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Racismo na linguagem revela resquícios da escravidão no Brasil

Após 132 anos da lei que declarou extinta a escravidão, negros brasileiros sofrem diariamente com as diversas faces do preconceito, incluindo o linguístico

Após 132 anos da lei que declarou extinta a escravidão, negros brasileiros sofrem diariamente com as diversas faces do preconceito, incluindo o linguístico

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE apontam que 56,10% da população brasileira é composta por negras e negros. Embora esse número evidencie que o grupo racial seja composto por mais da metade dos brasileiros, a maioria numérica não é suficiente para romper com o racismo estrutural, que não se manifesta apenas pela violência e intolerância, mas também por modos mais sutis, como a linguagem.

Mesmo após 132 anos da abolição formal da escravidão no Brasil, por meio da Lei Áurea sancionada em 13 de maio de 1888, as consequências desse período reverberam até os dias atuais na vida da população negra.  Em sua grande maioria, pretos ainda não desfrutam da mesma qualidade de vida que os brancos e se configuram como o grupo social com menos acesso à saúde, à educação e à cultura. No mercado de trabalho, são minoria em cargos de gestão e, consequentemente, têm menores chances de ascensão financeira. Na política, a falta de representatividade contribui para que os direitos dessa população não sejam assegurados.

Como se esses problemas já não bastassem, a escravidão deixou outro tipo de preconceito marcado na sociedade brasileira e que ainda sobrevive: o racismo linguístico. São dezenas de palavras e frases pejorativas pronunciadas diariamente sem que se perceba a origem dos termos e o significado que realmente está embutido neles.

Origem e permanência dos termos racistas

Pâmela Guimarães, doutoranda em Comunicação Social, explica que uma sociedade racista carrega essa característica na linguagem. Foto: Olívia Pilar.

Na avaliação da publicitária e doutoranda em Comunicação Social Pâmela Guimarães, que estuda essa questão, os termos preconceituosos sobrevivem ao tempo porque, embora não haja mais escravidão, o sistema racista vigora até a contemporaneidade. Ao explicar como surgem os termos racistas, Pâmela afirma que a linguagem talvez seja uma das principais expressões culturais, e que, portanto, carregará características da sociedade nas palavras: “Uma sociedade culturalmente racista, naturalmente trará traços desse comportamento para a sua linguagem”. Ainda de acordo com a pesquisadora, se a cultura racista persiste, a linguagem racista também persiste.

Ela também expõe que algumas relações presentes na sociedade brasileira são derivadas de atitudes do período escravagista. “No Brasil, houve abolição da escravidão nas relações, mas não nos vínculos. Formalmente, não existem mais escravos, mas essas relações foram transformadas em algo muito semelhante ao que ocorria naquela época, como, por exemplo, o fato de uma empregada passar seis dias na casa dos patrões, uma babá criar o filho dos patrões ou uma cuidadora de idosos se tornar uma acompanhante da família. Esses vínculos perpetuam a cultura de inferiorização dos negros”, defende.

Politicamente correto: conscientização que fere privilégios

Bruna Silveira, jornalista e mestre em comunicação social, defende que o politicamente correto é uma ferramenta para o combate ao racismo. Foto:  Arquivo pessoal.

Embora haja termos racistas enraizados no vocabulário brasileiro – como “lista negra” e “mercado negro”, há, ainda que de modo tímido, uma tentativa de combate ao uso dessas expressões, por meio da cultura do politicamente correto, que age como uma ferramenta indispensável para a conscientização e eliminação desse comportamento linguístico. Porém, esse tipo de regulação ainda é interpretado de maneira equivocada no país, na avaliação da jornalista e mestre em comunicação Bruna Silveira, que pesquisa os discursos sobre o politicamente correto.

Pesquisa divulgada pelo Instituto Locomotiva, em junho deste ano, sobre a percepção do brasileiro em relação ao racismo e ao preconceito racial no país, revelou que 58% dos entrevistados consideram, totalmente ou parcialmente, que o politicamente correto “é chato”.

Bruna explica que essa aversão ao politicamente correto acontece desde o surgimento do debate sobre ele, que foi distorcido por movimentos conservadores que caracterizam a prática como uma regulamentação excessiva. Porém, a comunicóloga defende que  “o politicamente correto visa entender e acolher outros grupos, a não ofender esses grupos, a evitar que a ofensa a esses grupos aconteça. Ele também está ligado às políticas públicas de inclusão. O politicamente correto, na medida em que respeita que existem outros modelos de formações sociais, ameaça, de certa forma, essa perspectiva conservadora, esse modelo ideal de como é estar neste mundo, de se posicionar neste mundo”.

Bruna também elenca dois motivos pelos quais essa intolerância ao politicamente correto acontece no Brasil: a negação das problemáticas e a ascensão de grupos conservadores. Para ela, o  país pode ser considerado negacionista, porque não reconhece a existência de problemáticas decorrentes das questões identitárias. Para ela, que atua no campo de pesquisa da comunicação política, a ascensão do conservadorismo reflete o medo da perda de privilégios dos quais esses grupos sempre dispuseram. 

“O brasileiro nega que existe racismo e defende que somos todos mestiços, somos uma mistura, somos todos iguais, e, por isso, não precisa de políticas públicas diferentes para os diferentes grupos sociais que formam a sociedade. A ascensão conservadora brasileira também é um fator que contribui para este ataque ao politicamente correto. Essa ascensão está muito atrelada ao medo da perda do status quo. Quando os conservadores têm medo de perder os privilégios, eles acabam sendo contra o politicamente correto, porque ele visa à inclusividade, visa respeitar outros grupos, respeitar outras demandas”, analisa Bruna.

Assim como Bruna, Pâmela é pesquisadora negra que atua para a conscientização de seus pares quanto à temática. “O racismo à brasileira, aquele que acontece de forma sutil nas relações sociais, e o constante silenciamento da população negra, que impede que reflexões como esta sejam constantes, resultam em um contexto perfeito para que termos extremamente racistas, mas com significados pouco conhecidos, perpetuem no idioma”, explica a comunicóloga ao expor alguns fatores que impedem que o debate acerca desse tema aconteça.

Nem todos os termos são condenados

Diferentemente da palavra “macaco”, que frequentemente é usada com o intuito de ofender uma pessoa negra e mostra claramente a atitude racista, muitas outras expressões usadas rotineiramente nas conversas, e igualmente racistas, não revelam o racismo de forma imediata ou explícita. Esse é o caso de expressões como “denegrir”, “mulata” e “criado mudo”.

O que muita gente não sabe ao fazer uso de tais termos é que eles comportam conotação pejorativa justamente porque remetem à escravidão. “Criado mudo”, por exemplo, faz referência aos escravos que, ao segurar objetos dos senhores, eram proibidos de falar. 

Pâmela  explica que o não reconhecimento do racismo em todas as expressões preconceituosas se deve à impossibilidade de a legislação acompanhar as sutilezas das relações sociais cotidianas. Ela ainda enfatiza que a lei age diante do que está escancarado, fazendo com que termos com racismo não explícito acabem sendo relevados.

Mudanças dependem de educação e reconhecimento

Buscar educação sobre a origem do racismo e suas implicações na sociedade é o primeiro passo para mudança / Imagem: Freepick

Segundo Pâmela Guimarães, é possível que o racismo propagado por meio da linguagem seja exterminado. Porém, para que isso aconteça, é preciso que haja o cumprimento de duas etapas que consistem em reconhecimento e reparação. É necessário que o Brasil e os brasileiros reconheçam que esses tipos de relações sociais, que causam problemas à população negra até hoje, são derivados do período escravagista e que haja a reparação devida às pessoas negras. 

Bruna acredita que o primeiro passo para isso deve ser dado por meio da educação e do entendimento de que o politicamente correto não é sobre tolerar as diferenças, mas sim sobre respeitá-las. A pesquisadora também destaca que essa é uma tarefa que cabe a todos, incluindo as pessoas brancas, que “têm grande responsabilidade em cima do racismo”.

Todavia, segundo Pâmela, os brasileiros ainda nem concluíram a primeira etapa, que é a do reconhecimento desses problemas centenários.

“O Brasil não passou nem mesmo do primeiro estágio. Assim que houve a abolição, instituiu-se o mito da democracia racial, que expressa a existência da igualdade entre brancos e negros. O que não é real. Não reconheceu-se o problema do racismo, portanto, nunca houve um empenho para mudar essa realidade”, afirma Pâmela.

Com otimismo, Bruna concorda que é possível reverter o cenário. “Eu acho que nem tudo está perdido. A gente tem como mudar isso através da educação, do poder da leitura, da disseminação do conhecimento, da busca por ele. Uma boa forma de começar a mudança é ler mais autores negros e entender essas vivências”.

O Estado também tem seu papel no combate ao racismo. Com o intuito de educar sobre os significados racistas por trás das expressões cotidianas, a fim de gerar o reconhecimento do preconceito e, aos poucos, eliminar esses termos do vocabulário,  a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus-DF) lançou, em junho, deste ano uma cartilha contendo 27 termos racistas com seus respectivos significados, origens e opções de substituição. 

Bárbara Bento

Estudante de Jornalismo da PUC Minas com imenso amor pelo mundo da cultura e todas as artes que ele envolve. Tá sempre com os fones no ouvido, tendo mil ideias mirabolantes que adora transformar em projetos pessoais. Adora conversas longas sobre todas as perguntas que o ser humano tenta responder sobre si mesmo.

Monitora do Jornal Marco e do site Colab, ela teve a oportunidade de estagiar no laboratório de fotografia da PUC São Gabriel, em assessorias de imprensa e em redação televisiva.

Além de produzir e escrever reportagens para o Jornal Marco e Colab, a Bárbara escreve sobre música no blog Último Volume.

2 comentários

  • Bom dia, Bárbara! Tudo bem?
    Vc acredita que o termo “negrito”, do editor de texto do Word, possa ser considerado racista?

  • “Denegrir” vem do latim “Denigrare”, palavra que em sua origem romana não fazia referência nenhuma à cor de pele.

    Se for usar esses mesmos argumentos, não podemos usar nem mesmo a palavra “escravo”.

    “Escravo” vem do latim medieval “Sclavus”, que designava originalmente um povo do Leste Europeu (muitos escravos vinham de lá, então a denominação desse povo passou a nomear a pessoa escravizada)

    Eles existem até hoje: são os eslavos, e já sofreram muito preconceito ao longo da história.

    Entretanto, quando falamos “escravo”, estamos de alguma maneira desmerecendo o povo eslavo, contribuindo para o preconceito contra ele ou piorando sua vida de qualquer maneira?

    É evidente que não.

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Bárbara Bento

Estudante de Jornalismo da PUC Minas com imenso amor pelo mundo da cultura e todas as artes que ele envolve. Tá sempre com os fones no ouvido, tendo mil ideias mirabolantes que adora transformar em projetos pessoais. Adora conversas longas sobre todas as perguntas que o ser humano tenta responder sobre si mesmo.

Monitora do Jornal Marco e do site Colab, ela teve a oportunidade de estagiar no laboratório de fotografia da PUC São Gabriel, em assessorias de imprensa e em redação televisiva.

Além de produzir e escrever reportagens para o Jornal Marco e Colab, a Bárbara escreve sobre música no blog Último Volume.