Cinquenta e oito anos após o golpe de 1964, o Brasil ainda se encontra diante de um passado que insiste em atormentar. Desagradável e ameaçador para alguns, necessário e urgente para outros, o debate a respeito das violações dos direitos humanos cometidas durante o regime autoritário voltam à tona a cada aniversário da ação golpista que destituiu do cargo o então presidente João Goulart (Partido Trabalhista Brasileiro). Este ano, a atitude do Ministério da Defesa de negar tais violações na Ordem do Dia alusiva ao 31 de março e se referir ao golpe como movimento democrático fez acender o sinal de alerta para estudiosos do assunto. No início de abril, a revelação das mais de dez mil horas de áudios inéditos das sessões do Superior Tribunal Militar (STM), conseguidos pelo historiador Carlos Fico e divulgados pela jornalista Miriam Leitão, trouxe novamente os holofotes para o assunto. Diante dos episódios e do debate público por eles estimulados, o Colab convidou pesquisadores da temática para refletirem sobre esse período.
Nunca é demais lembrar que na madrugada do dia 31 de março para o dia 1º de abril de 1964 se iniciava um dos períodos mais sombrios da história da política brasileira: a ditadura militar. O regime marcou uma geração, que protestou, lutou, cantou e, muitas vezes, arriscou a própria vida para defender a democracia.
Na visão da mestre em educação e militante dos direitos humanos Thelma Shimomura, que foi pesquisadora da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), a falta de reconhecimento do teor autoritário do golpe por parte do atual governo, ao se referir ao episódio como “Movimento de 31 de março de 1964” na Ordem do Dia, é uma forma de forjar uma narrativa histórica.
Na visão da mestre em educação e militante dos direitos humanos Thelma Shimomura, que foi pesquisadora da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), a falta de reconhecimento do teor autoritário do golpe por parte do atual governo, ao se referir ao episódio como “Movimento de 31 de março de 1964” na Ordem do Dia, é uma forma de forjar uma narrativa histórica.
Não reconhecer as falhas do governo militar faz com que as pessoas criem uma imagem falsa e nostálgica de algo que não aconteceu.”
Thelma Shimomura, mestre em educação e pesquisadora da Covemg
Baseando-se no livro A Transição Brasileira – Memória, Verdade, Reparação e Justiça, com autoria de Eneá de Stutz e Almeida, Shimomura atribui a postura negacionista do governo Bolsonaro como um tipo de justiça de transição reversa. Tal conceito, abordado no livro, analisa que o governo exalta os piores fatos e figuras da ditadura em vez de exaltar a luta civil. Nesse sentido, a pesquisadora conclui que atualmente há uma grave distorção das informações históricas e inversão de valores que devem ser combatidas por ameaçar a democracia.
Afirmações falsas
Ao afirmar que, “nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e amadurecimento político”, o texto assinado pelo ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, é tido como desconexo da real história da ditadura.
Perguntada se tal afirmação condiz com os registros históricos e relatos de pessoas que viveram durante o período ditatorial, a cientista política Helena da Motta Sales, argumenta que, “absolutamente, não”. Segundo ela, que integrou a Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora (CMV-JF),
Os depoimentos de todos os perseguidos pelo regime autoritário revelam um período de torturas, abusos de poder sob várias formas, cerceamento à liberdade dos cidadãos, da imprensa e das manifestações culturais.”
Helena da Motta Sales, cientista política e integrante da CMV-JF
Para Helena, “era impossível se opor ao regime sem sofrer sérias consequências, como prisões, perseguições no trabalho, ameaças às famílias, desaparecimentos e até ser morto”. Conforme a cientista política, somente abordando o assunto sem censura, aberta e corajosamente, o país construirá bases mais democráticas e humanistas.
Entretanto, para alcançar essas bases, o professor de História da UFMG e autor do livro Passados presentes: o golpe de 1964 e a ditadura militar, Rodrigo Patto Sá Motta, explica que a educação terá um longo papel a cumprir:
A história está no centro da chamada guerra cultural, ou seja, ela é alvo de grupos que entendem ser necessário dominá-la a fim de alcançar o controle da opinião política dos brasileiros.”
Rodrigo Patto Sá Motta, autor do livro Passados presentes: o golpe de 1964 e a ditadura militar e professor de história da UFMG
Em consequência da defasagem na abordagem escolar brasileira, as gerações nascidas após a redemocratização são altamente influenciadas a desconfiar da classe de pesquisadores e historiadores que estudam sobre a ditadura. Entretanto, Motta garante que “os historiadores não emitem meras opiniões, já que seguem padrões e métodos científicos, e devem respeitar limites éticos. Ainda que não seja infalível, o conhecimento acadêmico é o que oferece os melhores e mais confiáveis instrumentos para se tentar alcançar a verdade histórica, que tem sido tão manipulada nestes tempos de negacionismo.”
Colocando os pingos nos i´s
Outro trecho publicado no documento do Ministério da Defesa afirma que, “em março de 1964, as famílias, as igrejas, os empresários, os políticos, a imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as Forças Armadas e a sociedade em geral aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para restabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implantado no Brasil, por grupos que propagavam promessas falaciosas, que, depois, fracassou em várias partes do mundo.”
O trecho explicitamente nega que o golpe tenha dado origem a uma ditadura e tenta minimizar seu impacto, informando que setores civis apoiaram os militares na tomada do poder. Entretanto, para o doutor em história e Culturas Políticas pela UFMG, Bruno Vinícius Leite de Morais,
É equivocado dizer que os atores sociais que apoiaram o golpe previam o estabelecimento de uma ditadura, quanto mais uma que duraria 21 anos.”
Bruno Vinícius Leite de Morais, doutor em história e Culturas Políticas pela UFMG
Bruno explica já ser de conhecimento dos historiadores que o governo João Goulart apresentava grandes possibilidades de sair vitorioso na eleição prevista para 1965. Além disso, segundo ele, os diversos atores sociais e políticos que confabularam no intuito de derrubar o governo Goulart buscavam apenas sua deposição e “retirada de caminho” visando a eleição seguinte, o que não ocorreu. Diversos políticos que apoiaram o golpe, ao perceberem o crescimento do autoritarismo, desembarcaram do governo militar.
Uma vez que a então ordem democrática foi destituída, e à medida que os representantes civis continuavam compondo a máquina Estatal com condições hierarquicamente abaixo daquelas ocupadas por militares, o golpe civil-militar foi se consolidando como uma ditadura militar. Bruno destaca que, para além das restrições políticas, é importante recordar o período como um acontecimento histórico traumático para centenas de pessoas, marcado pelo abismo socioeconômico, a tortura e diversos outros fatos mapeados nos relatórios da Comissão Nacional da Verdade e das demais comissões de âmbito regional.
Rememorar para não retroceder
Como uma maneira de consagrar a memória das vítimas do regime, o relatório final apresentado pela Comissão Nacional da Verdade em 2014 documenta a história de vida e as circunstâncias da morte de 434 mortos e desaparecidos políticos. Nessa contagem não entraram os milhares de indígenas e camponeses que também foram impactados. Por conta disso, as circunstâncias das graves violações de direitos humanos ocorridas com esses grupos ainda perduram e são conduzidas por pesquisadores e entidades de direitos humanos.
Olhar para o passado e não repetir no presente os erros cometidos”
Robson Sávio Reis Souza, coordenador da CEIVT e Covemg, sociólogo e professor da PUC Minas
Pontuando que “olhar para o passado e não repetir no presente os erros cometidos” é um exercício que apenas a memória histórica nos permite fazer, o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Minas, que também foi coordenador da Comissão Especial de Indenização às Vítimas de Tortura (CEIVT) e da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), relembra o quanto a violência, a arbitrariedade e a corrupção colaboraram para que a ditadura seja um símbolo da suspensão da dignidade humana frente à repressão sofrida por aqueles que protestaram. Para ele, “não há democracia sem a garantia dos direitos humanos” e compreender a história do período ditatorial é o primeiro passo para a reparação e superação de ideais antidemocráticos.
Para não restar dúvidas: Áudios das sessões do STM confirma torturas
Em meio às críticas à Ordem do Dia, às manifestações que defendem gestos antidemocráticos e ao debate público promovido por esses episódios, a jornalista Miriam Leitão divulgou no último dia 17 de abril, no jornal O Globo, áudios das sessões do Superior Tribunal Militar que ocorreram entre 1975 e 1985.
Desde 2017, as dez mil horas de gravação estavam sendo analisadas para uma pesquisa do professor de história da UFRJ, Carlos Fico, e recentemente vieram à tona após membros do governo Bolsonaro debocharem das torturas sofridas por militantes e jornalistas.
Dentre os conteúdos dos áudios está o relato de uma mulher grávida que sofreu um aborto após levar choques elétricos na vagina e conversas entre os ministros. Na ocasião, alguns pediam maior apuração enquanto outros duvidavam dos relatos.
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