Você sabia que as mulheres foram as primeiras programadoras e engenheiras de software? Em 1843, a britânica Ada Lovelace foi a primeira pessoa da história a desenvolver um algoritmo computacional.
Durante e depois da Segunda Guerra Mundial, nas décadas de 1930 e 1940, inúmeras mulheres trabalhavam como “computadoras” humanas. Elas realizavam os cálculos das trajetórias de projéteis e foguetes militares. Alguns desses cálculos demoravam mais de 30 horas para serem finalizados.
Em 1946, surgiu nos Estados Unidos o ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer, em tradução, Computador e Integrador Numérico Eletrônico) o primeiro computador eletrônico digital de larga escala. A máquina foi construída por homens, mas a tarefa de criar seus programas foi considerada “trabalho de mulher”.
Jean Bartik e Betty Snyder foram duas das programadoras originais do ENIAC que, na noite anterior à demonstração do computador, consertaram e melhoraram seu funcionamento após um defeito ser descoberto. Em uma entrevista ao Museu da História do Computador, em 2008, Bartik relatou que ela e Snyder sequer foram nomeadas nas fotos para a imprensa, e nem foram convidadas para o jantar de celebração.
Apesar de pioneiras na área, hoje, as mulheres representam apenas 13,6% dos concluintes de graduação nos cursos de Computação e Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) no Brasil, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2019. “Estipula-se que, a partir da década de 1980, quando os computadores pessoais começaram a ser mais pervasivos e as propagandas começaram a ser direcionados para meninos e homens, a área começou a virar algo “de homem”, explica Vivi Mota, doutora em Ciência da Computação, professora e co-criadora do canal no Youtube Peixe Babel.
Com isso, a área conquistou prestígio social e, ironicamente, deixou de ser predominantemente feminina. “Uma vez que uma determinada carreira ganha destaque, os integrantes do status quo começam a se interessar por ela e tomar posse”, completa Mila Laranjeira, mestra e doutoranda em Ciência da Computação e também co-criadora do canal Peixe Babel. Segundo o Inep, os cursos de computação cresceram 586% no Brasil nos últimos 24 anos, mas o percentual de mulheres nesses cursos diminuiu de 34,8% para 15,5%.
Luta por espaços e respeito
“Como muitas mulheres na área, muitas vezes me senti insegura e incrédula quanto à minha própria capacidade. Isso é resultado dos sinais e cobranças que a sociedade nos envia a todo instante”, afirma Kécia Aline, mestra em Ciência da Computação e professora no CEFET-MG. Junto da falta de visibilidade, existe uma grande dificuldade de reconhecimento do talento da mulher na área de tecnologia. “Para ser reconhecida, a mulher precisa render muito mais do que os homens. Isso não foi diferente para mim”, relata. Para ela, o principal desafio foi ter consciência de sua competência.
“Para mim o que doía mais era sempre mencionarem meu namorado da época como a razão para o meu sucesso na área. Afinal, meus trabalhos só podiam ser tão bons graças à ajuda dele, na cabeça de alguns professores”, comenta Mila sobre o período da graduação. “Não eram todos, tive muita sorte, mas já passei por situações que só hoje entendo porque me deixaram tão desconfortável”, ela pontua. Kécia reitera a constante luta por espaço e por respeito: “Vez ou outra, ainda surgem colegas, geralmente homens, que têm muita dificuldade em respeitar ideias e falas das mulheres, incluindo as minhas”.
Falta visibilidade
Outro grande desafio enfrentado por mulheres nas áreas das TICs é a falta de visibilidade causada pelo machismo estrutural.
“Ao contrário do que se pensa, muitas mulheres atuaram na Computação e fizeram e fazem contribuições determinantes para o surgimento e para a evolução da área. O problema é que as histórias dessas mulheres foram ocultadas e pouco se fala sobre elas”, conta, Kécia Aline.
Vivi Mota relembra que não teve nenhuma figura feminina que serviu de inspiração para seu ingresso na área das tecnologias. “Foi depois de muito tempo que conheci nomes como Ada Lovelace e Grace Hopper”, completa. Já Mila Laranjeira conta que, felizmente, teve várias pessoas em quem se espelhar. “Quando decidi entrar no laboratório de robótica na faculdade, as meninas que já estavam lá ocupavam cargos de liderança e eram super respeitadas. Isso fez eu me sentir muito bem desde o primeiro dia”, pontua.
Para ela, esse sentimento se reforçou quando conheceu Esther Colombini, uma das representantes brasileiras da competição mundial de robótica (RoboCup), que rapidamente se tornou uma de suas principais referências. “Acredito que foram essas mulheres que me fizeram gostar tanto da área”, afirma.
Ações pela mudança
Pensando principalmente na representatividade e na criação de referências para suas alunas, Kécia Aline, que leciona no Departamento de Computação (DECOM) do CEFET-MG, criou, em 2018, o projeto “Elas.net”. Na época, ela era coordenadora do curso de Engenharia de Computação e chefe do DECOM. “As alunas diziam que, para elas, era importante ter uma mulher à frente do departamento, isso as inspirava”, relembra. Seu relacionamento próximo com estudantes fez com que ela tivesse conhecimento das dificuldades enfrentadas pelas meninas no dia-a-dia do curso.
Junto de sua colega de departamento, a professora Glívia Angélica, Kécia organizou, inicialmente, rodas de conversas para as alunas em uma espécie de grupo de apoio mútuo, uma rede de mulheres. Dessa rede surgiu o “Elas.net”, que hoje é um projeto de extensão que visa incentivar e apoiar a participação feminina na Computação. Além disso, o Encontro de Mulheres do DECOM, que conta com eventos e cursos da área das TICs para mulheres e meninas, também é realizado anualmente.
“Acredito que isso fortalece e motiva, tanto as meninas que estão fazendo os nossos cursos, quanto aquelas que buscam uma carreira na área e hesitam por causa dos estereótipos e preconceitos”, afirma Kécia. Ela ainda pontua que, para desmistificar a ideia de que a Computação é uma área de homens, há duas ações muito importantes. A primeira é resgatar e divulgar a história das mulheres que ajudaram a construir o meio. A segunda é aproximar as meninas da tecnologia desde cedo, para que tenham contato com a área. “Isso pode ser feito, por exemplo, por meio de cursos básicos e lúdicos voltados para meninas”, propõe.
Outra ação significativa é a presença feminina na produção e divulgação científica, especialmente na área das TICs. Com o Canal Peixe Babel, Mila e Vivi, que são duas mulheres LGBTQ+, declaram que “a tecnologia deve ser feita por todos e para todos”.Em 2016, o canal se tornou membro do Science Vlogs Brasil, o selo de qualidade que reúne os canais de divulgação científica no YouTube.
“A Internet já está cheia de pessoas padrão produzindo conteúdo de tecnologia, então (modéstia a parte) exemplos como o nosso são essenciais para quebrar esse ciclo”, afirmam.
Para além da representatividade, no contexto atual de pandemia, o trabalho feito por Mila e Vivi foi referência para quem quer compreender as implicações da tecnologia na sociedade: “Durante a pandemia, a gente percebeu ainda mais como a tecnologia é parte essencial de nossa sociedade, portanto, não existe desenvolver tecnologia sem considerar essa perspectiva”, pontuam.
Mas elas ressaltam que não estão sozinhas: outros canais e personalidades da internet têm feito importantes trabalhos na área. “O Programação Dinâmica faz um excelente trabalho no YouTube, a Nina da Hora no Twitter e com seu Podcast, e muitos outros exemplos que felizmente só aumentam a cada dia”. Para elas, todos esses exemplos são igualmente compromissados com a transmissão do conhecimento técnico, mas têm um “tempero a mais”. “A gente destaca nosso compromisso com o impacto social da nossa atuação no mundo”, concluem.
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