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A foto mostra os fundos de uma livraria com prateleiras cheias de livro do chão ao teto.
"O livro é um objeto de viagem, de mergulho, de conversa, de diálogo" - Ana Clara Parreiras / Imagem: Ana Luiza Soares

Biblioteca viva: autores que (re)escrevem BH

De nomes já consagrados a vozes que despontam, a literatura feita em Belo Horizonte mistura raízes, rupturas e novas formas de contar o mundo ao redor

Belo Horizonte é berço de grandes autores que marcaram gerações com suas narrativas e que ajudaram a construir a identidade da capital mineira e a literatura brasileira. Dos clássicos de Fernando Sabino e Affonso Ávila aos contemporâneos de Conceição Evaristo e Carla Madeira, a cidade, com suas ruas e praças, guarda monumentos literários que celebram a história desses autores. 

O busto de Carlos Drummond de Andrade na Praça do Encontro, na esquina das ruas Goiás e Bahia, e o memorial de Fernando Sabino, no Mercado de Origem, além de homenagear essas figuras conectam os leitores ao legado literário da cidade.

Estátuas dos escritores Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, no centro de Belo Horizonte, fazem parte da rota literária da capital./ Imagem: Emanuele Lage
Escritório de Fernando Sabino, com mobília original, no Mercado de Origem em BH./ Imagem: Emanuele Lage

Veja aqui a rota literária de Belo Horizonte

Quem observa essa cena de perto é Cláudio Henrique, escritor, professor de literatura e apresentador do programa Conversações, da Rede Minas: “Belo Horizonte está presente nas obras dessas pessoas. Mesmo quando não é citada diretamente, ela aparece como cenário emocional, como paisagem simbólica. É uma cidade que marca, mesmo quando tenta se esconder”, afirma.

Para além dos escritores já consagrados, BH revela a força feminina na escrita e a conexão com um novo perfil de leitores por meio de plataformas digitais, tornando-se um ponto de encontro de novos escritores que buscam resgatar e reinventar a literatura mineira.

Percalços da nova geração

Se a capital carrega o legado de escritores que marcaram sua identidade, também é palco para uma nova geração de autores que ressignificam a literatura da cidade. Entre esses nomes está o de Lavínia Rocha, que começou a escrever ainda criança, e hoje, com 17 livros publicados, reflete sobre os desafios e conquistas de ser escritora no Brasil.

Desde cedo, Lavínia, que também é professora de História, foi incentivada a entrar no mundo dos livros. Para uma criança inquieta, a leitura foi um refúgio e uma brincadeira. “Eu era muito agitada, então o livro era um jeito da minha mãe me manter quietinha. Fui uma criança muito incentivada a ler”, relembra ela, que também recebeu estímulo de professores.  

Aos 11 anos, criou sua primeira história – Um Amor em Barcelona que se transformaria em livro dois anos depois, publicado de forma independente com o apoio da família. “O início de tudo foi um incentivo dos meus pais. Não foi algo quero virar escritora. Foi sobre uma criança muito estimulada dentro e fora”, conta.

Ainda assim, a trajetória na literatura não foi isenta de obstáculos. Lavínia destaca como as referências literárias da infância a distanciaram da ideia de escrever: “Os grandes nomes eram homens, brancos, velhos, nas fotos preto e branco dos livros. Era muito distante daquilo que eu via no espelho: uma criança, uma menina negra. Estava longe daquelas características do que eu estava vendo como literatura nacional. Não era nem uma possibilidade”, confessa. 

Após a publicação de Um Amor em Barcelona, a escrita deixou de ser apenas uma paixão e se transformou em uma possibilidade profissional, embora ainda permeada por desafios. “Quando publiquei, falei: quero continuar sendo escritora, eu gosto disso. Mas ainda muito longe de poder ser minha carreira principal, porque é muito difícil viver de literatura no Brasil”, destaca Lavínia ao se referir a questões de gênero, raça e ao eixo da literatura nacional como Rio e São Paulo.

Diversidade ganha os holofotes

Essa percepção se refletiu em sua literatura. Nos primeiros livros, Lavínia reproduzia o que lia: protagonistas brancos e histórias que seguiam o padrão das referências que tinha, uma vez que representatividade não era um termo discutido. “Então, fazia o que eu via, o que eu lia, o que eu escutava e o que eu queria ser também. Eu queria ter os olhos claros, o cabelo liso, o cabelo loiro.  Então, você vai escrevendo sobre aquilo que você considera o padrão”, explica. 

Essa desconexão com os modelos tradicionais literários foi um dos fatores que levaram à virada de chave na juventude, quando começou a questionar sua própria representatividade na literatura. Entre 2014 e 2015, com o fortalecimento dos movimentos sociais e as discussões sobre raça e gênero, as pautas identitárias ganharam a atenção dos holofotes. “Foi um momento de muita crítica e muita reflexão para mim também, de me enxergar no espelho, ir para a graduação, discutir movimento negro e movimento feminista”, comenta.

A partir desse momento, sua escrita ganhou novos contornos. Em suas histórias, Lavínia passou a incluir protagonistas negros e indígenas. Foi um momento de se enxergar no espelho e entender que escrever livros com personagens de diferentes corpos e vivências não era apenas para se ver, mas algo além disso. Como afirma o jornalista Cláudio Henrique, quem escreve está registrando memórias individuais e, sobretudo, coletivas.

“Pode ser que cada coisa que você escreveu diga de tantas situações e pessoas, e não necessariamente da sua vida. Mas a sua vida, em alguma medida, está contida, porque elas estão saindo de dentro de você, das suas vísceras.”

Essa ideia é também essencial na obra de Conceição Evaristo, autora que criou o termo escrevivência: a escrita de nós. A palavra, que une escrever e vivência, carrega o entendimento de que toda escrita, seja biográfica, ficcional ou poética, fala não apenas de quem escreve, mas também do outro. A escritora belo-horizontina é um dos grandes ícones da literatura afro-brasileira. De origem humilde, Conceição foi influenciada pela mãe, que, após ler Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, em 1958, passou a escrever um diário sobre o próprio cotidiano. Embora não tenha crescido cercada de livros, a mineira recebeu o incentivo da família para se dedicar aos estudos e à leitura. Esse estímulo a levou a transformar a biblioteca pública da Praça da Liberdade em seu segundo lar.  

Em seu primeiro livro Ponciá Vicêncio, a escritora apresenta a história de uma jovem que parte para a cidade grande em busca de melhores condições de vida, afastando-se de sua família e de suas raízes. No romance, a ancestralidade e a memória da opressão ocupam o centro da narrativa. De forma inconsciente, Ponciá repete os gestos do avô, Vicêncio, que em seu modo de andar, carregava as marcas da escravidão e das dores que viveu. A protagonista retrata problemas do cotidiano que mulheres negras sofreram durante muito tempo: dores muitas vezes silenciadas, mas que encontram espaço na literatura de Conceição. Uma escrita que incomoda, provoca, faz refletir. Em seu poema Vozes-mulheres, o eu-lírico evoca as mulheres que vieram antes, todas marcadas pela opressão e pelo silenciamento. A cada geração, a raiva diante do racismo escancarado é sentido, assim como a esperança pela liberdade. 

“Na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância/
O eco da vida-liberdade”

Conceição Evaristo

Das ruínas à poesia

É também na poesia que se encontra espaço para falar sobre as questões mais íntimas da alma, evocando medos, sonhos e desejos. Adriane Garcia, assim como Lavínia, não se imaginava como escritora. Apesar de não enxergar a escrita como profissão, escrevia poemas na pré-adolescência como uma forma de se expressar

“No meio em que eu vivia seria muito difícil sonhar em ser escritora. Não parecia um sonho aberto para uma criança, menina, pobre de periferia. Já adulta, tendo emprego, melhorando a questão social, fui enxergando mais possibilidades. A pobreza é um grande limitador para os sonhos. Ninguém deveria ter mais do que necessita, e ninguém deveria ter menos do que necessita. O abismo social é uma de nossas ruínas”. 

Assim como a Conceição Evaristo, Adriane sentiu na pele a ruína que o abismo social causa. Pelo menos, em relação às condições financeiras. De família humilde, a poeta não cresceu rodeada de livros, mas foi bastante influenciada pela mãe a ler e a estudar.

A minha mãe sempre me incentivou a leitura e os estudos. Apesar de muito pobre e de viver em uma casa sem livros ou leitores, eu aprendi logo a usar a biblioteca escolar.

Esse amor pela leitura e pela escrita desde a infância também despertou em Ana Elisa Ribeiro, escritora, poeta e professora, o interesse pelo universo da literatura. Na adolescência, publicava seus poemas e textos em blogs, sem imaginar que faria disso uma profissão. Escrevia apenas por paixão, até perceber que a maneira mais viável de se manter próxima da escrita de forma profissional seria cursando Letras. “Meus primeiros interesses foram ser escritora e editora. Aí eu descobri que existia o curso de Letras e decidi fazer, porque achava que era o mais próximo possível desse universo que eu queria alcançar”, relembra.

Durante a graduação na UFMG, optou pela área de Linguística, dedicada ao estudo da linguagem humana, suas estruturas e transformações. Inspirada por professores, entendeu que precisaria construir uma carreira acadêmica, seguindo com mestrado e doutorado para poder atuar no ensino superior.

Já era professora no CEFET-MG quando Ana Elisa participou de uma iniciativa ousada: fundar o curso de Letras e o Programa de Pós-Graduação na instituição, tradicionalmente voltada para a área de Exatas. O desafio foi grande, especialmente para convencer os colegas de outras áreas, mas o esforço valeu a pena. O curso, criado em 2008, consolidou-se como referência.

Paralelamente à atuação acadêmica, Ana Elisa encontrou na literatura uma forma de dialogar com sua linha de pesquisa sobre edição, linguagem e tecnologia. Essa temática atravessa seu livro juvenil Romieta e Julieu – Tecnotragédia Amorosa, que recria a clássica história de Romeu e Julieta, abordando as interferências das tecnologias na comunicação e nas relações humanas. Escrito durante a adolescência de seu filho, o livro foi lançado em 2021, durante a pandemia. Apesar das dificuldades do período, conquistou reconhecimento, e, em 2022, recebeu o Prêmio Jabuti pela obra, consolidando seu nome também na literatura juvenil.

Belo Horizonte: um celeiro de autores

A conexão entre Ana Elisa Ribeiro e a literatura mineira vai além da geografia. Para ela, Belo Horizonte é um celeiro de escritores e artistas que, apesar de sua riqueza cultural, ainda recebem pouca valorização. A discrição e a modéstia típicas dos mineiros refletem na forma como o próprio estado lida com sua produção literária, muitas vezes deixando de dar a devida visibilidade aos autores locais.

Mineiro é esquisito nisso, sabe? Eu não acho interessante a maneira como a gente lida com o que a gente produz. Não precisa ser arrogante e metido, mas também acho a gente muito excessivamente modesto e discreto”, confessa a escritora.

Essa realidade se estende ao cenário acadêmico, em que a literatura contemporânea de Minas ainda enfrenta dificuldades para ocupar espaço nos currículos. Embora existam grupos de pesquisa dedicados ao estudo de obras recentes, Belo Horizonte continua recebendo menos atenção do que grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. 

A gente prefere dar atenção a outros, de outros lugares. E é claro, eu lamento isso um pouco.

Essa dificuldade de reconhecimento também se faz presente no mercado editorial. Ao longo das décadas, escritores mineiros tiveram que construir redes de contatos fora do estado para garantir que suas obras fossem lidas e divulgadas. A concentração das editoras e dos espaços de difusão nacionalizados em São Paulo e no Rio impôs barreiras para aqueles que tentavam se destacar sem precisar migrar. 

Mas foram esses obstáculos no mercado que trouxeram iniciativas para a valorização da literatura em BH, como a editora Scriptum, fundada em 1998. Comandada por Welbert Belfort, a casa editorial nasceu com o propósito de abrir espaço para vozes locais e publicar obras que muitas vezes ficariam à margem devido ao CEP não pertencer ao Rio ou a São Paulo. “Eu sempre digo que publicar é, antes de tudo, um ato de resistência cultural”, comenta Welbert. Ao longo dos anos, ele editou nomes importantes da literatura contemporânea e  autores que encontraram na Scriptum a oportunidade de ver seus livros chegarem às mãos dos leitores.

A trajetória da Scriptum começou de forma modesta, quase desacreditada. Welbert relembra que a ideia de abrir uma editora e livraria em Belo Horizonte parecia ousada demais: “A Scriptum foi uma coisa muito esquisita, porque ninguém acreditava que ia dar certo. Eu aluguei uma casa que era um ovo, um lugar minúsculo, e a gente foi montando isso com muito sacrifício”, relembra.

Desde o início, ele apostou em reunir profissionais que compartilhassem a mesma paixão pela literatura e tivessem um olhar diferente para os textos. Com um catálogo que mistura literatura, ensaios e obras acadêmicas, a editora se tornou ponto de encontro para quem acredita na força da produção regional. Para além dos livros, a Scriptum também se destaca pela criação de projetos culturais e pelo envolvimento em eventos literários na cidade, ajudando a manter viva a tradição de BH como celeiro de escritores.

“A gente não pode ficar esperando a chancela do eixo Rio-São Paulo. Ou a gente faz aqui, ou as histórias ficam na gaveta”.

Welbert Belfort

Seja através da internet ou de iniciativas como a de Welbert, a literatura belo-horizontina tem encontrado novas formas de circulação e visibilidade, desafiando antigas estruturas e garantindo que vozes locais sejam ouvidas. Se antes os escritores precisavam romper bolhas fechadas para serem reconhecidos, hoje há movimentos que facilitam essa ascensão, como o BookTok.

Fuad Noman: prefeito com alma de romancista

Economista e político, eleito prefeito de Belo Horizonte pelo PSD no final de 2024, Fuad Noman, também se dedicou à literatura, tendo escrito três romances: O Amargo e o Doce (2017), Cobiça (2020) e Marcas do Passado (2022). Uma das características mais marcantes de sua escrita era o linguajar interiorano de Minas. Noman faleceu em março de 2025 vitíma de um câncer.

BookTok: divulgação de novos autores

Com a popularização de plataformas digitais como o TikTok, a literatura belo-horizontina encontra uma nova geração de leitores que se conectam com as obras clássicas e contemporâneas de maneira inédita. O fenômeno do BookTok, uma comunidade de leitores e criadores de conteúdo que fazem recomendações literárias, resenhas e discussões sobre livros, e que ganhou força durante a pandemia, transformou a maneira como se consome e se constrói a literatura. Esses novos canais, através da #BookTok, ajudam a divulgar autores mineiros e incentivam o interesse pelas histórias que antes circulavam principalmente no meio acadêmico. 

Esse foi o caso da jornalista e influenciadora digital Ana Clara Parreiras, administradora do perfil Cacá Leitura  – que já acumula quase 20 mil seguidores apenas no Instagram. Segundo ela, a ideia inicial não era falar sobre livros. “Eu tinha acabado de sair do terceiro ano do ensino médio, estava estudando para o Enem. Tinha acabado de fazer 18 anos, então estava naquele período da pandemia que todo mundo ficou isolado. Estava tendo muita dificuldade de estudar online.”, relembra.

Foi aí que, navegando pelas redes sociais, encontrou uma menina que compartilhava dicas de leitura e a rotina de estudo para o vestibular. “Falei: acho que vou criar uma página para me estimular a estudar para o Enem e para a redação, porque aí eu vou postando as coisas que eu for lendo e que eu for assistindo e isso vai me estimulando”, diz ela.

A partir disso, mais pessoas começaram a acompanhá-la. “O leitura, na verdade, nem veio do hábito da leitura, veio de leitura de mundo, porque, tudo que eu lia e assistia, eu dividia. Só que de repente mais pessoas foram chegando, então virou o Cacá Leitura de livros”, explica Ana Clara. A decisão foi certeira, já que a página já existe há quatro anos e, recentemente, ganhou novo formato com o clube do livro presencial.

“Sempre tive vontade de participar de um clube do livro presencial. E virava e mexia aparecia, na minha for you do Tiktok, vídeos das gringas lendo livros e tomando cafezinho, e eu ficava com muita vontade”, comenta. Mesmo com o medo do projeto afundar, Cacá abriu o próprio clube, e, de repente, ele viralizou e várias pessoas se interessaram em fazer parte.

“Hoje temos quase 300 pessoas no grupo do Whatsapp, o nosso encontro tem em média de 20 a 30 pessoas e são mulheres, a ideia sempre foi só mulheres. É um espaço não só sobre leituras, mas é um espaço para elas, sobre elas e sobre as histórias delas. É um momento de ficarmos confortáveis com outras mulheres e ouvir, aprender, escutar, mergulhar nas histórias, mas também, mergulharmos em nós mesmas”, revela a jornalista.

O clube, que integra mulheres de todas as idades: “tem meninas que estão no ensino médio, na faculdade, tem gente que já se formou, tem quem não sabe o que quer fazer, tem mães, tias, colegas e primas, e uma chama a outra”. O encontro acontece sempre no último domingo do mês, às 14 horas, no local divulgado por Cacá. “A ideia era sair um pouco do digital, da pandemia, mudar de página e ter esse encontro ao vivo e está sendo muito legal”, destaca a influencer.

Estes clubes de leitura como o da Ana Clara demonstram que o interesse pela literatura local está longe de ser apenas restrito a nichos. Cada vez mais, as histórias que nasceram aqui começam a circular livremente, ganhando o público que merecem e mostrando que a capital mineira tem muito a dizer.

Como afirma o jornalista Cláudio Henrique: “A gente precisa olhar para os nossos autores com mais carinho. Ainda há muito preconceito de classe, de raça, de gênero no campo literário. Mas BH tem muito a dizer. E tem gente dizendo.”

Confira os outros capítulos dessa reportagem especial:

Reportagem produzida por Ana Luiza Soares, Caroline Saraiva, Emanuele Lage, Gabriela Reis, Julia Barreto e Maria Clara Sá para o Laboratório de Jornalismo Digital, no semestre 2025/1 do curso de Jornalismo da PUC Minas - campus Coração Eucarístico, sob a supervisão da professora Luana Viana.

Colab PUC Minas

Colab é o Laboratório de Comunicação Digital da FCA / PUC Minas. Os textos publicados neste perfil são de autoria coletiva ou de convidados externos.

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