Os gritos, o desespero, o choro, a tentativa de se salvar, a sensação de perder tudo, a morte. Foi assim que a população do distrito de Bento Rodrigues, em Minas Gerais, encontrou-se às 16h20 do dia 5 de novembro de 2015, há nove anos. O Brasil recebeu atônito a notícia do que foi considerado pelo Ministério Público Federal o maior desastre ambiental do país e, por especialistas, de um crime socioambiental de proporções inimagináveis até aquela ocasião.
Controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton, a Barragem de Fundão, de propriedade da mineradora Samarco, rompeu-se despejando cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. Isso corresponde a 24 mil piscinas olímpicas.
A lama tóxica percorreu centenas de quilômetros, atingindo o Oceano Atlântico e provocando danos irreversíveis à fauna e à flora dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Estudos realizados por cientistas indicam que a recuperação total do ecossistema pode levar décadas, enquanto algumas espécies correm risco de extinção. Além disso, o fornecimento de água em cidades ribeirinhas, como Governador Valadares, Belo Oriente, Periquito e Baixo Guandu foi interrompido, agravando os desafios para as comunidades atingidas.
A tragédia marcou a vida de milhares de pessoas que moravam na região e tiveram que se mudar, ou, até mesmo, perderam algum ente querido. O maior desastre ambiental do Brasil deixou marcas que, mesmo após nove anos, ainda provocam feridas e não podem ser esquecidas. A tragédia resultou em 19 mortes, sendo que uma das vítimas, Edmirson José Pessoa, permanece desaparecida até hoje.
Lembranças do pânico
A moradora do Novo Bento Rodrigues, Darlisa das Graças, de 58 anos, é cozinheira e relata os momentos de pânico ao descobrir a ruptura da barragem. “Fiquei sabendo em casa, a gritaria foi tanta que, de curiosidade, eu abri a janela e o povo já estava correndo rua afora. Aí a menina só gritou comigo: “sai de casa que a barragem estourou. Foi a conta de abrir a porta, peguei nada”.
Foram momentos de terror vividos pelos habitantes do distrito, com o psicológico completamente abalado, muitas pessoas ainda tentam superar a tragédia e se curar. Para se ter uma dimensão, ao ser questionada sobre conceder entrevista, outra moradora atingida pela lama conta que não se sentia confortável em realizá-la. Para ela e para a família, o assunto é muito delicado e eles decidiram que não falariam mais sobre isso, pois a dor ainda está presente.
O trabalho árduo dos bombeiros
Leo Farah, atual capitão do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, era tenente na época do desastre e relata como foi sua experiência atuando na linha de frente dos resgates. Ao receber o chamado, por volta das 16h, de um coordenador diretamente para o oficial de área do Bemad, ele já imaginava que a ocorrência seria grave. Isso porque a unidade militar era especializada em desastres e ligações como essa só acontecem em casos raros e de extrema urgência.
A equipe já possuía experiência em desastres semelhantes, como o rompimento da barragem em Itabirito, no ano anterior. Porém, ele jamais imaginou a dimensão do que enfrentaria. “Mesmo que a gente fale que a gente faz um planejamento mental das nossas ações, eu não imaginei que seria daquele tamanho”, relembra Leo Farah.
Os bombeiros se deslocaram com um aviso prévio de informações. As primeiras eram que havia uma escola com 300 crianças que estava soterrada e que a cidade de Mariana estava inundada. Foram preparados para isso. No áudio a seguir o atual capitão e ex-tenente recorda os detalhes do primeiro momento após a ligação:
A atuação no local era cercada de desafios, como a periculosidade dos resgates, ou as rápidas tomadas de decisão. Uma das escolhas cruciais foi a de pousar o helicóptero em Paracatu de Baixo, um distrito que estava na rota da lama, e que a qualquer momento, seria atingido. Apesar do risco, a equipe conseguiu evacuar com várias pessoas, levando-as para o ponto mais alto do distrito. “A gente não sabia quanto tempo a gente tinha, fizemos o possível para tirar o máximo de pessoas. Arrombamos portas, levamos gente em moto, em carro, para o alto da cidade”, conta Leo.
A Barragem de Fundão estourou, desestabilizando a de Germano, e logo em seguida a de Santarém, uma barragem de água, o que resultou na mistura com a lama, galgando até atingir Bento Rodrigues. O primeiro rejeito era mais denso, mais “cremoso”, entretanto, ao chegar na Barragem de Santarém, ele se torna mais “líquido” devido à água, fazendo com que a lama ganhe mais velocidade para atingir o distrito. Apesar do uso de tecnologia, cães farejadores e o apoio de bombeiros de outros estados, as buscas foram dificultadas pela extensão do território atingido.
Para Leo, um dos momentos mais marcantes foi a decisão de descer com a lama vindo, sendo quase uma operação suicida. O capitão temia o rompimento da outra barragem e narra: “[…] aí eu falo com o meu time, ‘pessoal olha, a outra barragem vai romper, a gente tá no caminho da lama, se romper, não tem pra onde correr, mas eu vou ficar’. E aí cada um do seu time fala que vai ficar junto com você. Essas decisões são muito impactantes, porque você vê o soldado Magalhães, se arriscando, pendurado no helicóptero para tirar uma senhora da lama com o próprio braço […]”.
Algumas pessoas foram encontradas a mais de 160 km do local original, as buscas precisaram ser interrompidas, porque uma empresa de engenharia emitiu um laudo dizendo que do jeito que a situação estava, e do jeito que as buscas estavam, com escavações, poderiam desestabilizar a barragem.
Pelos olhos da cidade de Antônio Pereira
O distrito de Antônio Pereira se encontra a uma distância menor que 40 km de Bento Rodrigues, recebendo também a lama de rejeito tóxico da mineração. Ao conversar com alguns moradores do local, o sentimento é de preocupação e impunidade quando se pensa no que a cidade se tornou após a tragédia de Mariana.
Com aproximadamente 3.500 habitantes, a comunidade expressou profunda indignação diante da exploração realizada pela Vale, destacando como isso afeta diretamente suas rotinas. Os moradores enfrentam há nove anos os impactos ambientais causados pela empresa, o sentimento diário de preocupações quanto à segurança, dificuldades econômicas e a falta de suporte, interfere na qualidade de vida e saúde desses cidadãos.
Ao conversar com José Eustáquio de Oliveira, 69 anos, ele compartilha como o crime ambiental impactou sua vida, mesmo estando distante do ocorrido. Três meses antes, José trabalhava na barragem que rompeu, mas foi demitido pouco tempo depois. Durante seu período lá, frequentemente havia reclamações sobre as condições da barragem, que estava drenando muita água. Muitos trabalhadores, mesmo temendo pelas vidas, não tinham escolha a não ser continuar no local.
Foi notável a tristeza e a revolta na fala do morador. José não perdeu apenas um emprego, mas também dois amigos que trabalhavam na barragem que se rompeu. A dor de conviver com esse momento tão traumático é palpável nas palavras dele. Ao falar sobre o acidente, a lembrança dos amigos e a impotência diante das precárias condições de trabalho estavam evidentes. A perda foi tripla: a de colegas de trabalho, a de uma parte de sua própria história, marcada por uma tragédia que poderia ter sido evitada, e a dos moradores de Bento Rodrigues e Antônio Pereira, que também foram vítimas desse desastre. José relata:
Luciana Jandssa, de 30 anos, é eletricista, também natural de Antônio Pereira, relata os desafios de viver na região: “É bem complicado morar aqui em torno dessa mineradora, porque a gente é afetado de várias maneiras. Aqui tem muito carro, muita poeira e ruído. Então, a gente vive porque não tem outro lugar, se tivesse eu sinceramente sairia daqui”.
A impunidade e a preocupação com o futuro continuam a marcar a vida dos moradores. A perda de vidas, como a de amigos e familiares de José Eustáquio de Oliveira, e as dificuldades diárias enfrentadas por Luciana Jandssa, evidenciam o sofrimento emocional e físico de quem teve a vida drasticamente alterada por um desastre que poderia ter sido evitado.
Afinal, houve justiça diante da tragédia?
Após nove anos do rompimento da barragem, a pergunta que persiste é: houve justiça? A análise dessa questão envolve um labirinto de responsabilidades, tecnologias ultrapassadas e questionamentos sobre o processo de reparação às vítimas.
No último dia 14 de novembro, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região, de Ponte Nova, absolveu as empresas Samarco, Vale, VogBR e BHP Billiton, e sete pessoas, entre diretores, gerentes e técnicos envolvidos no processo. A decisão alegou “ausência de provas suficientes para estabelecer a responsabilidade criminal” direta e individual dos réus. A denúncia do Ministério Publico Federal (MPF) envolvia 21 pessoas, mas após a sentença o processo foi arquivado. Um processo contra a Vale e a BHP Billiton ainda tramita na Justiça britânica, em Londres, e espera-se que a sentença saia ainda no primeiro semestre de 2025.
Traumas
Jacqueline Aparecida Dutra, de 48 anos, é técnica de enfermagem do trabalho e nos conta sobre os traumas gerados pela tragédia. Quatro meses antes, no mesmo ano, ela enfrentou dificuldades no período pós-parto. O filho, que nasceu prematuro e com necessidades especiais, sofreu uma parada cardiorrespiratória, o que resultou em sequelas neurológicas e pulmonares.
Jacqueline, que não imaginava perder o marido em meio à lama, naquela época, se via dependente da ajuda da mãe e de amigos, já que as pessoas que receberam total ajuda da Samarco foram os moradores da região atingida. As pessoas que perderam entes queridos receberam pouca ou nenhuma ajuda na. visão dela. Foram 40 dias até localizarem o corpo de seu marido, e somente após isso que conseguiu entrar com pedido de pensão por morte e ter uma renda. Ela desabafa: “meu marido e os outros 18 que tiveram sua vida ceifada, por ganância daqueles que deveriam garantir a segurança e a integridade dos seus trabalhadores viraram somente estatísticas no meio de toda aquela lama”.
Reflexão
Léo Farah, bombeiro que atuou nas buscas em Mariana, reflete a tragédia com a experiência de quem esteve no centro dos acontecimentos. Ele destaca que as barragens brasileiras, como a de Fundão, foram projetadas em épocas de conhecimento técnico limitado. Na década de 1960, por exemplo, acreditava-se que o Brasil era imune a terremotos, o que resultou em estruturas incapazes de suportar pequenos sismos. Essa realidade técnica levanta a questão: foi um erro de projeto, negligência ou uma combinação de ambos?
De acordo com Antônio Carvalho, da Defensoria Pública de Minas Gerais no rompimento da barragem em Mariana, as empresas responsáveis nunca questionaram a obrigação de reparar os danos. A execução dessa reparação, conduzida pelo Tribunal Federal Regional da 6ª Região (TRF-6), era um processo de solução consensual do desafio, sendo entregar a reparação pelo rompimento da Barragem do Fundão. Uma das maiores dificuldades, segundo ele, foi “mostrar para a população o valor de estar aberto a um processo conciliatório”, e lidar com diferentes grupos sociais, que camuflavam interesses próprios contrários à reparação, criticando a tentativa de acordo entre as empresas e os afetados pelo crime ambiental.
Entretanto, o defensor público destaca que a reparação nunca será completa. Para os que perderam familiares ou viram suas vidas desmoronarem, nenhum valor pode restaurar o passado. “Eu falo isso que é muito difícil, para quem perdeu uma pessoa, não há vaga no mundo, não há valor no mundo que vá compensar. […] O que a gente pode fazer, é entregar uma resposta que seja possível. Para aqueles que perderam pessoas, uma indenização justa. Para aqueles que perderam coisas, uma indenização justa, que seja suficiente para que a pessoa recomponha aquilo que perdeu.”
Para as famílias que perderam suas casas, entes queridos e o trabalho, essa discussão técnica não traz conforto. A realidade é que a justiça por completa, jamais será possível. Uma vez que várias pessoas perderam entes queridos e bens materiais de valores incalculáveis, não há dinheiro ou justiça que possa reparar. Questionado sobre o assunto, o atual capitão dos Corpo de Bombeiros afirma:
Não há uma opinião unânime, nem mesmo entre os moradores, se houve justiça ou não. Ao mesmo tempo que alguns reconhecem o esforço da Samarco em reparar os danos, outros enxergam com outros olhos, já que perderam pessoas próximas além de todos seus bens materiais, e que para eles isso é algo irreparável. Além disso, tem o impacto psicológico que assola os sobreviventes até hoje. Esse foi o caso de Darsila, que teve os custos com tratamento psicológico à base de remédio durante seis meses bancados pela Samarco.
Cidade fantasma
Ao chegarmos no Novo Bento Rodrigues, nos deparamos com uma cidade “cinematográfica”, tudo aparentemente bonito, arrumado e com diversas casas em construção. Entretanto, o que reinava era o ar de solidão, a tristeza e a tentativa de superar a enorme tragédia. Mas, como superar em uma cidade em que não há nada para fazer? Existe uma igreja e uma mercearia, mas tudo tão distante que os habitantes sem meio de transporte não conseguem chegar.
Os poucos moradores que vivem lá tentam suportar o tédio dentro da cidade vazia, a cozinheira Darlisa das Graças desabafa: “É diferente, eu tenho conversado muito com os vizinhos aqui e é pouca gente que está se adaptando aqui. Eu mesma, me adaptei aqui trabalhando, porque se eu ficar à toa aqui eu não consigo não. Não tem nada aqui não, tem uma mercearia lá na frente, é tudo distante.”
Ao seguirmos viagem em busca do antigo Bento Rodrigues, fomos surpreendidos com uma longa estrada de terra recheada de placas reafirmando ser área de risco e que invadir as propriedades da Samarco e da Vale é crime. Ao chegarmos no caminho que dava acesso ao distrito, paramos em uma cancela e fomos recebidos pela informação de que a partir dali não poderíamos nem tirar fotos e nem filmar.
O segurança anotou o nome de quem estava dirigindo e nos disse que já havia avisado o rota daquela estrada que estávamos a caminho, e também, que tínhamos 9 km pela frente, mas que não poderíamos parar de forma alguma e nem dar meia volta, tínhamos que sair pela outra cancela, no final da estrada. As respostas foram sucintas e diretas, como se não fossemos bem-vindos naquele local, fomos barrados e impedidos de ver os estragos que todos puderam ver.
Durante os 30 minutos de carro entre o “novo” e o “velho” Bento Rodrigues, havia inúmeras placas sinalizando os perigos do caminho, o alerta para não adentrar a propriedade privada e placas indicando os caminhos de fuga. O que chamou a nossa atenção foram as sirenes localizadas entre os dois distritos. Havia ainda algumas pichações feitas por cima delas com os dizeres “assassinos” ao lado de uma cruz.
Tanto no Novo Bento Rodrigues – com poucas pessoas, as construções planejadas e as placas no caminho quanto no antigo Bento Rodrigues – com as pichações, as sinalizações de perigo e proibitivas e a maneira como fomos tratados ao tentar atravessar o caminho, a sensação era de muito desconforto, de marcas que pareciam ser apenas maquiadas pelas empresas responsáveis.
A reportagem acionou o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), que enviou a seguinte nota:
“O acordo, cuja construção exigiu tempo e paciência, é uma vitória de todos os que por ele se dedicaram de corpo e alma. Mas é uma resposta também aos que tentam lucrar com a tragédia no exterior.
A assinatura do acordo pelo Estado brasileiro, representado pelas autoridades máximas de Poderes da República, revela a participação de todas as instâncias legais em sua elaboração e demonstra ao mundo que o Brasil respeita os direitos humanos, age subordinado à Constituição e, sobretudo, exibe capacidade de gerir suas próprias crises, em qualquer âmbito.
O ganho adicional, só menor do que a tragédia, está na lição dela extraída e na sua consequência imediata de reformulação do setor mineral, em transição para adequar-se, de forma gradual a padrões globais estabelecidos como parâmetro irrecorrível para o desenvolvimento econômico em tempos de emergência climática.
O caminho está traçado e leva inexoravelmente a um capítulo, já em curso, que tem os minerais como elemento essencial, indispensável e indissociável da nova economia.
A chaga da tragédia é a cicatriz a impedir qualquer desvio de rota que arrisque a repetição de tal drama humano.
A dívida material está paga. A humana, jamais será quitada, e a forma de valorizá-la é fazer de sua memória o fiscal de todos e de cada um.”
Acionamos também a assessoria de imprensa da Vale de Minas Gerais, que nos respondeu apenas direcionando para a Samarco e a Fundação Renova. O Ministério Público de Minas Gerais também foi procurado, na tentativa de realizar uma entrevista com o promotor de atendimento aos atingidos, mas não foi possível o agendamento até a data de publicação.
Conteúdo produzido por Bernardo Matias Guimarães, Clara Bernardes Morais Almada, Isadora Vianna Ribeiro, Maria Clara Ottoni Alvarenga, Mariana Figueiredo Hamdan, Mateus França da Costa e Pedro Augusto Fraga Duarte sob a supervisão da jornalista e professora Fernanda Sanglard na disciplina Apuração, Redação e Entrevista. A monitora Marianna Brandão colaborou com a edição.