Documentarista e estudante de Antropologia, ativista do movimento indígena e filho de pais migrantes, Emanuel Kaauara é um filmmaker indígena, da etnia Kaxixó, nascido na região metropolitana de Belo Horizonte. Estudante do curso de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com habilitação em Arqueologia, especializou-se, ao longo de sua formação, na área socioambiental. Já encabeçou e participou de várias produções, incluindo um programa para TV, diversos documentários e clipes musicais.
Em entrevista para o Colab, Emanuel falou sobre sua história com o audiovisual, sua trajetória na antropologia visual, suas experiências como ativista do movimento indígena e sua relação com a ancestralidade.
Confira a entrevista, que foi editada para fins de clareza e concisão
Como se deu o processo de conexão do seu ofício com a antropologia?
Emanuel Kaauara: Essa questão do audiovisual já está na minha família há bastante tempo. Meus tios, meus pais, meus primos e irmãos trabalham com isso, então, eu comecei no audiovisual muito cedo, trabalhando com revelação analógica, e depois fui para outras áreas, como fotografia e vídeo. Também comecei fazendo muitos vídeos de shows. Eu participava da cena hardcore, da cena punk e era uma forma de registrar os eventos, uma antropologia de tribos urbanas. Só que eu já tinha esse interesse pela questão tradicional, pela cultura indígena. Aos poucos, fui me envolvendo na universidade e fazendo esse contato com meu povo Kaxixó e com outros povos indígenas que conheci durante minha caminhada, dentro e fora da universidade.
Pela curiosidade em relação à minha própria história e dos meus ancestrais, fui me envolvendo com antropologia, arqueologia, história e também com o movimento indígena. Quando eu entrei nesse processo de querer saber mais da minha identidade, eu comecei a tomar o rumo na minha vida para fazer minha formação acadêmica. Depois que comecei nessa formação, vi que a antropologia era algo muito mais voltada para a escrita do que para as imagens, o que ficava muito impessoal. Quando você está trabalhando com a antropologia, e arqueologia, a experiência material, a experiência física é muito forte, você tem essa questão que chama muita atenção quando você está em comunidades tradicionais. Seja o território, a natureza, as pinturas corporais ou dos objetos que são feitos, dos artesanatos, etc. Então eu comecei a ver uma lacuna ali e entender que tinha uma demanda do audiovisual.
Na época, isso começou a me interessar bastante: trazer essa questão da antropologia, mas também uma nova forma de fazer antropologia, até mesmo pelo contexto em que eu cresci. As pessoas da minha família leem bastante, mas eu cresci em um bairro da periferia e esse contexto que a gente vive, de revolução tecnológica, principalmente da informação, é algo que está no nosso cotidiano. Foi uma junção muito natural das coisas.
Como é transitar entre esses universos? Do movimento hardcore e punk para o movimento indígena?
Emanuel Kaauara: Isso meio que causa um bug na cabeça das pessoas. Eu sempre frequentei o distrito da minha mãe, onde ficam as aldeias, só que eu não tinha contato com a galera das aldeias, só fui ter depois de mais velho. Mas meu pai sempre me ensinou muita coisa da cultura indígena, minha mãe também, então, é algo que, até um certo tempo na minha vida, era algo muito para mim. Quando eu fui ficando mais velho, isso virou uma busca mais forte, chegou o momento que eu tive que pensar: “ou eu sou um pesquisador indígena, ou eu sou um pesquisador de fora”. Só que não é o meu rolê ser uma pessoa de fora. Quando eu voltei dessa viagem de ir para as aldeias, tudo que eu vi não é diferente do que eu aprendi com meu pai, com a minha mãe. Eu fui aprender mais coisas sobre a língua, os grafismos. Minha avó, por exemplo, fazia artesanato, meu tio fazia arco e flecha e morou em Belo Horizonte. Quando isso se tornou uma coisa mais pública para mim, que eu comecei a me assumir mesmo como indígena, deu um bug na cabeça da galera.
Dentro do ambiente do hardcore e do punk, por mais que exista uma postura antirracista, de se colocar como um movimento libertário, ainda tem vários vícios da cultura branca. Por mais que esteja se posicionando como um movimento antirracista, várias outras pessoas vão deslegitimar você. Vão falar: “você cresceu igual a gente, você viveu aqui”. Então, rola um choque cultural da galera. Tem muita gente que respeita, admira e entende esse processo que eu comecei a fazer de colocar esse posicionamento identitário de uma forma mais pública, mas tem gente que não consegue quebrar aquele preconceito. É uma questão complicada.
Hoje em dia eu vou em poucos shows. Comecei a entrar dentro do movimento indígena e esse é um processo de mudança espiritual também. Eu sempre comi muita coisa natural, sempre me alimentei muito bem, só que dentro do movimento punk, por exemplo, existem várias práticas do cotidiano que são profanas para o movimento indígena. O movimento punk é muito voltado para a questão urbana, e mesmo que tenham pessoas que são a favor da questão da preservação da natureza, estão dentro de um cotidiano e um estilo de vida que não combinam com o meu.
Isso começou a gerar um conflito comigo mesmo. Quando eu comecei a militar dentro do movimento indígena, eu também fui deixando esse espaço. Não tenho preconceito com as pessoas, até hoje escuto Ratos de Porão, já fui em vários shows do Expurgo, só que hoje não é uma parada que faz parte do meu cotidiano, até mesmo por uma questão de tempo. Mesmo assim, rola um choque cultural.
Provavelmente você é mais punk agora do que era antes, não?
Emanuel Kaauara: Com certeza! É justamente a ideia da contracultura, né? A cultura indígena, hoje, pela questão da marginalização, é uma contracultura mesmo.
E o que a antropologia visual significa para você hoje? Não só como um trabalho, mas na sua vida pessoal também. Como é essa abertura para novas experiências e aprendizados?
Emanuel Kaauara: Quando eu comecei a fazer esses documentários, acabei tendo várias experiências no cotidiano. Sobre o documentário “Kumúhuá”, por exemplo: eu morei no território indígena do povo Pataxó, na Vila de Cumuruxatiba, na Bahia. E nesse processo que você vai conhecendo as pessoas, fazendo entrevista, trocando ideias, até pelo processo de convencer as pessoas de participar, você está entrando em contato com muitos conhecimentos. Isso, na minha experiência particular, me ajudou a aprender muita coisa, seja de pesca, artesanato de cestaria, fazer cocar, mexer com cerâmica, também aprender sobre plantas, entre outras coisas. A antropologia visual também é uma forma que me permite absorver esses conhecimentos. É uma forma de experiência de vida. Estar inserido no movimento indígena dessa forma, como um filmmaker, como antropólogo visual, traz essa oportunidade de conhecer não só a cultura do meu povo, mas aprender a de outros povos também. Principalmente os valores que são levados para a vida dessas pessoas. Elas estão ligadas a ideais de comunidade e outras formas de lidar com o outro, com o território, com a natureza. É uma forma de aprendizado não só para quem está vendo o que eu estou fazendo, mas é uma forma de aprendizado para mim também. É algo que eu tenho articulado como objetivo de vida e que tem transformado a minha vida pelas experiências.
Tenho certeza que se tivesse escolhido fazer outra coisa, as experiências de vida seriam completamente diferentes.
Emanuel Kaauara
De onde vêm as ideias para seus registros? Você é o responsável por buscar patrocínios e montar as equipes ou também é contratado e convidado para assumir alguns projetos?
Emanuel Kaauara: São várias as formas com que eu vou me inserindo e desenvolvendo esses projetos. Em Belo Horizonte, participo de dois coletivos, o Comunicação Indígena na UFMG, que é um coletivo de comunicação dos estudantes indígenas, e o Comitê Mineiro de Apoio à Causa Indígena (CMACI). Nesses dois coletivos, geralmente, a gente entra nas pautas por uma discussão e coloca para a sociedade o que está precisando ser documentado, o que precisa ser discutido. A gente conversa internamente, desenvolve um roteiro e depois coloca em execução. Eu tenho esses trabalhos dos coletivos indígenas e trabalhos que sou convidado para fazer. Teve projetos que participei através da lei Aldir Blanc, outros projetos que eram pela Lei de Incentivo à Cultura, e nesses casos é a galera que normalmente monta as equipes. Um pessoal para escrever o projeto, gente para dirigir, para editar, para fazer a captação de imagem. Como, normalmente, eu estou nessa parte de entrevista, que é algo muito da antropologia, eu acabo tomando a parte da direção, tentando ter um roteiro fixo, mas à medida que a pessoa vai conversando comigo, vou lapidando o que posso trazer de interessante para dentro da entrevista.
Quais dificuldades você encontra nesse processo de representação audiovisual? Existem cuidados necessários quando se faz esse tipo de registro antropológico?
Emanuel Kaauara: Essa dinâmica começa, primeiramente, pelo diálogo. Se estamos propondo um projeto para apresentar para a comunidade, temos que ver com a comunidade se é interessante para eles e se isso tem uma contrapartida social. Ou a gente procura essa comunidade e vai questionando o que que pode ser feito ali, dentro daquela realidade. Mas, geralmente, já se tem uma noção dos problemas que essa comunidade enfrenta e de que forma pode ser abordada.
Mas a gente tem que ter um cuidado relativo a uma questão que aprendi muito dentro da faculdade. O que você está escrevendo pode ser tirado de contexto, principalmente porque o antropólogo e o arqueólogo têm um papel como perito. Por exemplo, em uma terra que está em litígio, rolando uma briga judicial por conta do território entre um fazendeiro e uma comunidade indígena, pode ter a fala de um antropólogo, de um arqueólogo ou de um líder comunitário tirada de contexto e usada contra a própria comunidade. Então já existe a questão do preconceito contra essas comunidades, as tentativas de expropriação desses territórios, e se a gente não tem um cuidado na hora de articular como que isso vai ser colocado, a gente pode atrapalhar ao invés de ajudar.
Como é “representar” os povos indígenas a partir da perspectiva de produtor audiovisual e a partir da sua perspectiva pessoal? Há uma separação do Emanuel que está trabalhando atrás das câmeras para o Emanuel indivíduo?
Emanuel Kaauara: Essa separação não existe. A antropologia, em si, já tenta quebrar essa ideia cientificista, que é o pesquisador longe do que ele pesquisa. Tudo que a gente produz de científico, é tendencioso, tem um viés político. E pelo menos na minha visão, eu acho interessante deixar explícitas as intenções políticas que a gente tem por trás do que a gente está produzindo, porque senão fica algo solto, perdido demais. E, na perspectiva de eu ser um pesquisador indígena, tem a questão da necessidade de cada vez mais ocupar esses espaços, para que não haja pessoas fora do nosso contexto falando sobre as nossas realidades.
Isso é até uma problemática do próprio Estado brasileiro, porque o indígena sempre foi tutelado, já que os povos indígenas não tinham discernimento para distinguir o que é certo e errado, na visão do Estado. Não que a gente não tivesse essa capacidade antes, sempre teve, mas o estado sempre tentou tomar a rédea com uma intenção de fundo: a de controlar nossos territórios, de exercer influência política, econômica, e de controlar o que ia acontecer com nossa história. E, hoje, é importante a gente tomar esse lugar, não só dentro do audiovisual, mas também dentro da política, dentro dos setores da sociedade, como educadores indígenas, como comunicadores, jornalistas, profissionais de saúde, do direito. Tudo isso é interessante para nós no intuito de conseguir uma opinião política mais forte e ter um poder de decisão também e dentro da sociedade.
Outro ponto é que eu sou um indígena do contexto urbano. Eu tenho que tomar um cuidado redobrado com o que eu estou falando, porque eu tenho propriedade, tenho lugar de fala, mas dentro do contexto que eu vivo, com os problemas sociais que eu vivo. Se eu estou fazendo um trabalho dentro do território do meu povo, que eu não vivo ali, não cheguei a morar ali, e estou falando sobre a realidade deles, eu tenho que sempre dar ênfase nesse lugar de onde eu falo. Tem essa questão do cuidado e, para além disso, também tem a questão da conduta no movimento indígena. O movimento é muito pautado por uma conduta ética e moral, eu tenho que tomar cuidado também com o que eu estou falando. Às vezes, eu não estou nem representando a voz do meu povo como um todo, mas só de estar usando o nome do meu povo, eu tenho que tomar um cuidado com minha postura. Porque, pelo preconceito que nós indígenas já vivemos, uma postura equivocada pode acarretar outros diversos preconceitos para meu povo ou para os povos indígenas de forma geral. Esse é um lugar de representatividade muito delicado, chega a ter um peso muito forte para quem está sendo visto de forma pública.
Conte algo que você acha que os leitores do Colab não sabem, mas deveriam saber.
Emanuel Kaauara: A gente vive num país com 523 anos de contagem desde seu “descobrimento”. Um país, que é um território roubado, e que a gente só conta esse tempo a partir da chegada dos portugueses. Se a gente for pensar a partir da Independência, é um país muito mais novo, que tem por volta dos seus 200 anos. Quando a gente pensa sobre essa questão, é possível ver que existe um conflito de identidade dentro do Brasil e um conflito também de discurso histórico. Porque o que a gente aprende dentro da escola, na sociedade, dentro da nossa casa, é que antes dos portugueses chegarem aqui, não existia conceito de nação, conceito de política, conceito de espiritualidade e conhecimento. Então, hoje, o movimento indígena, através desse processo de retomada, tenta trazer essa questão da democratização do conhecimento. Nós temos muito mais do que 500 anos de história. Esse território onde a gente vive, ele já tinha um nome, Pindorama, a Terra das Palmeiras. E essa ideia de Pindorama, essa ideia de nação indígena, ela, hoje, tem uma perspectiva diferente, porque a gente passou por diversos processos históricos, e houve uma reformulação dos povos indígenas enquanto movimento político, movimento cultural, movimento espiritual dentro de cada contexto específico.
O que eu sugiro para as pessoas é que conheça esse outro país aqui, que é paralelo. Conhecer de verdade. Não só ir lá fazer turismo, mas sentar com as pessoas de igual para igual, sem tratá-las como um bicho de zoológico. Entender que aquelas pessoas têm uma história de vida, que aquelas pessoas têm anseios e objetivos que são totalmente diferentes. Quando a gente começa a abrir esse espaço para diálogo, a gente começa a mudar certas coisas no nosso cotidiano, na nossa vivência, na nossa mentalidade. A gente começa a entender o que de importante os povos indígenas tem para oferecer no contexto que a gente está vivendo agora. É essa a ideia do pensamento decolonial. Quebrar essa centralidade branca e trazer a democratização desses conhecimentos do negro, do indígena, do nipo-brasileiro e de outras comunidades que existem aqui. E daí, tentar fazer um país que seja para todos e que não atenda só o interesse de quem tem grana, de quem tem poder e de quem está interessado a seguir só esse modelo capitalista.
É preciso abrir a possibilidade de outras pessoas viverem de uma forma que não seja normativa. Isso a gente entra não só em questão da luta pela preservação da Mãe Terra, mas em discussões sobre monogamia, questões LGBT, machismo, religiosidade, predominação cristã, violência religiosa, preconceito racial. As portas se abrem para muitas discussões quando a gente entende que esse universo de culturas indígenas é tão diverso. Eu sugiro para as pessoas vão e conheçam de coração aberto.
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