Há sete anos, em 5 de novembro de 2015, rompia a Barragem de rejeitos de Fundão, em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG). A barragem era propriedade da mineradora Samarco, que, por sua vez, é propriedade de outras duas mineradoras: a brasileira Vale e a australiana BHP, que é, hoje, a maior do mundo.
Pouco tempo depois, o relatório final do Ministério Público do Estado de Minas Gerais sobre o rompimento concluiu que ele teria ocorrido em função de obras na barragem, conforme apontou a Agência Brasil, em 2016. Em 2013, dois anos antes, a mineradora havia feito obras para recuar o eixo de Fundão a fim de fazer reparos técnicos na estrutura, que já apresentava sérios problemas de vazamento.
Após o desastre, a Samarco afirmou que duas barragens haviam rompido: a Fundão, de rejeitos de mineração, e a Santarém, de água. Dias depois, constatou-se que apenas a barragem de Fundão havia se rompido, no entanto, os rejeitos passaram por cima da Santarém e foram impulsionados pela água da segunda barragem, fazendo com que a onda de lama ganhasse força e velocidade.
O desastre em números
Até então, o desastre era o maior da história de Minas Gerais, tanto em proporções ambientais quanto humanitárias, deixando 20 mortos. Pouco mais de três anos depois, Minas Gerais sofreu com outra tragédia em decorrência da mineração, dessa vez com proporções ainda maiores: o rompimento da de outra barragem, desta vez em Brumadinho, deixou 270 mortos.
Sobre Mariana, documentos oficiais e da mídia tradicional consideram 19 vítimas, mas relatos de sobreviventes e de profissionais que atuam na região contam também a morte de um bebê que estava ainda no ventre de uma das atingidas. Conforme explicou Karina Barbosa, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que também é a jornalista responsável pelo jornal A Sirene, uma mulher sofreu um aborto espontâneo enquanto fugia da lama: “Este bebê nunca é contado nas estatísticas porque a Samarco nunca reconheceu que ela [a mãe] tinha provas de que ela abortou fugindo de uma barragem que estava explodindo”, relatou Karina em uma mesa redonda realizada pela PUC Minas, em abril deste ano.
A história contada por quem viveu na pele
Mauro Marcos da Silva, natural de Bento Rodrigues, relata como viveu o dia 5 de novembro de 2015: ele estava em Mariana, onde tem uma oficina mecânica, quando recebeu uma ligação de um amigo que trabalhava na Samarco há poucos meses. “Ele disse ‘Mauro, é que a barragem rompeu.’ Eu falei ‘ô, amigo, você começou na Samarco há pouco tempo, de vez em quando tem uns boatos de que a barragem rompeu, é assim mesmo. E ele disse ‘não, Mauro. É sério’”. A ligação, que ficou na memória do morador, não era um equívoco, nem uma confusão do amigo, mas um gesto de solidariedade de quem já sabia que o pior havia acontecido. Enquanto falava com o amigo, Mauro notou que diversos carros de polícia, bombeiros, ambulância e guarda municipal passavam pelas ruas.
Preocupado, ele ligou para os familiares e, após se certificar de que nenhum deles estava em Bento Rodrigues no momento, decidiu ir até a cidade, que não tinha mais que duzentas casas. “Quando nós passamos pela estrada de terra que liga Santa Rita a Bento, que tem 10 quilômetros, começamos a ver muitos carros, carro de polícia capotado, batidas, estava muito estranho. Nesse meio tempo, fomos ouvindo a Rádio de Mariana, que anunciava que a barragem tinha se rompido, que Bento estava toda submersa, que não se via mais nada. Quando nós chegamos lá, pela parte alta, vimos o estrago, que realmente tinha destruído tudo. Foi aí que a ficha caiu”.
Outra testemunha, Geruza Silva, natural de Rio Casca, que hoje é assistente social e trabalha diretamente com as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, conta que, em 2015, estudava em Mariana, fazia estágio na prefeitura da cidade e que suas memórias mais marcantes daqueles momentos são do dia seguinte ao rompimento, dia 6 de novembro. Ao chegar à Arena Mariana, ginásio da Prefeitura, às 7h, ela percebeu o tamanho do problema: “O que me marca é que muitas famílias ainda não sabiam se tinham perdido todo mundo, porque muita gente se escondeu, ficaram nos altos, e muita gente não sabia.”
Ela lembra de uma criança desaparecida, e do momento em que foi encontrada: “Eu lembro direitinho da hora que ele chegou, da alegria da mãe em saber que o filho estava vivo. Eu vi as famílias começando a se encontrar e descobrir que elas estavam vivas, e também a parte de descobrir que elas não estavam. Eu acho que essa é a parte que mais me marca.”
Segundo Geruza, a Arena parecia um campo de guerra, com pessoas deitadas, esperando por vacina e atendimento. “Eu acho que todo mundo que viveu o dia 6 dentro daquela Arena demorou muito tempo para dormir de novo, para estar bem de novo.”
“Eu acho que todo mundo que viveu o dia 6 dentro daquela Arena demorou muito tempo para dormir de novo, para estar bem de novo.”
Geruza Silva
7 anos depois
“Vai fazer sete anos e essa violência continua acontecendo, e é diária e também é chocante como é um acontecimento que foi absolutamente apagado pelo jornalismo. É uma cobertura muito episódica”. O relato é de Karina Barbosa, responsável pelo jornal A Sirene, jornal que tem como público-alvo as comunidades afetadas em Mariana.
A percepção de uma continuação da violência também é compartilhada por Geruza Silva, que atua como assistente social e assessora técnica da Cáritas em Mariana: “Sete anos depois, tem-se uma ideia de um Bento Rodrigues construído que não necessariamente condiz com a realidade, com muitos problemas mascarados.” Desde 2016, a Cáritas, entidade da Igreja Católica ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que atua em Mariana.
Assistência às pessoas atingidas
Após o rompimento da barragem, a Cáritas foi eleita pela Ação Civil Pública de 15 de dezembro de 2015 como a entidade que prestaria assessoria técnica aos atingidos no território de Mariana, conforme explica Geruza. Desde então, a Instituição faz um trabalho voltado para as questões coletivas, acompanhando o processo de reparação desde a escolha dos terrenos dos novos reassentamentos, até a conquista da modalidade de reassentamento familiar: “Isso diz respeito aos atingidos das comunidades que não foram totalmente destruídas, mas que perderam suas casas. A assessoria caminha junto, no sentido de instrumentalizar os atingidos, de muni-los de informação através da educação popular, para que eles possam concluir as lutas”, destaca a assistente social.
Desde a instalação da assessoria técnica da entidade, os profissionais dedicam-se a atender as pessoas atingidas, fazendo o cadastramento e a matriz de bens de todas as famílias prejudicadas pelo rompimento da barragem. Esse levantamento deu origem a um museu virtual da região e a um dossiê completo sobre o desastre: no âmbito arquitetônico e urbanístico, acompanhando a construção das casas nos reassentamentos coletivos de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo; no âmbito jurídico, acompanhando as negociações judiciais e extrajudiciais com a Fundação Renova. Este último aspecto, no entanto, teve fim em setembro de 2022, com o encerramento do processo de repactuação que estava em negociação.
Karina Barbosa explica que, em 2021, iniciou-se um processo de repactuação, que é uma renegociação dos acordos judiciais no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sem a participação de nenhuma pessoa atingida. A expectativa era de que a repactuação fosse assinada em julho mas, o Governo de Minas Gerais se retirou da negociação. “Para o governo Zema sair de uma mesa de negociação dizendo que a proposta da mineradora era ofensiva, é porque a coisa era muito feia. A gente não sabe o que vai acontecer agora, se cada atingido vai ter que buscar a sua demanda judicial um a um – se for assim, é um problema muito sério”, completa a jornalista e professora.
O processo teve fim no último mês de setembro, prazo que estava no acordo de financiamento com a Renova. Sem o dinheiro, a assessoria jurídica da Cáritas teve que ser encerrada: “E, obviamente, eles não querem financiar nem um dia a mais e, como não teve repactuação, não conseguiram renegociar. Está tudo em um limbo. Se não tem repactuação, não tem nada”, explica Karina.
Entendendo o papel da Renova
A Fundação Renova foi criada em 2016, a partir do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) assinado pela Samarco (Vale/BHP), por órgãos governamentais e outras entidades. No site, a Renova se define como “a entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG)” e diz não ser uma propriedade da Samarco.
Laís Jabace, que também é assessora técnica da Cáritas, tem críticas à ação da Fundação: “Eu tendo a falar que a Fundação Renova gasta mais dinheiro para não reparar do que reparando. Há uma dificuldade muito grande de perceber o que é importante para as famílias, uma certa intransigência e uma dificuldade de entender porque aquilo é importante”, comenta. Segundo Geruza Silva, a Fundação não trabalha pensando nos atingidos, nas famílias: “Ela é uma fundação que trabalha para as empresas.
As duas profissionais destacam, ainda, um detalhe importante na identidade visual da Renova: “Aquela formação de logo traz a cor de cada uma das três empresas envolvidas, das três mineradoras”, reforçando a percepção de que o ponto de vista é mais das organizações do que dos atingidos.
Mauro da Silva, que tinha uma casa em Bento Rodrigues, ao ser perguntado sobre como gostaria de viver os próximos anos, revela: “Eu gostaria que a Samarco, a Vale e a BHP – porque a Renova veio para fazer uma cortina de fumaça e eximir as empresas das suas responsabilidades – assumissem as suas responsabilidades de reparar, de indenizar de forma justa e digna as pessoas”.
Novas casas
Sete anos depois do desastre, a Fundação Renova já extrapolou o terceiro prazo para a entrega dos reassentamentos coletivos de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo. Laís Jabace, da Cáritas, explica: “a Renova considera que, hoje, temos 71 casas prontas no reassentamento de Bento Rodrigues e nenhuma casa no reassentamento coletivo de Paracatu de Baixo. Quando ela coloca como ‘prontas’, ainda faltam reparos”. Ela conta, ainda, que a expectativa da Renova é de que as primeiras pessoas se mudem entre dezembro de 2022 e março de 2023 e que a escola de Bento Rodrigues passe a funcionar no reassentamento a partir do ano letivo de 2023.
“Qual é a nossa preocupação? É um canteiro de obras. Só no reassentamento de Bento a gente tem mais de 3 mil funcionários circulando atualmente. Tem a questão da poeira, do barulho, do trânsito de máquinas pesadas, em especial, a questão de uma população grande homens, que não são de Mariana, muitas vezes não são nem de Minas Gerais, e com uma escola funcionando, as possibilidades de abuso infantil, de assédio de mulheres, nos preocupam profundamente”, expõe Laís.
Com o trânsito de máquinas pesadas, as estruturas das casas começaram a ser prejudicadas, apresentando rachaduras e perigo à população. Isso fez com que pessoas que vivem em Pedras, Monsenhor Horta, Paracatu de Baixo e Camargos, que não haviam sido atingidas precisassem se mudar ao longo dos últimos sete anos, passando a morar de aluguel em Mariana: “são casas com rachaduras de fora a fora, tem uma casa que uma parede praticamente inteira caiu, a gente vive esse outro problema, que são danos continuados, porque esses veículos pesados estão ou em serviço da mineração, ou a serviço da restituição do assentamento”.
A distribuição de água para plantio e criação de animais também preocupa a assessoria técnica e os atingidos. Mauro Silva relata: “a Renova já informou diversas vezes que não vai restituir a água para fins de agricultura ou de criação de animais. A resposta da Renova é que no entorno de Bento tem quatro áreas destinadas a sítios e quem gosta de plantar ou de lidar com animais pode trabalhar como funcionário nestes sítios”.
Em Bento Rodrigues, sobre as ruínas da cidade devastada pela lama, a Samarco fez uma nova obra: o Dique S4. A construção tem o objetivo de conter rejeitos e evitar o carreamento de sólidos para o Rio Gualaxo. No entanto, para tal, parte das ruínas da antiga cidade foi alagada. Mauro da Silva explica que a Samarco é proprietária de um território a 8 km de Bento Rodrigues, onde o dique também poderia ser construído, no entanto, segundo Marcos, a mineradora alegou que a construção nessa outra área seria muito onerosa. Ele explica, também, que acredita que a construção seja uma tentativa da empresa de esconder a história: “ela [a Samarco] tenta a todo custo encobrir a cena do crime, primeiro implantando algumas ervas daninhas sobre a lama e depois com a construção do Dique”.
Procurada pelo Colab, a assessoria de imprensa da Fundação Renova afirmou que o fornecimento de água bruta estava previsto para as propriedades rurais dos reassentamentos, mas não para as áreas urbanas e que isso foi previamente discutido e aprovado pelas entidades responsáveis pela futura administração dos sistemas, como o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Mariana – SAAE Mariana. Sobre as casas prejudicadas pelo fluxo de máquinas pesadas, a instituição se pronunciou dizendo que a questão foi judicializada e que um perito foi nomeado para fazer a vistoria dos imóveis. Em uma carta assinada pelo seu diretor-presidente, Andre de Freitas, publicada em seu site, a instituição diz que “atualmente, a reparação se encontra em um momento de avanços e entregas relevantes”. Na carta, a Renova também considera que as indenizações avançam e que as obras dos reassentamentos estão em ritmo acelerado. A instituição também aborda outras questões, como os impactos socioambientais e a verba destinada à recuperação da região.