Em janeiro de 2020, um jovem negro foi acusado de cometer “racismo reverso” em uma publicação no Facebook. Tal acontecimento causou espanto, principalmente porque a discussão foi levada ao tribunal. A Justiça Federal absolveu o jovem.
O fato de o ocorrido ter sido levado tão longe na justiça desperta a problemática de como pessoas brancas frequentemente não reconhecem seu papel na permanência do racismo, nem respeitam a memória histórica de pessoas negras.
Nesse sentido, a comunicação tem papel importante no estabelecimento e na legitimação de narrativas, tanto aquelas que devem ser ampliadas, como a luta antirracista, quanto as que devem ser questionadas, como o “racismo reverso”.
Pesquisadores da área e acadêmicos que discutem raça e etnia defendem que é incoerente afirmar que pessoas brancas que, historicamente, mantiveram o lugar de opressores, são vítimas de “racismo reverso”. Mas, afinal, qual o problema por trás dessa expressão e por que seu uso deve ser combatido?
Negritude e identidade
Pessoas negras e brancas não têm equivalência nas questões identitárias. Thiago Teixeira, professor e autor do livro Inflexões Éticas, pontua que o racismo não atinge pessoas brancas porque não há no Brasil uma estrutura política que coloca corpos brancos em lugares subalternizados.
“Estamos falando sempre de racismo como estrutura política. É um imaginário construído pela branquitude”, conta ele, que também é doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas, Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Colunista e Editor da Revista Senso.
Afirmar que pessoas brancas não sofrem discriminação racial não quer dizer que esse grupo não se sinta ofendido com um tipo de tratamento preconceituoso. “É possível que uma pessoa branca seja atacada e fique incomodada com a ofensa em relação a sua pele. Contudo, essa ofensa não tem um impacto estrutural e político, de uma história de apagamento, de violência”, completa Thiago Teixeira.
Além disso, o termo “racismo reverso” impede que pessoas brancas escutem o que pessoas negras estão denunciando. A criação de um discurso que envolve apagamento histórico tem relação direta com a hierarquia entre opressores e oprimidos. “Requisitar o argumento do “racismo reverso” é fazer com que a branquitude permaneça no centro, tanto no campo discursivo, quanto no político”, comenta Thiago Teixeira.
A diferença nos números
A maior parte da população negra enfrenta desigualdades e preconceitos nos espaços majoritariamente brancos que frequenta, como as universidades, e permanece lidando com as consequências do racismo ao longo da vida profissional.
Essas desigualdades se manifestam, por exemplo, na questão salarial. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, em 2018, o rendimento médio da hora do trabalho principal de pessoas negras ocupadas com ensino superior completo é cerca de R$10 a menos do que pessoas brancas com a mesma formação.
Segundo a professora Antônia Montenegro, mestre em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), “a questão econômica não embranquece ninguém”.
Ela argumenta que uma pessoa branca nunca experimentará racismo porque o grupo social a que pertence nunca viveu, nem vive a realidade desumanizadora decorrente do racismo.
Mesmo quando uma pessoa é branca e pobre, o máximo que experimentará é discriminação socioeconômica, nunca racial. Seu grupo é reconhecido, pela cor da pele, com distinção e privilégios.
Antônia Montenegro, professora da PUC Minas
Nesse processo de dar-se conta dos privilégios da branquitude, pessoas brancas sentem-se implicadas pelo posicionamento combativo e de denúncia de grupos subalternizados. “Quando você faz uma crítica sobre subalternização e hierarquização, isso desaloja o outro, que está na zona de conforto”, pontua Antônia Montenegro.
Aos brancos, cabe, então uma tomada de consciência e mudanças de atitude.
A mídia e o apagamento dos problemas
Os meios de comunicação, no entanto, constroem e conduzem muitos equívocos em relação às desigualdades de raça, no Brasil e no mundo. Por isso, profissionais da área devem estar ainda mais atentos às dinâmicas racistas que se manifestam em ambientes comunicativos.
“Comunicação é poder”, afirma a publicitária e Mestre em Comunicação Social pela PUC Minas, Dalila Musa.
“A comunicação contribui para esses discursos quando reforça a manutenção de um sistema hegemônico, que vai oprimir pessoas negras, pessoas transsexuais, pessoas homossexuais…”, afirma.
Nesse contexto, para pessoas negras, é preciso reivindicar a fala para não ser narrado e, sim, falar.
Ela exemplifica como o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, foi parte dessa rede comunicativa relacionada ao racismo em sua última edição. O programa tem de 25 a 60 minutos de transmissão diária e é disponibilizado ao vivo, 24 horas por dia, para assinantes. Segundo Dalila, na versão ao vivo, a participante Thelma Assis, mulher negra, foi muito apagada na versão editada em diferentes ocasiões, e uma das participantes brancas teve grande destaque ao levantar debates de cunho social.
A mídia avançou nas questões raciais, mas existe certa maquiagem em relação a esses problemas.
Dalila Musa, pesquisadora.
No caso do exemplo do Big Brother, o discurso das duas participantes é parecido, mas a pessoa branca ganha mais destaque. “As pessoas negras estão sendo incluídas nesses espaços, mas a relevância desse grupo é retirada quando começam a manifestar questões políticas”. Quem não tem acesso à versão paga do BBB, por exemplo, não consegue perceber esses sutis dilemas.
Manifestações nas redes
Ainda assim, quem percebe a problemática pode, hoje, promover questionamentos na internet, em seus perfis de mídias sociais, como nos exemplos abaixo.
Por uma educação libertadora
Se a comunicação pode contribuir para resolver, mas também para intensificar o problema, como os processos de formação de futuros comunicadores impactam na luta antirracista?
O professor Thiago Teixeira pontua que é necessário promover uma discussão plural no ambiente escolar, uma produção de conhecimentos polifônica, onde negros sejam anunciados como sujeitos: “uma construção que nos coloque em lugares de agentes e transformadores de realidade”.
Há, nesse sentido, também a necessidade de promover identificação e representatividade de pessoas negras em produtos culturais e comunicacionais. No entanto, as premiações do Oscar e do Grammy de 2020 mostraram uma realidade: a cota para pessoas negras é pequena.
Mas Dalila Musa afirma que as celebridades de massa, aquelas que produzem entretenimento de maior visibilidade, não se envolvem com assuntos de cunho político no Brasil: “Quem faz entretenimento massivo no Brasil não se envolve muito com questões raciais”.
Isso não quer dizer que não existam grupos que destacam essas questões nos seus canais comunicativos. Para ela, o YouTube é um canal ótimo para consumir conteúdos que não são tão acessados: “É uma plataforma boa para buscar conteúdos de fora da sua bolha”.
Ela comenta também que, em relação ao reconhecimento de obras produzidas por pessoas negras, as premiações, no geral, ainda celebra uma cultura hegemônica branca, e não vão ceder tão fácil.
Mas há sinais de mudanças. A produção vencedora do Oscar na categoria melhor curta-metragem de animação foi Hair Love. O curta faz parte de uma pequena parcela de produtores e artistas negros que tiveram o privilégio de ganhar o prêmio.
Assista o premiado curta Hair Love:
Para ouvir: vozes negras no mundo dos podcasts
Podcasts ganham cada vez mais destaque, e existem aqueles que abordam as questões raciais.
Se quer diversificar o que toca nos seus ouvidos, confira a dica do Colab:
BÔNUS! 10 personalidades negras para seguir no Twitter
- Lista Preta – Se a lista é preta, a lista é boa
- Laressa – Formadora de opiniões que ninguém pediu
- Ka – Criadora de coisas
- Nath Finanças – Administradora, Youtuber de educação financeira para baixa renda, colunista
- Nátaly Nery – Cientista social em formação, vegana e youtuber
- Rao – Artista; ‘Girls in the House’, ‘Klam’
- Keilla Vila Flor – Historiadora, professora e modelo
- Andreza Delgado – Criadora do @gamerperifa, escreve na revista @capitolinafala, uma das criadoras do @PerifaCon – a Comic Con das favelas
- Rodrigo França – Articulador cultural, ator, diretor, dramaturgo, produtor, filósofo e cientista social
- Mussum Alive – “Enquanto os leões não contarem suas histórias, os caçadores serão glorificados”. @quebradapod e @bebidaliberada
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