Antes do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em 2019, o Rio Paraopeba era utilizado para a pesca, para a irrigação de plantações e para a dessedentação de animais. Para além de seu uso econômico, porém, o Rio fazia parte da vida de comunidades que vivem em seu entorno como fonte de lazer e local de convivência. Suas águas estavam entranhadas no cotidiano dessas populações – e, hoje, continuam irrigando suas memórias.
A Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba, com cerca de 13.643 km² de extensão e importância fundamental para o abastecimento e atividades econômicas de dezenas de municípios mineiros, foi gravemente afetada pelo rompimento da barragem da Vale na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019. A violação ambiental liberou cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, resultou em 272 mortes e contaminou mais de 300 km do Rio, comprometendo a fauna, a qualidade da água e a subsistência de comunidades ribeirinhas. Desde então, a região passa por monitoramento e ações de reparação ambiental e socioeconômica.
Em Betim, uma das cidades da região metropolitana de Belo Horizonte por onde o Rio Paraopeba passa, o coletivo Juntos Somos Mais Fortes surgiu após o crime ambiental da mineradora para reunir famílias dos atingidos pela tragédia, ligadas a uma equipe de reparação e reflorestamento. O grupo, que começou da união de doze famílias, visa à produção de alimentos em sistema agroflorestal (SAFs) e à reconstrução do modo de viver de seus membros. Seus membros residem no Assentamento 2 de julho, que existe há cerca de 26 anos, quando foi fundado por 63 famílias.
Além do cultivo de alimentos para subsistência, os membros do coletivo Juntos Somos Mais Fortes buscam criar momentos de sociabilidade para conversar, rir e tentar ressignificar o cotidiano no entorno do Paraopeba, local que já foi sinônimo de vida, mas hoje carrega as consequências da inundação pela lama que gerou contaminação e isolou populações ribeirinhas. Antes do crime ambiental da Vale, os ribeirinhos podiam pescar no Rio e utilizar sua água para trabalhar na terra, produzir alimentos e vendê-los como fonte de sobrevivência.
Após o rompimento da barragem, a comunidade local também foi vitimada por enchentes que chegaram a deixar moradores ilhados. Assim, os impactos gerados pelas águas das chuvas agravaram uma situação de vulnerabilidade que passa também pelo preconceito enfrentando por ribeirinhos quando tentam comercializar seus produtos agrícolas, já que potenciais compradores sentem-se inseguros de consumir alimentos cultivados nas proximidades do Paraopeba.
Ainda em 2019, o Governo de Minas Gerais proibiu a utilização das águas do Rio. Para a comunidade do Assentamento 2 de julho, isso significou a impossibilidade de lavar roupas e de consumir e vender peixes e a dificuldade de acesso à água potável.
De acordo com o coletivo Juntos Somos Mais Fortes, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas) monitora o Rio Paraopeba a cada quinze dias e, em visita recente, constatou melhora em seus níveis de contaminação. Apesar disso, a moradora Rosilene Barbosa dos Santos faz questão de dizer que o Rio ainda está muito lomge de estar limpo. Segundo ela, pessoas que residem na região continuam sofrendo com problemas de saúde ao entrar em contato com as águas, incluindo dificuldades respiratórias e coceira – o que resulta em despesas com a aquisição de medicamentos.
O coletivo também relata enfrentar dificuldades para vender produtos agrícolas cultivados no entorno do Paraopeba, já que muitos compradores afirmam que eles viriam de “gente morta”. Diante dessas dificuldades, muitas famílias se mudaram do assentamento ao longo dos últimos anos à procura de emprego e melhor qualidade de vida. Para quem sempre viveu da terra às margens do Rio, a contaminação representa um duro golpe em seu meio de sobrevivência, abalado pela dificuldade de irrigação da lavoura, e em sua identidade, forjada na relação com as águas.
De acordo com Jonas Vaz, graduado em Ciências Sociais e servidor do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Apoio Comunitário, Inclusão e Mobilização Sociais, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (CAO-Cimos/MPMG), a condição socioeconômica é fator decisivo da forma como as pessoas conseguem superar as dificuldades impostas pela contaminação do Rio. Ele argumenta que a poluição em si não separa ricos de pobres, atingindo a todos; porém, pessoas que dispõem de mais recursos financeiros conseguem buscar alternativas para lidar com o impedimento do uso do Rio – diferentemente de camadas sociais em condição de vulnerabilidade econômica, que não dispõem de alternativas para a realização de suas atividades cotidianas.
No caso do Assentamento 2 de julho, apesar de conquistas importantes como a demarcação de terras, a perfuração de poços artesianos e o recebimento de água da Prefeitura, frutos de mobilização coletiva por reparação, as famílias que ali residem ainda não conseguiram se reerguer por completo.
Bacia do Paraopeba: impactos ecológicos e sociais
Lúcia Karine de Almeida, professora de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas, explica que a população que habita o território coberto pela Bacia Hidrográfica do Paraopeba é influenciada por tudo o que acontece en suas águas. Assim, se a água usada por mineradoras é “devolvida” ao Rio sem estar despoluída, qualquer pessoa que esteja abaixo dos sentidos das águas sofrerá as consequências.
Além disso, diferentes bacias hidrográficas estão interligadas e deságuam no oceano, formando uma rede de corrente fluvial, de modo que os impactos de desastres ambientais como o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho não se limitam a um único Rio. O Paraopeba, por exemplo, deságua no Rio São Francisco, que, por sua vez, chega ao Oceano Atlântico.
Como explica a bióloga Angélica Vasconcellos, a fauna do Rio Paraopeba também foi profundamente afetada pelos rejeitos de mineração. A especialista explica que muitas espécies perderam hábitat em decorrência do crime ambiental da Vale, enquanto outras, por mais que continuem vivendo nos arredores do Rio, apresentam altos níveis de contaminação em seus organismos contaminados. Há, também, casos de animais que não conseguiram se adaptar à mudança brusca em seu estilo de vida.
O rompimento da barragem de Brumadinho levou uma enxurrada de contaminantes para as águas do Paraopeba – como metais pesados, os mais perigosos hoje, que afetaram toda a ictiofauna do Rio e tornaram seus organismos impróprios para consumo humano. Para se ter uma ideia, logo após o rompimento, segundo Angélica, ocorreu uma grande perda de aves sensíveis ao ferro, como espécies de tucano.
Como garantir o direito ao rio?
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba, coordenado por Heleno Maia, faz um alerta sobre a mineração no estado de Minas Gerais. A maioria das barragens de rejeitos são do tipo “montante”, que tem o maior risco de se romper. Há, por outro lado, uma alternativa mais segura: o modelo denominado “pilha de rejeito”, adotado em Congonhas, mais indicado tendo em vista o fato de não haver previsão para o encerramento da mineração no estado. Nessa modalidade, em caso de rompimento, toda a sujeira é destinada para outro local.
Ao meu ver, o que pode ser feito para evitar que barragens se rompam futuramente? Eliminando todas as montantes. O que é uma barragem a montante? É uma barragem que é barrada com o próprio rejeito. Ou seja, não tem nenhuma estrutura segura que possa garantir que esse rejeito não entre em efeito de liquefação e possa se romper. Então a única forma hoje é eliminando todas as barragens à montante” – Heleno Maia.
Para Heleno Maia, a reversão da contaminação das águas levará tempo. Segundo o coordenador do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba, a despoluição depende da dragagem de todo o rejeito que ainda se encontra no fundo do Rio. Além disso, ele defende a importância do saneamento básico como forma de mitigar outras fontes de poluição do Rio: “Betim tem um grande poluidor, que é o rio Betim, que leva milhões de litros de esgoto in natura para o Rio Paraopeba diariamente. Isso precisa ser controlado para que possamos ter um rio com qualidade. Estamos trabalhando, inclusive, para isso acontecer”.
Vale lembrar que o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, no dia 5 de novembro de 2015, é outro exemplo de crime ambiental decorrente da atuação de grandes empresas de mineração, com prejuízos ambientais, econômicos e sociais profundos para as populações atingidas.
Reportagem desenvolvida por Ana Paula Valentim, João Gabriel Fernandes, João Pedro Diniz e Neemias Lourenço para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital (campus Coração Eucarístico), sob supervisão da professora Nara Scabin, no 2º semestre de 2025.
