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ANTECEDENTES: O que leva a um golpe?

Contexto global, ascensão da extrema direita e cooptação social são fatores que explicam

▶ Nesta reportagem, você vai ver:

O Brasil viveu em 8 de janeiro de 2023 um dos episódios mais graves de sua história democrática. A invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em Brasília, por apoiadores do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL), escancarou uma tentativa de golpe de Estado que vinha sendo desenhada há anos, conforme a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). A cena do caos no Distrito Federal foi apenas o ápice de uma sequência de ataques às instituições democráticas. Esses ataques marcaram a gestão Bolsonaro e também de um plano que envolveria atentar contra a vida de autoridades, como explicam os entrevistados pelo Colab. O discurso autoritário, a desinformação sistemática e a constante ameaça às regras do jogo político criaram o terreno fértil para que a ruptura institucional quase se concretizasse.

Vários fatores levaram ao extremismo e a ações antidemocráticas e o mais visível é o bolsonarismo. Ele garantiu forças e oportunidades para que fosse possível a ação antidemocrática do 8 de janeiro. Para a doutora em Ciências da Comunicação, professora de Jornalismo e pesquisadora da linha de Poder e Processos Sociotécnicos do PPGCOM da PUC Minas Nara Scabin, esse movimento se define por uma forma específica de mobilização social construída principalmente por meio das redes sociais. E não tem, necessariamente, um conjunto de pautas políticas ou ideológicas específicas ou coesas. Mobiliza e sintetiza vários discursos no campo da direita e da extrema-direita, como o neoliberalismo, a ideologia reacionária no campo religioso, cultural e dos costumes, além da ideia de guerra civil. 

O movimento bolsonarista se define por uma forma específica de mobilização social / Foto: Buda Mendes – Getty

Para Camilo Aggio, professor e pesquisador do Departamento de Comunicação da UFMG, o bolsonarismo se tornou uma iconografia da extrema direita brasileira. Isso acontece mesmo que seja possível identificar alguns personagens que não estejam vinculados claramente a Bolsonaro, mas que representam posições profundamente similares, como Pablo Marçal (PRDB).

Além disso, há forte moralismo no voto em Bolsonaro ou outros candidatos que são identificados como de extrema direita dentro do bolsonarismo. “Não é à toa que a gente tem no neopentecostalismo uma base muito fiel ao bolsonarismo. Existem muitas razões, mas uma coisa que os une é o ultra moralismo e a questão das pautas morais”, afirma Camillo.

Imaginário fascista

Demian Melo, doutor em História, pesquisador do fascismo e do fenômeno bolsonarista, que foi colaborador da Comissão Nacional da Verdade, ainda observa outro ingrediente ao Bolsonarismo: o fascismo. “O fascismo só triunfa quando a ordem vigente, diante de uma situação de crise, permite a normalização de uma liderança fascista e abre a porta do palácio”, explica.

Parte da antiga capa do “x” de Bolsonaro
Documento da “Associação Brasil Livre”.

Ainda que nem toda figura autoritária ou época de repressão devam ser consideradas fascistas, Demian diz haver um aspecto recorrente do fascismo no bolsonarismo, que é a estratégia de guerra civil. “Só existe ascensão do fascismo em situações de crise. Quando a tensão ocorre, há sempre um diagnóstico de que a nação foi maculada, corrompida”. Ele acrescenta que há uma perseguição contra a corrupção, mas não uma corrupção monetária, mas sim, moral. No imaginário fascista, as forças divisivas que corromperam a nação são, de modo geral, a esquerda.

Bolsonaro coloca o comunismo como ameaça, levando ao caos e fidelidade de parcelas da população
Mauro Pimentel / AFP

Já o professor do Departamento de Ciência Política da Uerj Paulo Henrique Cassimiro explica que todo regime de exceção, como a ditadura que as Forças Armadas colocou em prática em 1964, tem que construir uma narrativa de que aquela sociedade está em risco. Para isso, precisa usar os expedientes excepcionais contra os adversários, tratados como inimigos. Isso leva à violação grave de direitos humanos e ao terrorismo de Estado.

Bolsonaro reproduz essa lógica, colocando o comunismo e o petismo – que ele trata erroneamente como sinônimos – como uma ameaça à sociedade brasileira patriarcal, conservadora, heteronormativa. “A diferença é que o Bolsonaro não tem os instrumentos do terrorismo de Estado que a ditadura militar tinha, senão ele teria colocado em prática também essas perseguições”, reflete Cassimiro.

Durante os quatro anos de governo, Bolsonaro literalmente armou a base social de apoio. A política armamentista de que o cidadão de bem tem que ter arma para autoproteção, segundo Demian, é um propósito insurrecional, com o propósito de guerra civil.

Populismo reacionário

O que torna um populismo reacionário é justamente o fato de que essa ideia de povo passa por uma concepção ideológica de que o povo é definido como um grupo tradicional caracterizado por relações familiares, de gênero, de cultura.

O Bolsonarismo ainda se enquadra em um fenômeno chamado de populismo de direita, que, para a professora Nara Scabin, representa uma resposta ao perceptível colapso do capitalismo neoliberal. Os populismos de extrema direita, que se apresentam como formas de representar os interesses do povo, na prática, só dão conta de atender aos anseios da minoria fora das camadas populares e das classes trabalhadoras, explica. “O neoliberalismo não dá conta de garantir boas condições de vida às pessoas, logo a democracia é insuficiente. Ou, pelo menos, está falhando em garantir dignidade para as pessoas.” 

O populismo é uma performance política, segundo Cassimiro, fundamentado num discurso que pode ser ideologicamente muito diverso, mas num discurso que tem uma característica estrutural, o fato de que o populista sempre se reivindica como representante de um povo autêntico contra uma elite política corrupta.

Passar imagem de humildade e tentar se distanciar das elites políticas são algumas das estratégias de Bolsonaro. Foto: reprodução X

Getúlio Vargas é a figura considerada populista com mais destaque. Mas no início da década de 2000, quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ascendeu à Presidência, também foi considerado populista, ainda que suas práticas tenham sido bastante distintas. No caso, as políticas de mobilidade social e distribuição de renda implementadas nos governos do PT eram mal-vistas por setores das elites e tidas como populistas. 

As direitas aprenderam a também se aproximar das bases, mas por perspectiva diferente. A tentativa de se comunicar diretamente com o eleitor por meio das redes sociais, atacando os meios de comunicação tradicionais, passar imagem de humildade, usar vocabulário simples e tentar se distanciar das elites políticas são algumas das estratégias de Bolsonaro, que alimentou um novo tipo de populismo, como Cassimiro intitula em seu livro O Populismo Reacionário.

Surgimento e ascensão do Bolsonarismo

No Brasil há um arranjo social herdado do período colonial na forma como as elites se organizam, assim como um processo de militarização da política. “Há uma tentativa por parte das forças militares de atuar politicamente, fazendo uma política conservadora e reacionária, voltada aos interesses das elites, procurando projetar um protagonismo político”, explica Nara Scabin.

A extrema direita do Brasil não surge com o bolsonarismo, mas se fortalece com ele. Como Leonardo Avritzer explica no livro O Pêndulo da Democracia, o sistema brasileiro oscila entre democracia e autoritarismo. A ditadura militar, por exemplo, foi uma época de grandes retrocessos institucionais até 1985. Depois de um curto período democrático, em 2013 a política volta a abrir espaço para uma nova onda extremista, que permitiu o nascimento do bolsonarismo. 

Para Camilo Aggio, a semente do bolsonarismo remonta aos protestos de junho de 2013, com a queda da popularidade da então presidenta Dilma (PT) e de um levante antipetista, que será surfado por Jair Bolsonaro a partir de 2016. 

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Marcos Santos
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Em junho de 2013, manifestantes do Movimento Passe Livre (MPL) ocuparam as ruas de São Paulo em resposta ao aumento na passagem dos ônibus. Os atos foram fortemente reprimidos pelas forças policiais e, inicialmente, a mídia hegemônica taxou os manifestantes de vândalos e baderneiros. Todavia, coberturas ao vívo como a do Mídia Ninja mostravam o outro lado dos protestos pelas mídias sociais. 

As manifestações passaram a ocorrer em outras cidades do país e ganharam vulto. O crescimento das pautas se multiplicou da mesma forma, incluindo desde redução de preço da passagem e melhorias na saúde e educação a ataques às instituições e pedidos de intervenção militar. Com o afastamento do MPL, quem ganhou protagonismo defendendo pautas de teor anti-corrupção foi um grupo com sigla parecida, o Movimento Brasil Livre (MBL).

O movimento que começou contra o aumento das tarifas de ônibus acabou tomando forma de uma “indignação coletiva”, sem unidade de liderança ou tema central.

Radicalização

Parte dos militantes de esquerda deixaram as avenidas devido à discordância com as pautas de intervenção militar e com o acirramento das disputas. O MPL também se retirou do movimento repudiando a hostilidade com os partidos políticos e as pautas conservadoras que se infiltraram no movimento.

Ao contrário de interpretações que veem esses protestos como um movimento de direita desde seu início, é preciso entender que a direita surgiu como uma reação conservadora ao caráter progressista das manifestações originais.  

Se em 2013 a direita ainda não tinha protagonismo nas ruas, a partir de 2014 começou um processo claro de organização e radicalização conservadora. 

“A direita foi para a rua e não saiu mais.”

Olavismo

O surgimento e a difusão de teorias conspiratórias, especialmente a do “marxismo cultural”, promovida por figuras como Olavo de Carvalho, foram impulsionadores para esse crescimento da ultra-direita. Essa narrativa, adaptada de ideias da extrema-direita internacional, acusava a esquerda de promover uma suposta destruição dos valores tradicionais, como da família e da religião, por meio da cultura e da educação. Apesar de não ter base factual, a teoria encontrou terreno fértil em setores da sociedade já predispostos a temer uma imaginária “doutrinação esquerdista”.

Bolsonaro se colocava contra o uso do livro de educação sexual nas escolas, mesmo que não componha o acervo de licitações de obras do MEC / Antonio Augusto/Câmara dos Deputados

A figura de Bolsonaro já ascendia como ícone nacional. Dois elementos foram cruciais para esse processo, segundo Demian Melo. Primeiro, a denúncia fantasiosa do kit gay em 2011, quando Bolsonaro ainda era deputado federal e se colocou contra o livro Aparelho Sexual e Cia e o programa Escola Sem Homofobia. A segunda peça que alavancou Bolsonaro foi o combate à Comissão Nacional da Verdade, que restabeleceu os laços do ex-presidente com o comando das Forças Armadas.

Do Bolsonarismo ao golpe

Criado com o Padlet

Segundo o cientista político e professor da PUC Minas Malco Camargos, a tentativa de ruptura não começou no dia 8 de janeiro, mas foi sendo construída ao longo do mandato anterior. “Desde antes da eleição, já havia um movimento de deslegitimação das instituições, principalmente daquelas que têm o papel de controlar o Governo federal, como a imprensa, a universidade e, acima de tudo, o Judiciário. As críticas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foram uma constante.”

O saudosismo da ditadura, associado à aposta em um “salvador da pátria”, alimentou uma base radicalizada e fiel. A construção dessa imagem de Bolsonaro como mito foi impulsionada pela manipulação religiosa, por alianças com setores econômicos e pela propaganda constante nas redes sociais. 

Como explica o sociólogo Robson Sávio, professor da PUC Minas e ex-coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais, o governo não passou uma semana sequer sem lançar algum ataque às instituições, sempre buscando fragilizá-las para justificar, no futuro, uma ruptura.

Muito antes do atentado em Brasília, o país já testemunhava sinais de desestabilização institucional. Ainda durante a campanha eleitoral de 2022, Jair Bolsonaro e seus aliados começaram a questionar abertamente a legitimidade do processo eleitoral, especialmente das urnas eletrônicas, sem prova concreta.

Tarcísio de Freitas (Republicanos), Bolsonaro (PL) e Romeu Zema (Novo) / Foto: Zanone-Fraissat / Folhapress

Após a derrota nas eleições presidenciais de 2022, esses ataques se intensificaram, criando uma narrativa de que o resultado seria fruto de uma fraude, narrativa que alimentou os protestos e bloqueios em rodovias, a instalação de acampamentos em frente a quartéis militares e, por fim, a invasão em Brasília. O interessante é que a fraude só teria ocorrido para os adversários de Bolsonaro, visto que pessoas ligadas ao ex-presidente também foram eleitas no mesmo processo eleitoral, como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Romeu Zema (Novo) em Minas Gerais e Claudio Castro (PL) no Rio de Janeiro.

Desinformação

Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), houve uma campanha sistemática de desinformação sobre as urnas eletrônicas, iniciada ainda em 2018 com alegações nunca comprovadas de fraude. O governo manteve o tom de desconfiança, em 2019, com Bolsonaro repetindo críticas ao sistema e a deputada Bia Kicis (PL) apresentando uma PEC para o voto auditável.

Em 2020, os ataques se intensificaram, com Bolsonaro citando teorias conspiratórias e aproveitando eventos internacionais, como a eleição nos EUA, para comparar supostas fraudes. Já em 2021, após a rejeição da PEC do voto impresso, o governo promoveu manifestações como a tanqueata. Em 2022, o PL contratou um relatório tendencioso, e Bolsonaro se reuniu com embaixadores para atacar as urnas. O ápice foi o envolvimento do hacker Walter Delgatti, recrutado por aliados bolsonaristas para forjar provas de fraude, em um plano articulado para deslegitimar as eleições e invadir o sistema do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) juntamente com a então deputada da base bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP).

hacker Walter Delgatti e Carla Zambelli / Foto: Reprodução X

Nos dias que antecederam o segundo turno de 2022, Bolsonaro e aliados tentaram adiar as eleições, alegando irregularidades na veiculação de propaganda em rádio. O TSE rejeitou as acusações por falta de provas, mas o clima de instabilidade já estava criado. Paralelamente, a Polícia Rodoviária Federal realizou operações suspeitas no Nordeste, região onde Lula tinha mais apoio, dificultando que os eleitores chegassem às urnas.

O 8 de janeiro é símbolo de erosão de uma parcela institucional da democracia, mas não é a única dimensão em que a democracia no Brasil é fragilizada. Ou seja, a inconstância democrática não é temporal, mas em função da classe social.

Conforme explica o professor e mestre em Ciências Sociais Wallison Brandão, os grupos mais radicais da extrema direita tinham o desejo de permanecer no poder. Ele define o poder, por meio da Teoria Geral do Direito, de Norberto Bobbio, como um meio para um fim. Na leitura dele, no caso de Bolsonaro, a finalidade era ter um Estado que pudesse tutelar a sociedade e ser um vetor de promoção de determinados valores, supostamente conservadores.

Com apoio de setores da população ao bolsonarismo e à ideia de invadir e destruir a sede dos Três Poderes, o ambiente era propício à ruptura democrática. Afinal, 58.206.322 pessoas votaram em Bolsonaro no segundo turno em 2022 e cerca de quatro mil pessoas participaram dos ataques antidemocráticos do 8 de janeiro.

Identificação

Demian alerta que não podemos reduzir o apoio popular da direita à ignorância, pois essa lealdade está ligada à capacidade da extrema direita de traduzir frustrações reais. Ou seja, mesmo que essa tradução aponte para um projeto que não é viável, os apoiadores se sentem representados e se apegam a isso.

Há uma dimensão profunda dessa crise da democracia neoliberal que o 8 de Janeiro traz à tona. Segundo Nara, é o fato de que para muitas parcelas da população brasileira que nunca acessaram de fato as garantias democráticas, sequer faz sentido falar em defesa da democracia hoje.

Pesquisadores explicam o apoio popular ao bolsonarismo / Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Quando as camadas mais vulneráveis se encontram sem o apoio e a presença do Estado,  agarrando-se a qualquer expectativa de melhoria de vida, encontram no bolsonarismo uma resposta aos seus anseios e frustrações e se dispõem a lutar por ele.

Além disso, ela explica que o apoio dessas camadas não é por motivações econômicas, já que a a extrema direita não atende aos interesses de classe, mas oferece uma resposta moral para sua condição de humilhação constante.

Quando as forças democráticas dizem que precisamos derrotar o bolsonarismo e a extrema direita em nome da democracia, para vastas parcelas da população, isso não significa nada, porque a democracia nunca passou de uma abstração vazia, explica Nara.

Segundo a professora, a extrema direita passou a ocupar nos últimos anos um espaço historicamente ocupado pelas esquerdas, levando as pessoas às ruas, para fazer protestos e mobilizações, e conseguiu emplacar a espécie de saída insurrecional que foi o 8 de janeiro.

Ações falhas que permitiram o Bolsonarismo

Para Demian Melo, a ascensão de Bolsonaro só foi possível a partir da normalização de figuras da extrema direita, tornando-as aceitáveis. Essa normalização passou, inclusive, pelo Judiciário, hoje alvo do bolsonarismo. Segundo ele, essa esfera criou condições para que Bolsonaro chegasse ao poder. 

Pesquisadores explicam a motivação para o apoio popular à Bolsonaro e à Extrema Direita / Foto: Pilar Olivares/Reuters

“Alexandre de Moraes engavetou um processo acusando Bolsonaro de ser racista em 2018, o que inviabilizaria a candidatura dele. Esse mesmo Supremo negou o habeas corpus preventivo de Lula e permitiu que ele fosse preso numa situação absolutamente ilegal”, defende o historiador.

A professora Nara ressalta que a esquerda não tem dado conta de se mobilizar e de se articular politicamente entre as camadas empobrecidas, sobretudo nas periferias das grandes cidades brasileiras abrindo espaço para que a extrema direita atuasse. “A gente precisa lembrar do trabalho que tem sido feito ao longo de anos pela extrema direita por meio das igrejas, em especial as neopentecostais, pelo crime organizado e de outras ações sociais filantrópicas nas periferias”.

O historiador Demian corrobora com essa tese, e diz que apenas a crise neoliberal não determina que a saída vai ser a extrema direita, isso depende da relação de forças políticas. Se tivéssemos uma esquerda que não estivesse desmoralizada, o cenário poderia ter sido diferente, segundo ele.

Contexto internacional

Nos últimos anos é possível acompanhar diversos ataques à democracia ao redor do mundo, como a invasão do Capitólio e as políticas de Donald Trump nos Estados Unidos, a adoção de prisão em massa pelo governo de El Salvador, a tentativa de golpe na Coreia do Sul, as medidas anti-cidadania para estrangeiros na Itália, e a invasão da sede dos Três Poderes no Brasil, em 8 de janeiro de 2023. São exemplos de uma crescente presença da extrema direita e das práticas violentas ou de exceção na condução de políticas públicas.

Invasão ao capitólio:

O professor Wallison Brandão, também pesquisador dos golpes de estado na América Latina, explica que mesmo quando o mundo sai de um cenário de bipolaridade, como havia na Guerra Fria, para um cenário multipolar, como o atual, os Estados Unidos continuam sendo a potência hegemônica do ponto de vista militar. Mas não do ponto de vista econômico, pois passa a dividir espaço com outras potências, como a China.

“A associação entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, agora com outros parceiros, através do BRICS, faz com que os golpes de estado militares caiam em desuso e o neogolpismo se transforme em uma opção”, explica o professor.

A tentativa de golpe de Bolsonaro é novidade no meio contemporâneo, segundo Brandão. E por mais que o contexto internacional favoreça o crescimento da extrema direita, em 2023 o presidente dos Estados Unidos era Joe Biden, não tão favorável a golpes de estado. Para Wallison, se Donald Trump fosse presidente dos Estados Unidos em 2023, o 8 de janeiro não seria apenas uma tentativa.

Confira alguns países, além do Brasil, que vivem uma presente e perceptível ascensão da extrema direita:

Criado com o Padlet

A extrema direita

Conforme especialistas ouvidos pela reportagem, entre as características mais comuns das práticas da extrema direita – ou ultra direita – estão a depreciação do “politicamente correto”, a nostalgia pelos regimes autoritários e a valorização de teorias conspiratórias e negacionistas, além da prática de chamar os discordantes de comunistas. O que vale é o discurso “moral” e ultraconservador, a luta anticomunista e pró-meritocracia.

Uma coisa é ser conservador, outra é ser de direita, e outra é ser extremista. É possível uma pessoa conservadora defender a democracia, assim como alguém mais alinhado ao espectro político da direita. Enquanto o conservadorismo é um pensamento político que defende as instituições sociais tradicionais, como família e religião, tradições e convenções, o extremismo de direita ou ultra consservadorismo vai defender tais valores, mas de modo radicalizado e pouco aberto a negociações e ao diálogo democrático. Pode ainda chegar ao limite de desejar a eliminação de um grupo social ao qual discorde.

Dentre as justificativas para a crescente presença e ampliação da extrema direita em várias partes do mundo, estão a de que isso seria uma resposta ao aumento dos direitos fundamentais das minorias sociais no fim do século XX, a partir das lutas identitárias e dos movimentos sociais. Entretanto, para Nara Scabin, apenas uma contrarresposta não é suficiente para explicar a complexa presença neoliberal reacionária na política.

Tanto Wallison Brandão quanto Demian Melo, acrescentam o contexto internacional no avanço da extrema direita. Para Melo, há uma aliança estratégica entre países – como aconteceu no período da Segunda Guerra, com Hitler (Alemanha) e Mussolini (Itália), e com a Operação Condor, pacto que firmou as ditaduras na América Latina. Isso faz com que exista circulação de agendas e de apoio, como por exemplo, a instituição de inimigos imaginários comuns. 

É um momento muito importante no século XXI, porque, desde a derrota dos alemães e do fascismo na Segunda Guerra Mundial, é a primeira vez que os partidos e os grupos de extrema direita se constituem como alternativas para vários setores na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul. Existe um processo de unidade e proximidade entre esses grupos.

Preservação do status quo 

Robson alerta que o poder político nas sociedades capitalistas está sempre ligado ao poder econômico, que costuma se sobrepor. As elites apoiadoras de Bolsonaro, segundo ele, tiveram ganhos em seu mandato. Ele destaca que, de modo geral, as elites se beneficiam com governos autoritários. Isso acontece porque são governos que geralmente favorecem a concentração de riqueza e renda na mão de poucos.

Nara concorda e completa que, para essas classes, o golpe representaria uma forma de ampliar ainda mais o acesso a privilégios políticos e econômicos, apoiando-se em uma perspectiva de política econômica neoliberal, que não faria concessão a medidas minimamente redistributivas.

No Brasil, os governos autoritários se aliam e se aliaram ao poder militar, político e econômico. O golpe de Estado numa sociedade capitalista só resulta em sucesso quando o poder econômico se associa ou com poder político ou com poder militar ou com ambos, para implementar uma ruptura institucional.

Colab PUC Minas

Colab é o Laboratório de Comunicação Digital da FCA / PUC Minas. Os textos publicados neste perfil são de autoria coletiva ou de convidados externos.

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