? As mulheres sempre carregaram um sentido de máxima importância na sociedade. Por serem capazes de engravidar, detém o poder de dar seguimento à vida na Terra. Além disso, desde os primórdios da humanidade, era papel das mulheres criar os filhos, transferindo conhecimento sobre como funciona a natureza, as estações do ano, o plantio, quais os animais e plantas perigosos e, consequentemente, começaram a aprender como funciona o corpo humano, como combater uma febre ou gripe, até mesmo uma dor de dente, com o uso de plantas medicinais.
Esse conhecimento foi passado de geração a geração, de mãe para filha e, com isso, a mulher garantia seu valor na sociedade. No entanto, à medida que essas mulheres, as antigas enfermeiras, médicas, professoras, estudiosas de qualquer segmento, começaram a questionar seu papel até então inferiorizado pelos homens, a Igreja Católica, dominada por ideias patriarcais, percebeu uma ameaça.
De acordo com Silvia Federici em “Mulheres e a caça às bruxas”, o simples ato de não concordar com a opinião imposta por um homem, já era motivo de suspeitarem de bruxaria.
“Primeiro, as bruxas não eram apenas vítimas. Eram mulheres que resistiam à própria pauperização e exclusão social. Ameaçavam, lançavam olhares reprovadores e amaldiçoavam quem se recusava a ajudá-las; algumas se tornaram inconvenientes, aparecendo de repente, e sem serem convidadas, na soleira de vizinhas e vizinhos que viviam em melhor situação ou realizando tentativas inadequadas de se tornarem aceitas ao oferecer presentinhos para criancinhas.” (p. 63)
Trecho retirado do livro “Mulheres e a caça às bruxas” (2019)
Essa forma de rejeitar a marginalização era vista com maus olhos pela sociedade e motivo de punição para a Igreja. A mulher foi se tornando o símbolo da ameaça, a personificação do mal, que iria desestabilizar a paz e o progresso do capitalismo.
De acordo com Bárbara Caldeira, pesquisadora e doutoranda em Comunicação Social pela UFMG, que pesquisa feminicídios e o jornalismo como fogueira simbólica onde se “queimam” as mulheres vítimas desses crimes, todo essa tradição secular que agia contra as mulheres não passava de um preconceito de gênero.
“O feminismo olha pra esse período da história, da caça às bruxas, e mostra que foi um fenômeno generificado, pautado por gênero, porque a maior parte das pessoas que morreram nas fogueiras eram mulheres. Ali havia uma perseguição de mulheres por seus costumes, por seus hábitos, uma tentativa de controle do corpo da mulher.”
A fogueira
Por mais que as mulheres fossem, em sua maioria, presas e condenadas à fogueira, qualquer um poderia ser classificado como praticante de bruxaria. Não praticantes do catolicismo, também alvos frequentes, eram submetidos a “julgamentos” antes de serem condenados.
Geralmente, não poderiam ser mortos antes de confessarem sua ligação com o diabo ou se foram ou não cúmplices de atos pecaminosos de terceiros. Para obter essas informações, as bruxas e os bruxos eram presos e torturados das maneiras mais cruéis possíveis.
De acordo com os historiadores e autores da pesquisa “As mulheres e a Igreja na Idade Média: misoginia, demonização e caça às bruxas” publicada em 2014, Vera Lucia Souza e Daniel Luciano Gevehr, as acusações de bruxaria eram feitas em anonimato, por vizinhos, conhecidos, familiares e amigos que não queriam se tornar cúmplices.
“Qualquer suspeita de bruxaria merecia uma averiguação. Um simples espalhafato servia para colocar em ação o aparelho judiciário e todo o seu medonho arsenal, procedendo à investigação e também perseguição da pessoa suspeita. Qualquer acontecimento que possuísse um caráter imprevisto era atribuído a um sortilégio. Possuir o hábito de ir frequentemente à igreja, baixar os olhos quando fosse falado sobre bruxaria ou ser possuidor de uma cruz com um dos braços quebrados já era motivo suficiente para desconfiança das autoridades.” (p. 8)
Trecho retirado da pesquisa “As mulheres e a Igreja na Idade Média: misoginia, demonização e caça às bruxas” (2014)
Eram queimadas na fogueira todas as culpadas de bruxaria pelos líderes da Inquisição. Aquelas que sustentavam sua inocência eram queimadas vivas. As que confessavam por meio de tortura eram enforcadas e tinham o corpo queimado logo em seguida. Em países como a Alemanha e França, eram usadas madeiras verdes nas fogueiras para prolongar o sofrimento das vítimas. Na Itália e Espanha, as bruxas eram sempre queimadas vivas.
Com o passar dos séculos, o símbolo da fogueira evoluiu, juntamente com o que é considerado pecaminoso. A pesquisadora Bárbara Caldeira afirma que os processos de inquisição ainda existem e que a mulher continua subjugada pelas condições impostas pelo patriarcado.
“Hoje, as mulheres passam por inúmeras violências. Essas violências vão se atualizando ao longo do tempo. Então, quando os feminicídios acontecem e eles são justificados porque aquela mulher, por exemplo, era muito sensual e o homem supostamente teria medo de que ela fosse infiel, usam a justificativa de que o homem matou porque ele teve um surto, foi a mulher que levou ele a fazer isso. É uma interpretação de um argumento que está na Bíblia, de que a mulher é desobediente, que é mais propensa ao pecado como Eva foi, por exemplo.”
O guia contra as bruxas
O processo de caça às bruxas que se deu início no século XV e teve seu “fim” no século XVIII foi divulgado em diversas formas de comunicação entre esses séculos, de forma explícita.
Em 1484, o livro escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger “O Martelo das Feiticeiras”, foi usado como um manual de como identificar e punir bruxas em toda a Europa, além de trazer as justificativas que eram tidas como dogmas do movimento. É considerado o livro mais famoso sobre o assunto e foi responsável por orientar a morte de mais de 100 mil mulheres por crimes de bruxaria.
Baseado inteiramente em práticas misóginas, “O Martelo das Feiticeiras” procurava legitimar a posição de “sexo frágil” encubido às mulheres e como era perigoso deixá-las sob a ordem do diabo, sem controlá-las devidamente. As ideias proferidas no livro, divulgadas séculos depois com um prefácio atualizado, estão divididas em três partes: a primeira engrandece o diabo com poderes divinos e liga suas ações com a bruxaria. Na segunda parte, a obra ensina a reconhecer e a neutralizar a bruxaria no dia a dia da população. Na terceira parte, estão descritos o julgamento e as sentenças.
O complexo de Eva
A demonização da imagem da mulher não começou com a caça às bruxas. Mulheres como Eva, Medusa, Pandora e Perséfone são alguns dos exemplos de figuras femininas interpretadas como a personificação do mal e da destruição.
Começando por Eva, que foi a responsável por cair na tentação da maçã proibida e levar ao fim do jardim do Éden, enquanto o homem tentava a todo custo protegê-lo. Medusa, a mulher com cabelos de serpente que transformava homens em pedra e apresentava uma ameaça a toda Grécia, só poderia ser derrotada por um guerreiro que se mostrasse valoroso.
Pandora, considerada a primeira mulher na mitologia grega, foi enviada como um presente dos deuses aos homens e causou destruição após abrir a caixa com que foi entregue ao mundo mortal, que continha todos os males possíveis, acabando com a suposta paz criada pelos homens.
Perséfone também foi descrita na mitologia grega como uma das filhas de Zeus, a qual Hades raptou, seduziu e levou para o submundo. Ele deu à Perséfone uma romã, que a tornou prisioneira definitiva. Desde então, sempre que estava com Hades, Perséfone era a responsável por transformar a terra no inferno.
Exemplos como esses se manifestam constantemente na história, nas artes, na literatura, em canções. A mulher, por ser considerada como o “sexo frágil” é associada à incapacidade e a ruína do homem, que, por sua vez, é associado à integridade, à força e quem luta para manter a paz na sociedade.
De acordo com Simone de Beauvoir, escritora, ativista política, feminista e teórica social francesa, em seu livro “O segundo sexo”, publicado em 1949, os mesmos homens que cultivavam a ideia da caça às bruxas alegando que, desse jeito, estariam protegendo o mundo das forças do mal, percebiam a mulher apenas como um dano colateral, que seria facilmente crucificada pelo menor dos atos e transformada na vilã universal.
“A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo.” Ainda continua: “Opõe-se por vezes o “mundo feminino” ao universo masculino, mas é preciso sublinhar mais uma vez que as mulheres nunca constituíram uma sociedade autônoma e fechada; estão integradas na coletividade governada pelos homens e na qual ocupam um lugar de subordinadas; estão unidas somente enquanto semelhantes por uma solidariedade mecânica.” (p. 363)
Trecho retirado do livro “O segundo sexo” (1949)
Mesmo sendo retratadas como detentoras de uma beleza sobrenatural, de causar inveja, as mulheres acabam sendo crucificadas pelos mesmos motivos. Em entrevista ao Colab, Pri Ferraz, jornalista, bruxa, criadora e apresentadora do canal de YouTube “Diário da Bruxa” afirma que o ciclo da imagem da mulher passou por diversas mudanças, chegando até à condição que conhecemos hoje.
“A liberdade feminina vai ser sempre muito temida. Ela começa sendo admirada, mas aquilo que é admirado demais, começa a ser invejado e aquilo que começa a ser invejado, começa a dar medo e aí é um passo pra virar ódio. São assim todas as histórias de massacre no mundo. Se você for ver todo o ódio, ele vem como um sintoma do medo. Então, mulheres que são muito conscientes dos seus corpos, que são muito conscientes do seu poder, dão medo.”
O resgate da imagem da bruxa
O ódio contra a mulher deixou marcas profundas. De acordo com dados coletados pela Rede de Observatório da Segurança e divulgados pela CNN em março deste ano, pelo menos cinco mulheres foram assassinadas ou vítimas de violência por dia em 2020.
Por definição, feminicídio é o termo usado para descrever crimes de ódio baseado no gênero, ou seja, quando uma mulher é violentada, morta ou abusada de qualquer maneira apenas pelo simples fato de ser mulher.
Por se tratar de um movimento sem fundamentos, baseado apenas em gênero e na conservação do poder da Igreja, a caça às bruxas no período medieval foi um verdadeiro genocídio contra a mulher e as consequências disso permanecem até hoje.
No entanto, com a crescente onda feminista, mais mulheres lutam pela igualdade de gênero e pelo reconhecimento do seu papel na sociedade. Como forma de ressignificar o passado, a verdadeira imagem da bruxa foi resgatada, no sentido religioso, cultural, político e social.
Ainda de acordo com a jornalista Pri Ferraz, a bruxa, hoje, assim como a natureza, é ambivalente e vive em constante mudança, passando de ciclos em ciclos.
“A bruxa é a mulher que se conecta com a natureza e se enxerga como retrato dessa natureza. Ela vai entender que esses ciclos da natureza também vão operar dentro dela e ela não vai negar os aspectos que são ambivalentes dessa natureza.”
“A fogueira ainda queima”; “A queimada é inevitável, quando se é mulher”.
Soco na boca do meu estômago.Culpa impagável.Eu, homem, outrora mestre, na verdade, falando por mim, não mereço nem ser escravo.Virgínia Woolf, mina inspiração, me ensinou que a tragédia de ser escravo só é superada pela tragédia de ser senhor.
O texto da Stela está soberbo e transformador: fundamentado, objetivo, informador, mas, sobretudo, é daqueles textos para carimbar nossos corações e mentes, para que, nós, pobres homens, sejamos no mínimo melhores para o mundo.Nosso caminho é de expiação e longo.Deus nos ajude na travessia, pois fracassamos até agora.
Belo artigo , muito esclarecedor . Apenas faço uma observação. A Bíblia nunca incentivou nenhum tipo de ataque as mulheres, infelizmente existem pessoas ignorantes que a interpretam mal , ou até mesmo a usam (maleficamente) como ferramenta de incentivo à discriminação de mulheres e etnias , algo que a Bíblia nunca incentivou… infelizmente, esses são os danos que a ignorância trás.
incrível, incrível, incrívrel.
Parabéns pelo esclarecedor Post
Excelente texto! Parabéns!