O período de isolamento social, em função da Covid-19, trouxe de volta a figura fictícia do Homem Pateta, motivo de insônia para muitos pais. Trata-se de uma personalidade online que incentiva brincadeiras perigosas e violentas.
Com a pandemia, o tempo que as crianças passam na internet aumentou e, assim, o consumo de conteúdo impróprio nas plataformas sociais. De acordo com levantamento do AppGuardian, aplicativo de controle parental, crianças de 5 a 15 anos passam, em média, 25 horas por mês no YouTube. O excesso, refletido em dependência ou má utilização, pode provocar problemas como ansiedade, sedentarismo, transtornos mentais e de alimentação, conforme a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Caso de vítima fatal alerta profissionais da saúde e educação
Em 2014, o adolescente Dimitri Jereissati, 16 anos, perdeu a vida ao participar de uma “brincadeira” online, conhecida por “jogo do desmaio”. Com isso, foi criado, em Fortaleza (CE), o Instituto Dimicuida, na tentativa de preservar a vida de outros jovens e conscientizar pais e responsáveis sobre os perigos da rede.
“Foi necessário conhecer mais sobre esses conteúdos e problemas para que conseguíssemos responder várias perguntas e ajudar as famílias. Começamos a investigar o comportamento de adolescentes na escola para trabalhar na prevenção; diferenciar brincadeiras saudáveis de perigosas”, explica Fabiana Vasconcelos, psicóloga do instituto.
A psicóloga cita dois canais do YouTube, cuja produção violenta e perigosa é responsável por parte dos acidentes com crianças. O Instituto conseguiu derrubar o do influencer La Fênix, e Fabiana destaca exemplos de práticas e discursos de proprietários do perfil: “Eles incentivavam brincadeiras como chutar uma bola, descalço (a bola pode ter arame farpado). Um dos donos desse canal me disse: ‘Meu filho não assiste meus vídeos, então cada família cuide dos seus’. Isso não condiz com o convívio em sociedade”, assevera.
Já Everson Zóio, responsável pelo canal Zoio do Dia, “mandava seus inscritos enviarem desafios criativos para serem selecionados. Um vídeo dele com o seguinte título foi bloqueado: colocar fogo no corpo e pular no rio. O youtube retirou o vídeo antes de ser postado”, exemplifica Fabiana.
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De acordo com um estudo realizado pelo AppGuardian, aplicativo de controle parental, crianças de 5 a 15 anos passam, em média, 25 horas por mês no YouTube. A soma entre YouTube Kids e YouTube Go resulta em 47 horas mensais. Além disso, a pesquisa mostrou que a média de permanência no celular é de 5,7 horas por dia, de segunda a quinta-feira. Nos finais de semana, esse número aumenta para 6,9.
Além dos desafios estimulados pelos canais, o jogo Baleia Azul também ficou conhecido por provocar acidentes e muita preocupação. Trata-se de um conjunto de 50 missões extremamente perigosas e a última delas é dar fim à própria vida.
Segundo a jornalista Andrea Ramal, do G1, em 2015 uma jovem russa de 15 anos se jogou de um prédio; depois, outro adolescente se jogou na frente de um trem. No Brasil, casos em Mato Grosso e na Paraíba foram investigados, envolvendo vítimas da mesma faixa etária em jogos de automutilação e suícidio.
Medidas governamentais
A psicóloga também destaca incoerência e contradições legislativas percebidas no momento em que o Dimicuida decidiu fazer contato com o Governo.
Existem Artigos do Marco Civil da Internet (Art. 19, 20 e 21) que preveem a retirada de conteúdos perigosos das plataformas digitais. Contudo, tratando-se de vídeos, os juízes precisam assistir a todos para dar o parecer definitivo. “A velocidade com que os vídeos são postados é bem maior do que a velocidade da Justiça brasileira”, aponta Fabiana Vasconcelos, psicóloga do Dimicuida.
Em relação às contradições, Fabiana cita um exemplo: “Vídeos com violação de direitos autorais são automaticamente bloqueados, já os com conteúdos perigosos têm que passar por um lento processo”.
Homem Pateta? “A responsabilidade é dos pais”
O Homem Pateta pode até intimidar e sinalizar que o perigo está próximo, mas existem duas armas letais para combatê-lo: observação e diálogo. Segundo a psicóloga Carolina Fonseca, especialista em Saúde Mental, Atendimento Familiar Sistêmico e em Psicologia Organizacional e do Trabalho, “os pais têm total responsabilidade em perceber pequenas alterações de comportamento, isolamento, marcas pelo corpo, marcas de automutilação, irritabilidade, quedas no rendimento escolar, e é essencial que eles estabeleçam um diálogo com seus filhos.”
Conforme Carolina, os perigos da internet não são silenciosos e se manifestam de diversas formas, sendo essencial que pais e responsáveis prestem atenção no comportamento das crianças e tenham em mente que a internet é um simples meio de acesso. “[..] A tecnologia pode auxiliar, mas não deve ser responsabilizada pelo o que as crianças assistem. Os pais devem verificar o histórico de busca, controlar o tempo de acesso e conversar com seus filhos e filhas para saber qual conteúdo estão consumindo”, alerta a especialista.
Para alertar as famílias sobre os sinais mais recorrentes de que algo não vai bem no tipo de acesso à tecnologia, o Instituto Dimicuida fez uma cartilha informando sobre os jogos de não-oxigenação, que são denominados “brincadeira do desmaio (choking game)”. Essa brincadeira tem causado diversos acidentes fatais de autoasfixia ou desmaios voluntários em crianças que são encorajadas por colegas e pelos vídeos presentes nas plataformas de mídias sociais. Segue trecho da cartilha com dicas direcionadas aos familiares:
Para outras informações, acesse a cartilha completa “Jogos de Não Oxigenação – Conhecer, Compreender, Prevenir”.
Publicidade infantil em plataformas sociais
A psicóloga Fabiana Vasconcelos diz existir uma contradição na lei que regula a exposição de publicidade infantil. “A criança é protegida na TV aberta, pois é proibido merchandising que incentive o consumo; porém, na internet pode, [e esse é] o meio que a criança mais usa”. A preocupação da especialista é em decorrência principalmente da chamada “publicidade infantil camuflada”, que nada mais é do que o direcionamento comercial a crianças menores de 12 anos.
Identificar tal prática ilegal – segundo os Art. 36 e 37 do Código de Defesa do Consumidor e a Resolução nº 163 de 2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – é um desafio.
Denúncias contra o Google, enviadas à Comissão Federal de Comércio (FTC) e apresentadas pelo G1, acusam a plataforma de coleta de dados e direcionamento de merchandising infantil, contrariando a Coppa – lei americana que protege dados de crianças na internet.
Contudo, Carolina Fonseca não acredita haver problemas com esta prática. “Acredito que não há problemas na publicidade infantil. A questão é os pais conseguirem se posicionar frente a isso. Existe sim uma influência, mas o que a gente também precisa, o que a psicologia vem trabalhando no contexto escolar e no contexto clínico, é o fortalecimento dos pais, para mostrar de fato a realidade para a criança: o que pode, o que dá e o que não dá pra fazer”.
Reportagem desenvolvida por Carlos Eduardo de Noronha, Daniela de Faria, Isabella Cerqueira, Luís Henrique, Maria Fernanda Machado, Maria Fernanda Ramos, Maria Júlia Henriques, Renata Pedrosa, Sarah Gonçalves e Vitória Dias para a disciplina de Apuração, Redação e Entrevista, no semestre 2020/2.
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